Migalhas de Peso

Da facultatividade da escritura pública para os compromissos de compra e venda

Estudo sobre a hermenêutica dos artigos 108, 462, 1.225, VII, 1.417 e 1.418, todos do Código Civil Brasileiro, além da súmula 239 do STJ.

4/4/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Penso que a premissa inicial deste ensaio deve ter como ponto de partida o artigo 108 do Código Civil, pois prescreve o citado dispositivo legal que Não dispondo a Lei em contrário, a  escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem a constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o salário mínimo vigente no país”.

Ato contínuo e de extrema relevância é se identificar a natureza jurídica do Compromisso de Compra e Venda, que por conclusão lógica, em regra, não se enquadra como contrato definitivo/final, e sim possui roupagem de contrato preliminar, eis que sua essência é a de garantir/preparar o negócio principal, sem o condão de transferência de propriedade, portanto, não sendo abarcado pela atmosfera da segunda parte do artigo 108 do Código Civil, funcionando como “elo de ligação” até a celebração da escritura pública de compra e venda, esta sim com eficácia para a transferência da propriedade, mediante registro no respectivo Registro de Imóveis.

Importante destacar algumas exceções como a que consta na lei 6.766/79 (Lei de Parcelamento do Solo), na qual o Compromisso de Compra e Venda junto com a prova da quitação, valerão como título para registro da propriedade do lote, sem a necessidade de escritura pública.

Deste modo, se tratando o Compromisso de Compra e Venda de modalidade de contrato preliminar, bem como sua essência não se revestindo da finalidade de transferência de propriedade, conforme preconiza textualmente a segunda parte do artigo 108 do Código Civil, nos parece que sua forma pode ser a de instrumento particular, nos exatos termos do artigo 1.417 do mesmo Diploma Legal (“...celebrada por instrumento público ou particular...”), invocando ainda uma necessária interpretação conjunta da primeira parte do já citado artigo 108 “Não dispondo a Lei em contrário...”, e na presente situação o artigo 1.417 dispõe pela possibilidade do instrumento particular.

Aliás o artigo 462 do Código Civil disciplina que o contrato preliminar, exceto quanto à forma, deve conter todos os requisitos essenciais do contrato a ser celebrado, enquadrando-se, portanto, a possibilidade de instrumento particular (forma).

Portanto, possui o Compromisso de Compra e Venda natureza jurídica de contrato preliminar, não estando albergado, desse modo, pelo espectro da segunda parte do artigo 108 do Código Civil, eis que sua dicção se presta aos contratos que versem sobre a transferência, constituição, modificação ou renúncia de direitos reais.

O legislador ao criar a regra contida no artigo 1.225, VII, do Código de Processo Civil, elevando a condição do promitente comprador a detentor de direito real, buscou aquele, s.m.j., por meio de medida subsidiária, o de aparelhar de forma positivada o promissário comprador ao se deparar com a inadimplência do compromissário vendedor, nos moldes dos artigos 1.417 e 1.418 do Código Civil, que menciona sobre o direito real à aquisição do imóvel e possível adjudicação compulsória na hipótese de recusa do promitente vendedor em transferir a propriedade definitiva.

Veja que o artigo 1.418 também se refere a “instrumento particular”, seguindo o entendimento do artigo 462, bem como da primeira parte do já citado artigo 108, todos do Código Civil, (“Não dispondo a lei em contrário...”), o que afasta, logicamente, a aplicação da segunda parte deste artigo (“...a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no país).

Desta forma o Compromisso de Compra e Venda nasce com o “espírito” de contrato preliminar, e dessa maneira se deve interpretar a intenção das partes, prevalecendo o entendimento de que é facultado as partes a celebração daquele contrato por meio de instrumento público ou particular, hermenêutica esta realizada após análise conjunta e sequencial dos artigos 108, 462, 1.225, VII, 1.417 e 1.418, do Código Civil, afastando ainda, neste caso, a aplicação da segunda parte do artigo 108 do mesmo Diploma Legal, haja vista a natureza jurídica do Compromisso de Compra e Venda que não se enquadra com o objetivo de constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis.

Nesta esteira e consubstanciado nos dispositivos citados, entendo que ocorreu a perda da eficácia da Súmula 239 do S.T.J., de 30/08/00, a qual prevê “que o direito de adjudicação não se condiciona ao registro do Compromisso de Compra e Venda no registro de imóveis”, haja vista o disposto nos artigos 1.417 e 1.418 do Código Civil de 2.002, prevendo justamente o contrário, ou seja, a necessidade do registro junto ao respectivo cartório de Registro de Imóveis.

Ademais, creio que a positivação do direito do promitente comprador junto ao rol dos direitos reais lançou também algumas dúvidas no cenário jurídico nacional, ademais defendo não se tratar aquele de um direito real por excelência, haja vista a necessidade do cumprimento de alguns requisitos para sua eficácia plena, como a inexistência de cláusula de arrependimento e registro no cartório de Registro de Imóveis, sob pena de sua inaplicabilidade.

Por fim ouso afirmar que as alterações trazidas pelos dispositivos legais aqui comentados não possuem como objetivo vedar que o instrumento particular de Compromisso de Compra e Venda seja levado a registro junto Registro de Imóveis, na verdade vem evidenciar, pois, sua natureza jurídica de contrato preliminar, e como tal encontra plena guarida em nosso ordenamento jurídico, pelos motivos e fundamentos trazidos neste ensaio.

Everton Alexandre Santi
Advogado em São Paulo, pós-graduado em Direito Imobiliário, Direito Civil e Processo Civil, pós-graduando em Direito Tributário, associado da Ad Notare - Academia Nacional de Direito Notarial e Registral, articulista, palestrante e sócio do escritório Santi e Nogueira Sociedade de Advogados.

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