Pejotização retoma os holofotes no meio jurídico e empresarial. Recentemente, em 8/2/22, o STF validou a contratação de médicos como pessoas jurídicas para a prestação de serviços.
No caso, médicos formalizaram pessoas jurídicas para viabilizar a contratação e consequente prestação de serviços para gestão de hospitais públicos. O MPT - Ministério Público do Trabalho, ajuizou ACP - Ação Civil Pública1, na 10ª vara do Trabalho do TRT da 5ª região – Bahia, para ver declarada a nulidade da contratação e consequente caracterização do vínculo direto de emprego entre os médicos e o tomador do serviço. A sentença deu provimento ao pleito ministerial e, em sede de recurso, manteve a decisão do juízo singular e determinou que a ré se abstivesse de “contratar trabalhadores por intermédio de pessoa jurídica, em contratos de ‘Prestação de Serviços’ ou em contrato civil de qualquer natureza, quando presentes, na prestação de serviços de tais trabalhadores, os elementos da relação de emprego, previstos nos artigos 2º e 3º da CLT, sob pena de multa, por empregado.”
Por outro lado, o recurso de revista interposto ao TST, não teve seu mérito analisado. A matéria foi levada ao STF, que entendeu pela licitude da contratação do hipersuficiente como pessoa jurídica e, nas palavras do Ministro Alexandre de Moraes, o STF
[...] já venho me manifestando em inúmeros casos na turma sobre a licitude terceirização da atividade fim, que aqui eu considero existente.” [...] “É por se tratar aqui, da licitude da questão da contratação de médicos por entidades sem fins lucrativos. [...] aqui me parece que é exatamente o caso específico da possibilidade dessa contratação sem que com isso se coloque uma ilicitude na contratação e sabemos que isso ocorre, não só na questão médica, mas em inúmeras outras atividades, dentro dessa possibilidade de permitir a prestação de serviços e terceirização lícita da atividade-fim, não podendo ser penalizado [...]”2
Essa decisão vem firmando a postura do STF, quanto a possibilidade de contratação através de pessoas jurídicas, sem a presunção de ilicitude do contrato e/ou fraude à legislação trabalhista. Ao longo dos anos, o Supremo Tribunal Federal tem validado esse tipo de pacto em diversos setores da economia. Em 2016, decidiu pela validade da lei 13.352/16, que dispõe sobre o contrato de parceria entre os profissionais que exercem as atividades de Cabeleireiro, Barbeiro etc. e pessoas jurídicas registradas como salão de beleza. A lei acrescentou o artigo 1º-A à lei 12.592 e seu parágrafo 11 é claro ao preceituar que “o profissional-parceiro não terá relação de emprego ou de sociedade com o salão-parceiro [...] ”.
No mesmo caminhar, o STF julgou procedente a ADC 48/20 declarando a constitucionalidade da lei 11.442/07, bem como firmou a tese no sentido de que, preenchidos os seus requisitos, fica afastada a configuração do vínculo empregatício para a contratação de autônomos para a realização do TRC - Transporte Rodoviário de Cargas.
Em caso semelhante ao posto em discussão, em maio de 2020, o STF validou, pela RCL 39.351, a contratação de médicos, que constituíram Personalidade Jurídica, por Hospital tomador de serviços.3
Em dezembro de 2020, declarou a constitucionalidade do artigo 129 da Lei 11.196/2005 – ADC 66, que permite a aplicação do regramento de pessoas jurídicas à prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural.
Noutro viés, temos que a legislação trabalhista é regida pelo Princípio da Proteção. Não se trata de leis imparciais que visam tão somente regular as relações de trabalho. Por considerar o trabalhador hipossuficiente no vínculo contratual, há, claramente, a intenção de proteger o contratado.
Nesse sentido trata o ministro do TST, Maurício Godinho Delgado4:
Princípio da Proteção — Informa este princípio que o Direito do Trabalho estrutura em seu interior, com suas regras, institutos, princípios e presunções próprias, uma teia de proteção à parte vulnerável e hipossuficiente na relação empregatícia — o obreiro —, visando retificar (ou atenuar), no plano jurídico, o desequilíbrio inerente ao plano fático do contrato de trabalho.
O princípio tutelar influi em todos os segmentos do Direito Individual do Trabalho, influindo na própria perspectiva desse ramo ao se construir, desenvolver-se e atuar como direito. Efetivamente, há ampla predominância nesse ramo jurídico especializado de regras essencialmente protetivas, tutelares da vontade e interesses obreiros; seus princípios são fundamentalmente favoráveis ao trabalhador; suas presunções são elaboradas em vista do alcance da mesma vantagem jurídica retificadora da diferenciação social prática. Na verdade, pode-se afirmar que sem a ideia protetivo-retificadora, o Direito Individual do Trabalho não se justificaria histórica e cientificamente.
Da mesma forma, Carlos Henrique Bezerra Leite5:
O princípio da proteção (ou princípio tutelar) constitui a gênese do direito do trabalho, cujo objeto, como já vimos, consiste em estabelecer uma igualdade jurídica entre empregado e empregador, em virtude da manifesta superioridade econômica deste diante daquele.
Aliado ao Princípio da Proteção, temos o Princípio da Imperatividade das normas trabalhistas, que determina a aplicação das regras trabalhistas aos contratos realizados, ainda que as partes queiram transigir.
Assim trata Godinho6:
Princípio da Imperatividade das Normas Trabalhistas — Informa tal princípio que prevalece no segmento juslaborativo o domínio de regras jurídicas obrigatórias, em detrimento de regras apenas dispositivas. As regras justrabalhistas são, desse modo, essencialmente imperativas, não podendo, de maneira geral, ter sua regência contratual afastada pela simples manifestação de vontade das partes. Nesse quadro, raros são os exemplos de regras dispositivas no texto da CLT, prevalecendo uma quase unanimidade de preceitos imperativos no corpo daquele diploma legal.
Em que pese a latência do princípio da proteção, o que se verifica é o ganho de robustez de um Princípio inerente ao Direito Civil que é o da Autonomia da Vontade das Partes, o qual preceitua que os indivíduos, desde que dotados de capacidade jurídica, possuem o poder de praticar atos e assumir obrigações de acordo com a sua própria conveniência.
Maria Helena Diniz7 conceitua o princípio da autonomia da vontade como “o poder de estipular livremente, como melhor lhes convier, mediante acordo de vontade, a disciplina de seus interesses, suscitando efeitos tutelados pela ordem jurídica.”
A Reforma Trabalhista, lei 13.467/17, inovou com a figura do Empregado Hipersuficiente, caracterizado como aquele “portador de diploma de nível superior e que perceba salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social8”
Considerando (i) a atual conjuntura jurídico-normativa; (ii) a recente decisão do STF e (iii) a mudança cultural nas contratações, onde se percebe, cada vez mais, a intenção de profissionais em não se vincular mediante submissão celetista9, 10, mas através de contrato de prestação de serviços entre pessoas jurídicas, que permitem maior amplitude negocial, teremos, possivelmente, um decréscimo nos empregos formais e aumento na formalização de PJ e respectivos contratos civis, especialmente por conta da legalidade da terceirização das atividades-fim, o que demonstra o interesse social na revisão das possibilidades de contratar, quando se conversa sobre relação de trabalho. O cenário tem mudado rapidamente nos últimos anos e a legislação deve se adequar aos novos costumes, pois a Pejotização começa a perder a alcunha fraude e ganha traços de alternativa legal e viável.
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1 Processo 0000267-20.2016.5.05.0010.
3 https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15343144331&ext=.pdf
4 DELGADO, Mauricio Godinho Curso de direito do trabalho — 18. ed.— São Paulo: LTr, 2019. Págs. 233 e 234
5 LEITE, Carlos Henrique Bezerra Curso de direito do trabalho – 11. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019. Pág. 138
6 DELGADO. Op. Cit. Pág. 237
7 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
8 Em janeiro de 2022, o teto é R$ 7.087,22, o que equivale a remuneração de R$14.174,44
9 https://tecnoblog.net/noticias/2020/07/24/maioria-dos-entregadores-de-apps-nao-quer-carteira-assinada-diz-ibope/