Não é ponderável o bloqueio cautelar de verbas públicas para o ressarcimento da internação hospitalar na rede privada, pois os valores dessa condenação deverão ser apurados em liquidação de sentença, levando em consideração a conta hospitalar apresentada, com o detalhamento de todos os serviços, procedimentos e produtos utilizados, com a consequente e necessária auditoria pela respectiva Secretaria Municipal de Saúde, que fará a sua precificação nos termos na Regra de Valoração prevista em tabela da ANS.
A organização do SUS tem previsão constitucional (art. 196), que estabelece que as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo diretrizes, primando pelas atividades preventivas. Dando concretude para esse comando magno, no ano de 2003, durante o XX Seminário Nacional dos Secretários Municipais de Saúde, o então ministro Humberto Costa lançou a política nacional de humanização no sistema único de saúde, visando a humanização na atenção e na gestão da saúde. O humaniza SUS foi fruto de intensos debates entre o Ministério da Saúde e representantes das secretarias estaduais e municipais de saúde e a principal inovação foi a determinação de critérios a serem adotados para a redução de fila com acolhimento e avaliação de risco. “A tecnologia de Avaliação com Classificação de Risco, pressupõe a determinação de agilidade no atendimento a partir da análise, sob a óptica de protocolo pré-estabelecido, do grau de necessidade do usuário, proporcionando atenção centrada no nível de complexidade e não na ordem de chegada”. Trata-se de “um processo dinâmico de identificação dos pacientes que necessitam de tratamento imediato, de acordo com o potencial de risco, agravos à saúde ou grau de sofrimento”1.
Uma demanda que aflige os secretários municipais de saúde são as requisições de transferência de pacientes internados em hospitais privados para hospitais da rede do SUS. A escolha da internação em rede privada, para posterior transferência para o SUS, fere a lógica da regulação da porta de entrada no sistema, que exige a obediência de critérios científicos de avaliações de risco e estratificação. Além, disso, essa transferência sem obediência aos critérios técnicos, pode configurar tratamento privilegiado para pacientes que tem melhores condições e conhecimentos, em prejuízo dos pacientes que seguiram o fluxo normal acesso ao SUS e estão aguardando a continuidade do tratamento, segundo as diretrizes do sistema.
Quando um paciente escolhe ser internado em um hospital privado e, diante dos elevados custos, decide requer a sua transferência para hospitais públicos e busca a judicialização do acesso, a organicidade do sistema fica irremediavelmente prejudicada, por isso é imprescindível que a decisão judicial adote critérios técnico-sanitários, como a análise criteriosa da classificação de risco e da respectiva estratificação, sob pena de dar causa a tratamento privilegiado e prejudicial aos interesses daqueles que aguardam na filas reguladas.
Mesmo diante das ponderações das dificuldades de oferta do serviço público de saúde para a população local e da escassez dos recursos públicos, o Poder Judiciário tem determinado a transferência de pacientes internados em hospitais privados ou da rede de saúde suplementar, para hospitais públicos ou conveniados ao SUS, geralmente fixando prazos muito exíguos para o cumprimento da ordem, sob pena de incidirem em multa. Os pedidos são deferidos, inclusive com a determinação de assunção pelo poder público das despesas privadas.
Os julgados recentes sobre a judicialização do acesso não têm prestigiado os critérios técnicos e justos que regulam o Sistema Único de Saúde, os quais apuram a real necessidade da internação diante dos critérios de risco e da fila de espera. Além disso, têm imposto o dever de assunção das despesas hospitalares privadas a partir do pedido de transferência, caso seja comprovado que não buscou o serviço público e fez prova de que não foi atendido, como se vê:
6. Considerando que a criança recém-nascida ficou internada em hospital particular em virtude de livre escolha de sua genitora, os períodos de sua estadia na rede privada, anteriores a solicitação de transferência para a rede pública de saúde não podem ser custeados pelos entes públicos, tendo em vista que estes sequer tinham ciência da situação, não tendo condições, consequentemente, de providenciar o tratamento da criança no SUS.2
Se a internação privada se deu em razão da omissão do serviço público, essas despesas serão suportadas desde o início da internação, vejamos:
3 – Implementação das ações de saúde. Omissão do Poder Público. A inércia do Poder Público em fornecer leito hospitalar em UTI só se verifica a partir da inscrição perante a Central de Regulação de Internação Hospitalar (CRIH), o qual é o termo inicial para que o Estado seja obrigado a custear as despesas hospitalares em rede privada, caso não promova a internação em hospital da rede pública ou conveniada.3
O CNJ através do provimento 84 de 14/8/19, tratou do uso e o funcionamento do Sistema Nacional de Pareceres e Notas Técnicas (e-Nat Jus), pelo qual, em seu artigo primeiro, dispõe que “os magistrados estaduais e federais com competência para processar e julgar ações que tenham por objeto o direito à saúde, ainda que durante o plantão judicial, quando legados a decidirem sobre a concessão a determinado medicamento, procedimento ou produto poderão solicitar apoio técnico do Núcleo de Apoio Técnico do Judiciário (NAT-JUS) de seu Estado ou ao NAT-JUS NACIONAL”4. Diante dessa recomendação, os magistrados, antes de impor uma condenação de ressarcimento ao prestador privado, deveriam requisitar esse apoio, cujo laudo é de fundamental importância para aferir a razoabilidade e proporcionalidade de sua decisão.
Um alento para as contas da saúde público veio com a decisão do STF, que ao apreciar o RE 666.094/DF, por unanimidade lhe deu parcial provimento para a reformar em parte o acórdão recorrido, impondo que o ressarcimento da prestadora privada seja limitado ao máximo os valores de referência fixados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar, utilizados para o ressarcimento ao SUS pelos serviços prestados para os segurados dos planos de saúde. Essa decisão deu origem ao tema 1.033 tem a seguinte redação:
"O ressarcimento de serviços de saúde prestados por unidade privada em favor de paciente do Sistema Único de Saúde, em cumprimento de ordem judicial, deve utilizar como critério o mesmo que é adotado para o ressarcimento do Sistema Único de Saúde por serviços prestados a beneficiários de planos de saúde".
Essa decisão da Suprema Corte, que tem repercussão geral, criou um fator limitador para o ressarcimento das despesas decorrentes de internações na rede privada, impostas por decisões judiciais. O STF decidiu que o ressarcimento das internações na rede privada determinado pelas decisões judiciais deverá adotar a mesma regra de ressarcimento devida pelos planos de saúde ao SUS, prevista no artigo 32, §1.ºda lei 9.656/98, com redação dada pela lei 12.469/11, ou seja, os deverá ser utilizado os valores previstos na Regra de Valoração para o ressarcimento obrigatório feito pelas operadoras de planos de saúde pelos atendimentos de seus segurados prestados pelo SUS. Essa limitação impedirá que os cofres públicos sejam obrigados a suportar custos particulares exorbitantes e que causam irreparáveis desarranjos para a gestão da saúde pública daquela localidade.
Um dos efeitos, a meu ver, dessa decisão do STF é que não é mais ponderável o bloqueio cautelar de verbas públicas para o ressarcimento da internação hospitalar na rede privada, pois os valores dessa condenação deverão ser apurados em liquidação de sentença, levando em consideração a conta hospitalar apresentada, com o detalhamento de todos os serviços, procedimentos e produtos utilizados, com a consequente e necessária auditoria pela respectiva Secretaria Municipal de Saúde, que fará a sua precificação nos termos na Regra de Valoração prevista em tabela da ANS, podendo, inclusive, glosar verbas que entenda não ser cabível ao tratamento do paciente ou por entender abusivas.
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1 https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/biblioteca/acolhimento-com-avaliacao-e-classificacao-de-risco-um-paradigma-etico-estetico-no-fazer-em-saude/
2 https://tj-mg.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/786666118/ap-civel-rem-necessaria-ac-10702140130247001-mg
3 https://tj-df.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/823267123/7179076320198070016-df-0717907-6320198070016/inteiro-teor-823267142
4 https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2987