Vem se tornando cada vez mais frequente a utilização do STF como espécie de último refúgio para atender pretensões que não lograram sucesso nos graus ordinárias de julgamento, desvirtuando a principal missão de instância única e última para questões constitucionais de alta relevância (“guarda da constituição”, como diz o art. 102 da Carta Maior de 1988), fundamentais para o equilíbrio da democracia e interdependência dos poderes da República brasileira, bem como no chamado controle objetivo de constitucionalidade das Leis. Traduzindo em uma linguagem mais coloquial, comparando com as formas de comercialização de produtos e bens, seria possível dizer que o STF tem a missão principal de atuar prioritariamente no atacado e não no varejo.
A pretensão da ADPF 944/DF, objeto do presente artigo, é fazer com o que o STF atue ordinariamente no varejo, pois se pretende resolver questão jurídica, a ser explicada nos próximos parágrafos, cuja posição vem sendo correta e paulatinamente construída ao longo do tempo pela jurisprudência trabalhista, ao que parece de maneira distinta da posição de uma pequena parcela da sociedade que detêm o poder econômico. Vamos explicar melhor tal questão.
A Confederação Nacional da Indústria (CNI) apresentou, no mês anterior, a ADPF 944/DF visando desconstituir decisões judiciais proferidas em ações coletivas trabalhistas, nas quais, ao invés de haver ordem de reversão dos valores das condenações pecuniárias a um fundo legal, nos termos do art. 13 da Lei da Ação Civil Pública, vem se reconhecendo o cabimento de outras formas de destinações, a serem aqui chamadas de reversões ou recomposições sociais1.
Diz o art. 13 da lei 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública): Havendo condenação em dinheiro, a indenização pelo dano causado reverterá a um fundo gerido por um Conselho Federal ou por Conselhos Estaduais de que participarão necessariamente o Ministério Público e representantes da comunidade, sendo seus recursos destinados à reconstituição dos bens lesados”.
Tal fundo mencionado no dispositivo legal transcrito encontra-se regulamentado por intermédio do Decreto 1.306/94 e pela lei 9.008/95, sendo denominado Fundo de Defesa de Direitos Difusos, tendo por finalidade a reparação dos danos perpetrados ao “meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico turístico, paisagístico, por infração à ordem econômica e a outros interesses difusos e coletivos” (art. 1o).
Há outros fundos similares para proteção de interesses específicos. No campo, por exemplo, da proteção aos direitos coletivos em sentido lato das crianças e adolescentes, há previsão legal (art. 214, lei 8.069/90) de criação do Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente (FDCA), destinatário das condenações pecuniárias nessa seara.
As opções legislativas de criações desses fundos “destinadas à recomposição dos bens lesados”, visando ao acolhimento de condenações pecuniárias em ações coletivas, justificam-se perfeitamente em razão da usual natureza indivisível dos interesses transindividuais, daí a inexequibilidade de reparação direta aos integrantes individualizados de uma dada coletividade ofendida, até porque tal coletividade não é inicialmente determinada. Em outras palavras mais singelas, considerando a impossibilidade de a reparação ser individualizada, em razão da natureza do direito violado, foi desenvolvida a ideia do fundo para receber tais condenações para tentar viabilizar a reparação do direito violado.
No âmbito trabalhista, em razão da ausência desse fundo nos moldes da Lei transcrita, os valores referentes à condenação pecuniária vêm sendo destinados, em alguns casos, ao Fundo de Amparo ao Trabalhador, FAT, criado pela lei 7.998/90, tendo por finalidade, dentre outras, custear Programa de Seguro--Desemprego e o financiamento de programas de desenvolvimento econômico (art. 10). Porém tal posição vem sendo cada vez mais flexibilizada, pois o TST vem admitindo a aqui chamada reversão social, a ser explicado nos próximos parágrafos.
Antes de explicar a chamada reversão social, vale destacar que o FAT não se enquadra nas exigências dispostas no citado art. 13 do diploma de regência de ação pública, porquanto não é gerido por Conselho Federal ou Estadual, muito menos tem participação dos Ministérios Públicos em sua gestão, daí porque vem se fortalecendo resistência doutrinária e jurisprudencial, ora atacada na ADPF em análise, quanto ao aparelhamento econômico desse fundo.
Utilizando-se do raciocínio da processualística, entende-se que o mero aparelhamento econômico desses fundos deverá ser classificado como tutela ressarcitória pelo equivalente monetário, isto é, modalidade de tutela que confere ao autor uma espécie de equivalente em dinheiro à lesão sofrida.
Acontece que a própria gênese da concepção originária da criação desses fundos receptores de pecúnia afasta a ideia cerrada pretendida na ADPF em estudo, pois o direito estadunidense os qualificou como “fundos fluidos”, ou fluid recovery, isto é, alude-se a possibilidade deles serem utilizados “com certa flexibilidade, para uma reconstituição que não precisa e às vezes nem mesmo pode ser exatamente a reparação do mesmo bem lesado”2, contudo, sobrevindo condenação em pecúnia, o dinheiro obtido deverá ser “usado em uma finalidade compatível com a causa”3, o que não impede de serem adotadas práticas (muito pelo contrário, merecem o devido estímulo) eficazes e inteligentes, distintas da condenação pecuniária destinada aos citados fundos.
Tal possibilidade mais flexível foi por mim chamada de recomposição ou direcionamento social das condenações em pecúnia em dano moral coletivo nas ações coletivas trabalhistas.
Voltando novamente ao raciocínio meramente processualístico, pode-se afirmar que esse direcionamento social da condenação se aproxima da ideia de tutela ressarcitória na forma específica, isto é, tal ressarcimento sendo efetivado não apenas pelo equivalente monetário, mas igualmente com a entrega de uma coisa ou com a prestação de uma atividade que “resulte adequada, em vista da situação concreta, para eliminar (ou minorar) as consequências danosas do fato lesivo”4.
Esse ressarcimento na forma específica, em vista da situação concreta, pode ser exemplificado como a determinação, na decisão condenatória, de cursos voltados à formação de dirigentes visando à adoção de práticas empresariais voltadas à prevenção do assédio moral organizacional em ação coletiva em que restou reconhecida tal prática; a condenação para a realização de cursos técnicos voltados à incrementar a formação da classe trabalhadora, em vista de acidente fatal ocorrido justamente por falta de instrução técnica de empregado; aparelhamento da fiscalização do trabalho escravo em condenação pecuniária envolvendo tal horrenda prática. Inúmeros outros exemplos poderiam ser dados, pois há profusão deles na jurisdição laboral.
A prevalência do direcionamento social significa a premência da proteção ou impacto social da aplicação de uma verdadeira política pública dirigida ao meio social laboral vilipendiado, em detrimento de um mero aparelhamento de um fundo legal receptor de condenações. Novamente em termos processuais, importa dizer a prevalência da tutela ressarcitória na forma específica sobre a tutela pelo equivalente monetário, aqui significando o mero aparelhamento monetário dos fundos legais receptores.
Óbvio que o direcionamento social terá o condão de alcançar, com maior eficácia, a conexão (nexo temático) entre a destinação da condenação pecuniária com o interesse coletivo lesado, por consequência, satisfazendo plenamente o regramento disposto no já citado art. 13 da Lei de regência das ações coletivas, daí a inviabilidade da ADPF em análise. Espera-se que o STF reconheça tais argumentos e inviabilize, desde o início, o trâmite dessa ação de controle concentrado.
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1 Já tratei desse assunto de maneira mais aprofundada no livro COSTA, Marcelo Freire Sampaio. Dano moral coletivo nas relações laborais. 3ª. ed. São Paulo: LTr. 2020.
2 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 32ª. ed. Salvador: Juspodivm. 2021. p. 271.
3 Ibidem, p. 272.
4 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de processo civil. Vol 2. 4ª ed. São Paulo: RT. 2019. p. 493.