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Regulação do teletrabalho em Portugal: do dever de isolamento ao direito à desconexão

Um ponto louvável da nova legislação diz respeito à busca pela preservação da intimidade do trabalhador, com a proibição de contato entre as partes da relação de emprego após o final do expediente.

27/3/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

O isolamento social impôs uma crescente necessidade de adaptação das atividades empresariais ao regime de teletrabalho.

O art. 75-A da CLT definiu esta modalidade de prestação de serviços como aquela realizada fora das dependências do empregador, com a utilização de tecnologias de informação e de comunicação. Contudo, a lei pouco explorou peculiaridades específicas do teletrabalho, o que é compreensível diante de sua reduzida relevância antes do contexto pandêmico.

Mesmo diante de lacunas, cabe ao direito regular as muitas dúvidas que têm surgido sobre o assunto. Algumas delas pontuais, como a possibilidade de controle da jornada de trabalho e a responsabilidade pelas despesas advindas de atividades prestadas fora das dependências da empresa. Outras, no entanto, muito mais amplas, tal qual a delimitação de fronteiras entre a intimidade do trabalhador e o poder diretivo do empregador.

Em que pese a Justiça do Trabalho tenha se desdobrado para fornecer respostas adequadas para todas estas questões, é notório que apenas normas específicas sobre o tema serão suficientes para estabelecer um patamar mínimo de segurança jurídica para os trabalhadores e para as empresas.

Portugal foi um dos pioneiros na regulação do teletrabalho. A lei 83/21 foi considerada um avanço em muitos pontos, mas igualmente conservadora em outros.

Como regra, o teletrabalho deve ser ajustado de comum acordo. Em algumas situações, entretanto, o trabalhador português passou a ter o direito de exigir a prestação de serviços nestas condições. Temos, por exemplo, que a empresa não pode se opor a pedidos deste tipo quando solicitados por empregados com filhos de até oito anos de idade, sempre que suas funções forem compatíveis com o teletrabalho.

A nova lei também foi expressa em determinar que o empregador é responsável não apenas pela disponibilização dos equipamentos necessários à realização do trabalho, mas também por arcar com o aumento das despesas, como acréscimos na conta de luz ou melhorias em planos de internet.

Entretanto, a realidade tem demonstrado que é muito difícil identificar qual despesa decorre da atividade normal da residência e qual é oriunda do trabalho. E este ponto tem gerado muitas discussões no país: não há clareza na lei sobre a forma pela qual este pagamento deve ser calculado.

Isto fez com que muitas empresas começassem a pagar gratificações em valores fixos, evitando uma apuração individual. Não raramente, em quantias insuficientes para cobertura das despesas adicionais.

Um ponto louvável da nova legislação diz respeito à busca pela preservação da intimidade do trabalhador, com a proibição de contato entre as partes da relação de emprego após o final do expediente. O chamado direito à desconexão ganhou extrema relevância no contexto pandêmico, com o aumento de doenças de natureza psicológica agravadas pela rotina do teletrabalho.

Cada vez mais torna-se difícil a distinção entre o ambiente de descanso e o ambiente de trabalho. Diversos estudos demonstram um aumento no sentimento de culpa por baixa produtividade e maior cobrança interna por desempenho, em que pese o número de horas trabalhadas tenha aumentado. Esta proibição expressa da legislação portuguesa busca, assim, garantir que o trabalhador possa usufruir de períodos de folga ao final de sua jornada.

Temos muito a aprender com os erros e os acertos da legislação portuguesa. A matéria ainda será aperfeiçoada em futuras alterações legislativas e suas lacunas preenchidas pela jurisprudência. Qualquer que seja o caminho traçado em terras brasileiras, fica claro que a regulação do teletrabalho deve ter como norte uma relação de trabalho mais justa e eficiente, buscando robustecer os benefícios para ambos os envolvidos e coibir abusos.

Vitor Prato Dias
Sócio do escritório De Paula Machado, mestrando em Ciências Jurídico-Políticas na Universidade do Porto, em Portugal

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