Migalhas de Peso

Impressões sobre as mudanças trazidas pela lei 14.307/22 na lei dos planos de saúde

Resta saber se as normas regulamentadoras irão preencher as lacunas necessárias e assegurar a almejada “isonomia de acesso à saúde privada com os serviços públicos de saúde”, ou se teremos mais uma norma contribuindo para a excessiva judicialização do acesso à saúde no Brasil.

24/3/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Pesquisas indicam que a pandemia de covid-19 aumentou a preocupação e os cuidados com a saúde para 80% dos brasileiros1. Isso se refletiu no aumento da procura por planos de saúde – crescimento de 3,06% na comparação com janeiro de 2021, atingindo 48,9 milhões de usuários em janeiro deste ano2. Mesmo assim, 42% desse grupo cada vez maior de brasileiros que têm plano de saúde declara que ainda utiliza o SUS, geralmente para vacinação (49,3%), mas também para serviços de especialistas (19,7%)3.

Na visão do governo, um dos fatores relacionados à utilização do SUS por beneficiários de plano de saúde seria o descompasso existente entre a lista dos procedimentos, exames e tratamentos com cobertura obrigatória dos planos de saúde (“Rol da ANS”) e a cobertura oferecida pelo SUS, cujo rol é recomendado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC). Ou seja, parte dessa procura se explicaria pelo fato de existirem procedimentos cobertos pelo SUS, mas que não são obrigatoriamente cobertos pelos planos.

Diante disso, o Ministério da Saúde propôs à Presidência da República a edição da MP 1.067/21, com o objetivo de garantir a “isonomia de acesso à saúde privada com os serviços públicos de saúde” ao tornar o processo de atualização do Rol da ANS mais transparente e equiparado ao do SUS4. A MP 1.067/21 foi então convertida na recém-publicada lei 14.307/22, que traz mudanças para a lei 9.656/98 (Lei dos Planos de Saúde).

Curiosamente, essas mudanças foram ofuscadas pela difusão de fake news5 e outras confusões, como o engano de que a lei 14.307/22 teria instituído a obrigação das operadoras de planos de saúde fornecerem medicamentos para tratamento oncológico. Na verdade, isso já era obrigatório desde 2013, quando a lei 12.880/13 incluiu o fornecimento de antineoplásico de uso oral no rol obrigatório de cobertura para planos de saúde.

Focando no que há de realmente inovador na lei 14.307/22, destacam-se quatro mudanças principais: (1) a inclusão automática no Rol da ANS de tecnologias em saúde com recomendação positiva da CONITEC para serem ofertadas no SUS (art. 10, § 10º); (2) a criação da Comissão responsável pela análise de incorporação de procedimentos no Rol da ANS (art. 10-D); (3) a imposição à ANS do dever de editar norma adotando indicadores e parâmetros similares aos já aplicados pela CONITEC para avaliação da potencial incorporação, nos aspectos de eficácia, custo-benefício e impacto financeiro (art. 10, §5º, e art. 10-D, §3º); e (4) a fixação de prazos para conclusão da análise da proposta de incorporação no Rol da ANS (180 dias e, para os tratamentos oncológicos, 120 dias) e instituição de uma nova hipótese de silêncio administrativo positivo, ao tornar obrigatória a cobertura caso a ANS não se manifeste tempestivamente sobre a inclusão (art. 10, § 7º).

Começando pela inclusão automática no Rol da ANS das tecnologias aprovadas pela CONITEC para o SUS, há de início uma grande questão a ser respondida: com a lei 14.307/22, a ANS fica obrigada a atualizar imediatamente seu rol incluindo todas as tecnologias que são atualmente cobertas pelo SUS (ou seja, fazendo a equiparação imediata da cobertura mínima dos planos de saúde com a cobertura do SUS), ou a inclusão automática só começa a valer para as recomendações de incorporação que a CONITEC editar para o SUS após a entrada em vigor da regra de equiparação das coberturas?6

Há notícias de que interlocutores do governo defendem que a MP 1.607/21 (que colocou a norma de equiparação em vigor antes da lei 14.307/22) deveria ser aplicada retroativamente. Ou seja, o comando legal se aplicaria a todas as recomendações de incorporação oficializadas pela CONITEC mesmo antes da edição da MP 1.607/21, o que abarcaria, por exemplo, a obrigação dos planos de saúde fornecerem as vacinas da Pfizer e da Astrazeneca para a covid-197. Percebe-se logo que a interpretação retroativa convém ao orçamento do governo, pois retira do SUS parte significativa do ônus financeiro da vacinação, mas seria viável (juridicamente e economicamente) impor esse ônus aos planos de saúde de forma tão abrupta?

Por sua vez, a ANS parece não ter dúvidas a respeito: adotou a interpretação ex nunc (ou seja, aplicável somente às recomendações da CONITEC posteriores à edição da MP 1.607/21) e já fez a primeira inclusão automática de um procedimento aprovado para o SUS, referente ao implante de drenagem oftalmológico no tratamento do glaucoma8.

Ademais, a equiparação da cobertura do Rol da ANS com a cobertura do SUS também suscita outras dúvidas pelo fato dos planos de saúde e o SUS seguirem lógicas diferentes. Afinal, o SUS tem como princípios fundamentais a universalidade do direito à saúde (conforme preconiza a Constituição e a lei 8.080/90). Já os planos de saúde operam (supostamente) na lógica contratual, ou seja: os usuários escolhem qual cobertura contratual desejam aderir, e a relação é regida por contratos de adesão, cujos termos são regulados pela ANS (e constantemente flexibilizados pelo Judiciário).

Outro ponto sensível é a criação da Comissão responsável pela análise de incorporação de procedimentos no Rol da ANS. A Agência antecipou-se à conversão da MP 1.067/21 em Lei e editou a Resolução RN 474/2021, criando a COSAÚDE, comissão composta pelos mesmos integrantes da Câmara de Saúde Suplementar (art. 4º da RN 474/219). Ocorre que, durante a tramitação do projeto de conversão da MP 1.067/21 em Lei, os parlamentares alteraram os dispositivos que tratavam da composição da Comissão10, tornando-a mais restrita e incompatível com a composição da COSAÚDE11. Logo, a ANS precisará alterar a RN 474/2021 para adequar a composição da COSAÚDE, ou então as decisões da comissão estarão em desconformidade com a lei 14.307/22 (e sujeitas a anulação).

Outra norma que deve ser editada pela ANS para atendimento da lei 14.307/22 é a que incorpora indicadores e parâmetros similares aos já aplicados pela CONITEC para avaliação sobre a potencial incorporação, nos aspectos de eficácia, custo-benefício e impacto financeiro no procedimento de avaliação. Essa mudança está inserida em uma agenda de transparência e segurança jurídica mais ampla nos procedimentos de incorporação de tecnologias na saúde, da qual também faz parte o PL 1613/2021 (aprovado pelo Congresso e encaminhado para sanção presidencial em 7/3/2022), que reforça a publicidade dos atos e da metodologia de avaliação econômica empregada pela CONITEC12.

Mas, sem dúvida, a mudança mais intrigante da lei 14.307/22 é a criação da “inclusão tácita” no Rol da ANS, que ocorre no caso de a Agência não se manifestar tempestivamente sobre a inclusão ou não de determinado procedimento (art. 10, § 7º). A rigor, essa norma introduz uma inovação no direito administrativo brasileiro (uma nova hipótese de silêncio administrativo positivo), que se distingue das já existentes pelo fato de o silêncio da agência reguladora implicar não somente no surgimento de um direito para o cidadão (o que é saudável para coibir a ineficiência do Estado13) mas também em um ônus a ser suportado por terceiros, que não contribuíram para a mora administrativa – no caso, as operadoras de planos de saúde, que irão arcar com os custos decorrentes da incorporação tácita de procedimentos no Rol da ANS.

A referência mais próxima dessa inovação no direito administrativo brasileiro seria o silêncio administrativo instituído pela Lei de Liberdade Econômica, mas há uma diferença fundamental: a lei 14.307/22 não estabelece requisitos14 e hipóteses de vedação15 para delimitar a validade da aprovação tácita. Ela também não considera o que a doutrina chama de limites implícitos da aprovação tácita, especialmente no tocante à impossibilidade de causar efeitos nocivos a terceiros16 – que, a propósito, se enquadram como terceiros interessados no processo de incorporação, na forma da lei 9.784/9917.

Há ainda uma incoerência entre a instituição de tal hipótese de silêncio administrativo e o objetivo buscado com a lei 14.307/22, que seria aproximar o procedimento de incorporação ao Rol da ANS do procedimento de incorporação de tecnologias do SUS, já que no SUS não existe norma semelhante. No procedimento de incorporação de tecnologias ao SUS, se expirado o prazo para conclusão do processo ainda estiver pendente a análise da CONITEC, a pauta da Comissão fica trancada até a emissão do relatório sobre o processo pendente18. E, se o processo estiver em fase de decisão pelo Secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, ficam sobrestados todos os demais processos prontos para decisão dele até a prática do ato sobre o processo pendente19 (ou seja, não há silêncio administrativo positivo).

Portanto, a primeira impressão sobre as mudanças trazidas pela lei 14.307/22 parece ser de insegurança jurídica. Resta saber se as normas regulamentadoras irão preencher as lacunas necessárias e assegurar a almejada “isonomia de acesso à saúde privada com os serviços públicos de saúde”, ou se teremos mais uma norma contribuindo para a excessiva judicialização do acesso à saúde no Brasil.

__________

1 Foi o que concluiu a Pesquisa da Associação Nacional das Administradoras de Benefícios. Disponível em: https://anab.com.br/wp-content/uploads/2021/11/Pesquisa-ANAB-de-Planos-de-Sau%CC%81de-Versa%CC%83o-Imprensa.pdf. Acesso em 09 de março de 2022.

2 Segundo dados da ANS: https://www.gov.br/ans/pt-br/assuntos/noticias/sobre-ans/janeiro-planos-de-assistencia-medica-alcancam-48-9-milhoes-de-beneficiarios.

3 Também conforme a Pesquisa da Associação Nacional das Administradoras de Benefícios.

4 Conforme razões explicitadas na Nota Técnica 6/2021- DATDOF/CGGM/GM/MS: https://mcusercontent.com/4911ce1e520f5bf26dd891c79/files/2e4ac019-0a0b-6dca-a4f2-796023163648/RESP_NUP_00137_015803_2021_56_17_09_2021_SG_1_Documentos_MP_n._1.067_2021_3_.pdf

5 Em uma delas, é afirmado que o presidente Jair Bolsonaro (PL) assinou uma Medida Provisória que limita os planos de saúde a cobrir apenas tratamentos listados pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec), o que deixaria pessoas com câncer e doenças raras sem tratamento. A notícia falsa foi desmentida pela checagem de fatos da CNN Brasil: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/mp-assinada-por-bolsonaro-nao-impede-atendimento-de-pessoas-com-cancer/

6 Importante lembrar que a Lei 14.307/2022 é resultado da conversão da MP 1.067/21, o que significa que a data de entrada em vigor da regra é 3/9/2021, data de início da vigência da MP, e não 4/3/2022, quando foi publicada a Lei 14.307/2022.

7 ANS descarta incorporações do SUS retroativas à MP do rol. Manoela Albuquerque. Em 22/10/2021. 

8 ANS incorpora tecnologia do SUS com base na MP do rol, Manoela Albuquerque.

9 “Art. 4º A COSAÚDE será composta pelos membros integrantes da Câmara de Saúde Suplementar - CAMSS, conforme estabelecido na resolução normativa que dispõe sobre o regimento interno da CAMSS.”

10 MP 1.067/2021. “Art. 10-D. § 2º A Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar será composta, no mínimo, por representantes das seguintes entidades:

I - um do Conselho Federal de Medicina;

II - um do Conselho Federal de Odontologia; e

III - um do Conselho Federal de Enfermagem.”

11 “Art. 10-D. Fica instituída a Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar à qual compete assessorar a ANS nas atribuições de que trata o § 4º do art. 10 desta Lei.

§ 2º A Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar terá composição e regimento definidos em regulamento, com a participação nos processos de:

I - 1 (um) representante indicado pelo Conselho Federal de Medicina;

II - 1 (um) representante da sociedade de especialidade médica, conforme a área terapêutica ou o uso da tecnologia a ser analisada, indicado pela Associação Médica Brasileira;

III - 1 (um) representante de entidade representativa de consumidores de planos de saúde;

IV - 1 (um) representante de entidade representativa dos prestadores de serviços na saúde suplementar;

V - 1 (um) representante de entidade representativa das operadoras de planos privados de assistência à saúde;

VI - representantes de áreas de atuação profissional da saúde relacionadas ao evento ou procedimento sob análise.”

12 PL 1.613/2021. “Art. 19-Q § 3º As metodologias empregadas na avaliação econômica1 a que se refere o inciso II do § 2º deste artigo serão dispostas em regulamento e amplamente divulgadas, inclusive em relação aos indicadores e parâmetros de custo-efetividade utilizados em combinação com outros critérios.”

“Art. 19-R § 1º V – distribuição aleatória, respeitadas a especialização e a competência técnica requeridas para a análise da matéria;

VI – publicidade dos atos processuais.”

13 André Saddy cita alguns exemplos de silêncio positivo, todos referentes a atos liberatórios da administração, mas nenhum deles gera ônus para terceiros. São eles referentes à: (i) Zona Franca de Manaus; (ii) Planos e projetos de desenvolvimento e produção de petróleo e gás natural; (iii) parcelamento de obrigações pecuniárias vencidas e não pagas; (iv) parcelamento de débitos devidos em decorrência da aplicação de multas de trânsito; (v) reajuste ou revisão das tarifas de delegatários de serviço público; (vi) baixa nos registros de microempresas e empresas de pequeno porte; (vii) alterações da razão social e dos sócios; (viii) renovação de autorizações de uso de radiofrequência; (ix) aprovação de atos de concentração econômica; (x) autorização para execução da obra de ocupação de faixas de domínio; (xi) acionamento do fundo garantidor pelo parceiro privado nas Parcerias Público-Privadas (SADDY, André. “Silêncio Administrativo no Direito Brasileiro”. Rio de Janeiro: Forense, 2013).

14 Conforme a Lei de Liberdade Econômica, esses requisitos seriam, em suma, a existência de solicitação dos interessados, de ato administrativo de natureza liberatória, que venha acompanhado dos elementos instrutórios exigidos, bem como a fixação de um prazo de decisão pela administração e que venha a ser violado (art. 3º, inc. IX da Lei de Liberdade Econômica).

15 Na Lei de Liberdade Econômica, o silêncio positivo não se aplica a ato público de liberação relativo a questões tributárias ou de concessão de registro de direito de propriedade intelectual, a decisão administrativa que importar compromisso financeiro, a decisão sobre recurso interposto contra ato administrativo denegatório de solicitação de liberação de atividade econômica, quando o pedido de ato liberatório tiver sido formulado por agente público ao órgão ou entidade em que exerça suas funções, quando as atividades objeto do ato liberatório requerido tiverem impacto significativo ao meio ambiente, quando o requerente renunciar ao direito de aprovação tácita, e em todas as hipóteses vedadas em lei especial (art. 3º, §6º da Lei de Liberdade Econômica).

16 Na doutrina de Thiago Marrara, os outros limites implícitos seriam: (i) a clareza e determinação do pedido apresentado à administração pública; (ii) a juridicidade formal e material do pedido; e (iii) a ausência de responsabilidade do requerente interessado pelo atraso e pelo decurso do prazo (MARRARA, Thiago. “Administração que cala consente? Dever de decidir, silêncio administrativo e aprovação tácita”. In: “Rev. Direito Adm.”, Rio de Janeiro, v. 280, n. 2, p.227-264, maio/ago. 2021).

17 “Art. 9º São legitimados como interessados no processo administrativo: II - aqueles que, sem terem iniciado o processo, têm direitos ou interesses que possam ser afetados pela decisão a ser adotada;”

18 Decreto 7.646/2011. “Art, 24. §2º Na impossibilidade de cumprimento dos prazos previstos no caput, o processo administrativo entrará em regime de urgência, nos seguintes termos:

I - se o processo estiver em análise pela CONITEC, ficam sobrestadas todas as deliberações a respeito de processos prontos para avaliação até a emissão do relatório sobre o processo pendente;”

19 Decreto 7.646/2011. “Art, 24. §2º, inc. II - se o processo estiver em fase de decisão pelo Secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, ficam sobrestados todos os demais processos prontos para decisão até a prática do ato sobre o processo pendente.”

Ricardo Campello
Sócio do Licks Attorneys. LL.M George Washington University.

Mário Norris
Advogado do escritório Licks Attorneys.

Victoria Coelho
Colaboradora do escritório Licks Attorneys.

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