Migalhas de Peso

O ser humano não aprende

De Bobbio a Gandhi: uma afronta às garantias internacionais na Guerra da Ucrânia.

12/3/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

O tempo passa e a história se repete. Os livros, os registros históricos, os documentos e documentários, tudo aos milhares, estão aí para nos ensinar, mas ao que tudo indica seguimos cometendo os mesmos erros.

Apenas para citar exemplo emblemático: como esquecer das atrocidades que foram cometidas durante a injustificada Segunda Guerra Mundial, quando milhões de pessoas tiveram as vidas cruelmente ceifadas? Ou como esquecer do grande cogumelo que se desenhou no céu do Japão anunciando a trágica explosão de uma bomba nuclear?

Isso seria o bastante para lembrarmos eternamente as marcas que um conflito bélico é capaz de causar à humanidade. Parece, de qualquer modo, que todo esse mal foi rapidamente esquecido e deu lugar às novas e sucessivas guerras armadas nos anos que seguiram.

No dia 24/2/22 a humanidade começou a escrever mais algumas lamentáveis páginas que serão registraras pela história, a despeito de tudo que pudemos aprender hesternamente.

O que para alguns parece ser algo corriqueiro da vida, a outros causa marcas indeléveis que ficam entranhadas para o sempre. É abissal o que esses “poderosos governantes” são capazes de fazer com vidas humanas, sem mencionar outros bens que também estão em jogo, como garantias previstas em normativas da ONU que foram editadas no intento de garantir a pacificação entre os povos.

Aliás, a Carta das Nações Unidas, elaborada após o término da Conferência das Nações Unidas sobre Organização Internacional, assinada em 26 de junho de 1945, na cidade de São Francisco, e que passou a vigorar aos 24 de outubro daquele mesmo ano, foi subscrita com o intuito de preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, assim como para reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade ampla.

Assentou-se, outrossim, naquela ocasião, que os países signatários, entre os quais estava a extinta União Soviética, deveriam, para tais finalidades, fazer prevalecer a prática da tolerância e da vida em paz, uns com os outros, como bons vizinhos, unindo as forças para manter a paz e a segurança internacionais, e a garantir, pela aceitação de princípios e a instituição dos métodos, que a força armada jamais seria usada se não fosse pelo interesse comum.

O jusfilósofo italiano Noberto Bobbio, no alto de sua sapiência, descreveu com notória propriedade a prática da tolerância como princípio basilar para se atingir a convivência social pacífica:

Se somos iguais, entra no jogo o princípio da reciprocidade, sobre o qual se fundam, todas as transações, todos os compromissos, todos os acordos, que estão na base de qualquer convivência pacífica (toda convivência se baseia ou sobre o compromisso ou sobre a imposição): a tolerância, nesse caso, é o efeito de uma troca, de um modus operandi, de um do ut des, sob a égide do “se tu me toleras, eu te tolero”. É bastante evidente que, se me atribuo o direito de perseguir os outros, atribuo a eles o direito de me perseguirem. Hoje é você, amanhã sou eu. Em todos esses casos, a tolerância, é evidentemente, conscientemente, utilitariscamente, o resultado de um cálculo e, como tal, nada tem a ver com o problema de verdade. (BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. P. 207).

Ademais, no artigo 1º da reportada Carta, ficaram consignados os propósitos das Nações Unidas, merecendo destaque a manutenção da paz e da segurança internacionais, a adoção coletiva de medidas efetivas para evitar ameaças à paz tal qual a reprimenda aos atos de agressão ou qualquer ruptura da paz e chegar, por meios pacíficos e de conformidade com os princípios da justiça e do direito internacional, a um ajuste ou solução das controvérsias ou situações que possam levar a uma perturbação da paz.

Para a consecução dos propósitos alhures mencionados, estipulou-se que todos os Membros deverão resolver suas controvérsias internacionais por meios pacíficos, de modo que não sejam ameaçadas a paz, a segurança e a justiça internacionais, evitando em suas relações a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a dependência política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas.

Por meio da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, ficou estabelecido que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos e, por serem dotados de razão e consciência, tem o dever de agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade (art. 1º).

E tão importante quanto, os signatários consentiram que “todo ser humano tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados” (art. 28).

Em verdade, não há, absolutamente não há motivo que justifique a situação ora vivenciada no centro da Europa.

As barbáries que hoje podemos assistir em tempo real causam asco, repugnância, medo do que esses governantes, que criam pretextos ignóbeis na vã tentativa de legitimar essa busca ambiciosa e desenfreada por poder, são capazes de orquestrar.

Quisera fôssemos lembrados diariamente da “guerra” travada por Mahatma Gandhi em busca da independência da Índia. Esse pequeno grande homem, um estudioso e humano no mais alto nível de acepção da palavra, lutou incessantemente pelo seu objetivo - libertação do seu povo - sem a necessidade de dar um tapa em ninguém, apesar de todo o poderio inglês e das injustiças que os indianos sofreram. De tudo que li e pude constatar, aquela foi uma guerra pacífica por parte dos liderados por Gandhi.

Esse ser humano deveria servir de exemplo aos miseráveis de alma que “comandam” o mundo.

Fica um apelo pela paz mundial, e a solidariedade a todos os povos e principalmente aos inocentes que estão suportando na pele os efeitos deletérios dessa guerra.

Por fim, vale a reflexão: “Aprendi através da experiência amarga a suprema lição: controlar minha ira e torná-la como o calor que é convertido em energia. Nossa ira controlada pode ser convertida numa força capaz de mover o mundo” (Mahatma Gandhi, 1869 - 1948).

Jamil Garcia
Bacharel em Direito pela Faculdade Estácio de Sá de Santa Catarina. Oficial de Gabinete no Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Especialista em Direito Civil pela Universidade Anhanguera. Especialista em Administração Pública e Gerência de Cidades pela Faculdade de Tecnologia Internacional - FATEC. Especialista em Gestão e Legislação Tributária pela Faculdade de Tecnologia Internacional - FATEC. Especialista em Ciência Política pela Universidade Candido Mendes - UCAM.

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