Migalhas de Peso

A eugenia e as garantias fundamentais

As práticas eugenistas estão lastreadas na teoria que busca o pseudo aperfeiçoamento da espécie humana, pela seleção genética e controle da reprodução. Busca, ainda, o cultivo de condições morais de gerações futuras pelo controle social.

8/3/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

O presente artigo aborda o conceito de eugenia, bem como sua aplicação sob a ótica do Direito, no que tange à aplicação dos direitos e garantias fundamentais de cada cidadão. O propósito é fomentar reflexões substanciais a serem enfrentadas na seara social e jurídica.

Eugenia

A palavra eugenia foi cunhada pelo naturalista e especialista em estatística, Francis Galton, em 1883. O contexto de seu surgimento foram as teorias desenvolvidas por seu primo Charles Darwin1, acerca da seleção natural. Tais estudos desejavam o aperfeiçoamento genético de qualidades inatas. Para alcançá-lo, Darwin iniciou testando grãos, posteriormente animais e, por fim, seres humanos.2

Em pouco tempo, as ideias de Darwin foram apropriadas por sociedades ávidas pela disseminação de seu nacionalismo exacerbado, bem como para argumentarem ‘cientificamente’, sobre a superioridade de alguns povos, dignos de dominar povos vistos como inferiores. Podemos usar como exemplo a mais revolucionária obra de Darwin, “A origem das espécies”, que foi primeiro publicada em inglês, em novembro de 1859, e posteriormente traduzida para outros idiomas, como o chinês, francês, alemão, italiano, russo, espanhol e português, dentre tantos outros. As traduções do livro demonstram que houve especial interesse dos países nos quais a obra foi republicada.

No entanto, as práticas eugenistas já eram aplicadas em diversas sociedades, mesmo antes da definição do conceito por Francis Galton3. Os espartanos, por exemplo, executavam aqueles que nasciam com algum tipo de deficiência física e/ou mental. Os pensadores e filósofos gregos não se sujeitavam ao trabalho braçal, afirmando que este seria destinado às pessoas desprovidas de um intelecto melhor elaborado.

Durante os séculos XIX e XX, a eugenia foi estabelecida ciência4. O objetivo dessa decisão era um controle reprodutivo, prezando por características desejáveis específicas. Em contrapartida, essa seleção de traços esperados eliminava os disgênicos. Os atributos que compunham a eugenia estavam vinculados a teorias raciais, ao determinismo biológico e a medição antropométrica e craniométrica. As pessoas eram classificadas de acordo com seu fenótipo, em grupos étnicos superiores ou inferiores.5

No Brasil, as práticas eugenistas que cerceavam a liberdade dos indivíduos ocorreram com a escravização dos povos indígenas e africanos.

Os africanos, distantes de seu território, do seu povo, de suas origens históricas, tiveram a identidade retirada devido a escravidão transatlântica, ao mesmo passo em que os indígenas perdiam quaisquer direitos que tinham sobre suas terras e também suas vidas. Ambos os povos foram subjugados e assassinados com base na crença de que não eram seres dignos de respeito, por suas raízes.

Contudo, o eugenismo não foi aceito passivamente. Além das fugas, suicídios, assassinatos, sabotagens e roubos que compunham a resistência contra o sistema colonial escravocrata, houve a criação dos quilombos, que ocorreu desde o final do século XVII até os primeiros 50 anos do século XIX.6 A criação do Quilombo de Palmares é um exemplo notável.

Durante a segunda guerra mundial, algumas técnicas de despersonalização, citadas por Todorov7, foram utilizadas contra os prisioneiros nos campos de concentração. Essas técnicas também são associadas com as mesmas formas de desumanização aplicadas na escravização de povos africanos. Por exemplo, os cativos, antes de embarcarem eram tratados como gados. O transporte, transatlântico ou ferroviário, ocorria de forma inadequada, com escassez de alimentos e condições mínimas de higiene. Havia, também, a substituição do nome e o trabalho forçado, dentre outras práticas que retiravam toda a dignidade desses grupos. Essas ações, que tinham como objetivo garantir o domínio branco e ariano, traziam em seu conceito a filosofia eugenista da supremacia de raças, intrincada profundamente em suas próprias crenças.

Conforme demonstrou Laurentino Gomes em sua obra Escravidão8, a liberdade e os direitos garantidos ao ser humano, idealizados e debatidos pelos filósofos e pensadores iluministas, na prática era destinada apenas a estereótipos específicos de seres humanos, “pessoas bem nascidas, racialmente puras”.

Além da imposição desumana, a eugenia alimentou o conceito do racismo, e consequentemente, comportamentos que perpetuam a ideia de uma “raça melhor”. Ao observarmos a escultura em bronze, intitulada “Amnésia”, produzida pelo artista Flávio Cerqueira, em 2015, atualmente exposta no Museu de Arte de São Paulo – MASP, vê-se um menino negro com as mãos erguidas segurando um balde de tinta branca látex, que é derramada sobre a sua cabeça. Consta na legenda, a referência ao branqueamento dos povos negros, algo que é intrínseco à filosofia eugenista, o embranquecimento.

A ideologia do embranquecimento foi aplicada no Brasil entre o final do século XIX e início do século XX. Ela consistia na crença de que era necessário tornar a população brasileira branca, visto que grande parte da população residente do país era racializada. A partir da libertação da escravatura, essa necessidade foi agravada pela demanda de substituição da mão-de-obra que fora perdida.

O branqueamento sempre foi oficializado em nosso país, e o incentivo à imigração de povos europeus foi um fator decisivo para a aplicação dessa doutrina. Cedendo terras a estes, ou chamando para trabalhar como mão-de-obra assalariada, a intenção era tornar mais branca a identidade da nação brasileira. Tal imigração, subsidiada pelo governo brasileiro, foi tão intensa e explícita que a quantidade de imigrantes livres que entraram no Brasil em menos de um século, superou a chegada de escravizados africanos durante três séculos.9

Assim, é fácil perceber que o discurso eugenista está presente na interpretação da obra “Amnésia”, mencionada. Permeia o contexto histórico tentando legitimar povos a se apropriarem da ideia como argumento para dar vazão ao seu domínio sobre outros. Porém, como Todorov já disse, “a transformação de pessoas em não pessoas, em seres animados, mas não humanos, nem sempre é fácil”10, tampouco desejável.

Em 1988, a Constituição Federal brasileira adotou o princípio da igualdade de direitos, prevendo a igualdade de aptidão, isto é, uma igualdade de possibilidades virtuais, ou seja, todos os cidadãos têm o direito de tratamento idêntico pela lei, em consonância com os critérios albergados pelo ordenamento jurídico.11 Nossa atual Carta Política preconiza que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Garante-se a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (art. 5º, caput), independente de seu grupo étnico, condenando quaisquer atos de teor racista e supremacista.

Conclusão

Como vimos, as práticas eugenistas estão lastreadas na teoria que busca o pseudo aperfeiçoamento da espécie humana, pela seleção genética e controle da reprodução. Busca, ainda, o cultivo de condições morais de gerações futuras pelo controle social.

Mas, tais práticas de teor preconceituoso e condenável, infelizmente, continuam presentes nas relações sociais. Desde os costumes espartanos e gregos de executar os que nasciam com algum tipo de deficiência física e/ou mental, até as ideologias que definem raças superiores e características físicas mais desejáveis para seres humanos perfeitos, a prática eugenista se faz presente, em atitudes racistas consideradas tão comuns que passam despercebidas.

Um exemplo é a teoria do branqueamento, que foi aplicada no Brasil desde a sua fundação e foi perfeitamente representada pela obra Amnésia, mencionada anteriormente. O trabalho representa um período da nossa história, que deve ser lembrado para não ser mais repetido.

Portanto, é latente a necessidade de promoção de mais debates que contribuam para a igualdade e humanização do ser. Nossa Constituição Federal veda a desigualdade entre os seres humanos, preconiza que todas as pessoas devem ser tratadas como iguais, na medida em que se desigualam. Esta é uma exigência inerente ao próprio conceito de Justiça. A efetiva concretização dessas garantias deve continuar sendo a luta dos estudiosos do tema e profissionais do direito.

_____

1 DARWIN, 2009, p. 85-124; 166- 214; 397- 419.

2 GALTON, 1904, p. 1; ALVES&PIZOLATI, 2019, p. 430.

3 MIRANDA, 2009, p. 280.

4 CONT, 2013, p. 512.

5 SEYFERTH, 1995, p. 176-177.

6 MARQUESE, 2006, p. 108-109.

7 TODOROV, 2017, p. 259-269.

8 GOMES, 2021, p. 420-423.

9 HERNÁNDEZ, 2017, p. 53-54.

10 TODOROV, 2017, p. 261.

11 MORAES, 2002, p. 180.

12 ALVES, Alexandre; PIZOLATI, Audrei Rodrigo da Conceição. Eugenia, educação e saber médico: o discurso eugênico na I Conferência Nacional de Educação (1927). Revista História & Ensino, Londrina, v. 25, n. 1, p. 427-451, jan./jun. 2019. Disponível em: http://www.uel.br/ revistas/uel/index. php/histensino/article/viewFile/33680/25789

13 CONT, Valdeir del. O controle de características genéticas humanas através da institucionalização de práticas socioculturais eugênicas. Scientiae studia, v. 11, n. 3, p. 511-530, 2013. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S167831662013000300004&lng=pt&nrm=iso&tlng=en. 

14 DARWIN, Charles. A origem das espécies. Através da seleção natural ou a preservação das raças favorecidas na luta pela sobrevivência. Tradução Ana Afonso. Coleção PLANETA DARWIN: Planeta Vivo, 1 edição, novembro de 2009. Disponível em: http://darwin-online.org.uk/ converted/pdf/2009_OriginPortuguese_F2062.7.pdf. 

15 GALTON, Francis. Eugenics: its definition, scope, and aims. The American Journal of Sociology, v. 10, n. 1, p. 1-25, 1904. Disponível em: http://galton.org/essays/1900-1911/galton-1904-am-journ-soc-eugenics-scope-aims.htm. 

16 GOMES, Laurentino. Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares, volume 1, 1. ed. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019.

17 Escravidão: da corrida do ouro em Minas Gerais até a chegada da corte de dom João ao Brasil, volume 2, 1.ed. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2021.

18 HERNÁNDEZ, T.K. A versão brasileira da legislação Jim Crow: o projeto de embranquecimento do direito de imigração e o direito costumeiro de segregação racial: um estudo de caso. In: Subordinação racial no Brasil e na América Latina: o papel do Estado, o Direito Costumeiro e a Nova Resposta dos Direitos Civis [online]. Translated by Arivaldo Santos de Souza and Luciana Carvalho Fonseca. Salvador: EDUFBA, 2017, pp. 53-73. Disponível em: https://books.scielo.org/ id/jr9nm/pdf/hernandez-9788523220150-05.pdf

19 MARQUESE, Rafael de Bivar. A dinâmica da escravidão no Brasil. Resistência, tráfico negreiro e alforrias, séculos XVII a XIX. Novos Estudos, CEBRAP 74, março/2006, p. 107-123.

20 MIRANDA, Carlos Alberto Cunha. Uma estranha noção de ciência: repercussões do pensamento eugênico no Brasil. Clio - Série Revista de Pesquisa Histórica, n. 27, v. 1, 2009.

21 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo: Atlas, 2002.

22 SEYFERTH, Giralda. A invenção da raça e o poder discricionário dos estereótipos. Museu Nacional, UFRJ. Anuário Antropológico, Rio de Janeiro, v. 18, n. 1, p. 175-203, 1995. Disponível em: https:// periodicos.unb.br/index.php/anuarioantropologico/article/view/6581. Acesso em: 15 set. 2020.

23 TODOROV, Tzvetan. Diante do extremo. Traduzido por Nícia Adan Bonatti. São Paulo: Editora Unesp, 2017.

Eliane dos Santos Malheiros
Professora. Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Londrina. Especialista em Metodologia do Ensino Superior pela Universidade Norte do Paraná

José Ailton Garcia
Advogado, Doutor em Direito Processual Civil, Professor Convidado na Pós-Graduação da PUC SP, do Mackenzie e da Escola Superior da Advocacia ESA OAB. Autor de diversas obras jurídicas.

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