Migalhas de Peso

A real importância do princípio da intervenção mínima do Estado nas relações privadas

Devemos realmente esquecer o brocardo pacta sunt servanda nos contratos regidos pelo CDC? Ou ainda temos parâmetro nos princípios da autonomia da vontade e da intervenção mínima do Estado?

8/3/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

O negócio jurídico nasce da vontade de duas ou mais partes. Para que este negócio seja válido e eficaz, há a necessidade de vários requisitos, dentre eles que essa vontade seja sem vícios, que as partes sejam capazes civilmente e que o objeto pactuado seja lícito. O contrato em si não é revestido apenas de cláusulas, mas o seu pilar deve ser fixado nos princípios contratuais.

Afinal, os princípios são as premissas éticas que inspiram a elaboração das normas jurídicas. São mais do que normas, pois sua função primordial é servir como critério de interpretação destas, devendo ser observados pelo legislador quando elabora as leis; pelos juízes quando as aplica; e pelo cidadão quando realiza o negócio jurídico.

Em relação às partes, o princípio contratual basilar das relações negociais é o pacta sunt servanda, pois é o princípio da força obrigatória que abrange os contratos firmados entre duas ou mais partes. Referido princípio consiste na ideia de que aquilo que está estabelecido no contrato e assinado pelas partes deve ser cumprido.

Conexo a este princípio, temos o princípio da autonomia da vontade, que confere às partes a liberdade de estipular as cláusulas contratuais e o tipo de contrato que lhes favorecer. Assim dispõe o parágrafo único do art. 421 do Código Civil: “Nas relações contratuais privadas, prevalecerá o princípio da intervenção mínima do Estado, por qualquer dos seus poderes, e a revisão contratual determinada de forma externa às partes será excepcional.”

Externamente, temos o princípio da Intervenção Mínima do Estado, que minimiza a interferência dos três poderes do Estado nas relações contratuais privadas. Este princípio tem dois aspectos.

O primeiro ponto trazido se refere às normas contratuais, pois nas relações privadas, via de regra, as normas devem ser dispositivas, ou seja, suscetíveis de serem alteradas pela vontade das partes. Trata-se de uma diretriz a ser seguida pelo legislador, que só poderá editar normas cogentes em caráter excepcional.

O segundo aspecto seria em relação à revisão judicial do contrato através de sentença proferida pelo juízo. Em regra, essa revisão pelo Judiciário é proibida, salvo em caráter excepcional para se fazer cumprir os princípios da supremacia da ordem pública, da função social do contrato e da boa-fé objetiva.

Respeitando-se todos esses princípios, chegaríamos à conclusão de que a procura pelo Judiciário em relação às desavenças contratuais seriam ínfimas, afinal, as partes deveriam cumprir os contratos pactuados.

Mas como no Direito nada é tão simples como parece, desde o surgimento do Código de Defesa do Consumidor, esses princípios passaram a ser afastados quando se fala em partes relativamente desiguais e o consumidor assume a esfera de hipossuficiente na relação, assim, o Judiciário se vê na obrigação de balancear essa desigualdade e na maioria das vezes interfere drasticamente na relação negocial quando procurado.

Assim, os princípios anteriormente tidos como primordiais agora passam a ser esquecidos, uma vez que a intervenção do Judiciário nos contratos privados passa a ser cada vez mais frequente, principalmente quando falamos em contrato de adesão.

Contudo, esse entendimento da necessidade de intervenção do judiciário na relação negociais não é pacificado, alguns juízes ainda levam em consideração os princípios basilares, conforme se verifica nas respeitáveis sentenças:

“(...)O princípio do pacta sunt servanda não apresenta espectro absoluto, contudo, sua mitigação exarcebada redunda em nítido gravame à segurança jurídica. Refoge à mais lídima noção de boa-fé que um aderente concorde com determinada cláusula contratual e, a posteriori, bata às portas do Poder Judiciário no desiderato de afastar sua aplicação. (...) Na confluência do exposto, JULGO IMPROCEDENTE a pretensão inicial, COM RESOLUÇÃO DO MÉRITO; artigo 487, I, do Código de Processo Civil. Desacolho, destarte, na íntegra, a pretensão tendente à revisão de cláusulas contratuais. Atento à sucumbência, deverá a parte autora arcar com as custas processuais, além de honorários advocatícios de dez por cento do valor atualizado dado à causa. Oportunamente, arquivem-se os autos com as cautelas de praxe. (TJ-SP. Processo nº 1004656-27.2020.8.26.0278. Juiz de Direito: Sergio Ludovico Martins. 3ª Vara Cível da Comarca de Itaquaquecetuba-São Paulo)”

“(...) Dessa maneira, inexiste qualquer prova de vício na manifestação da vontade autoral, que, livremente, entabulou o empréstimo de fls. 16/18, ciente dos valores das parcelas que pagaria. Ademais, o referido contrato apresenta de forma clara o valor das parcelas, taxa de juros, encargos incidentes e a duração, em nada induzindo ao acolhimento da pretensão autoral. Portanto, não havendo vício ou ilegalidade na contratação, mas tão somente um provável arrependimento posterior da parte autora, não há como afastar o princípio da autonomia da vontade e da obrigatoriedade dos contratos – pacta sunt servanda –, afinal ninguém é obrigado a firmar contrato, tendo as partes autonomia e liberdade de realizar seus negócios jurídicos, podendo escolher livremente com quem desejam contratar, não cabendo ao judiciário, nesta hipótese, intervir no negócio jurídico realizado entre as partes. (...) Não mitigarei o princípio pacta sunt servanda em contrato de mútuo feneratício no qual não houve vício na manifestação de vontade autoral. Caberia à parte autora pesquisar o serviço bancário menos custoso, não cabendo ao Judiciário interferir na autonomia de vontades, sob pena de paternalismo injustificado. (...) Por isso, JULGO IMPROCEDENTES OS PEDIDOS. Sem custas ou honorários, nos termos do art. 55 da Lei 9.099/95. (TJ-AM. Processo nº 0634964-47.2021.8.04.0001. Juiz de Direito: Antonio Itamar de Sousa Gonzaga. 6ª Vara do Juizado Especial Cível da Comarca de Manaus-Amazonas).

Em que pese algumas sentenças ainda ressaltarem a obrigatoriedade dos contratos e a intervenção mínima do Estado, muitos juízes são contrários a essas premissas e decidem pela revisão contratual, modificando cláusulas previamente pactuadas pelas partes, o que leva a uma insegurança jurídica muito grande, pois o entendimento não é pacificado.

Assim, muito embora os contratos de adesão, em que há restrição em relação à discussão das cláusulas, tenham tomado conta da maior parte dos negócios jurídicos realizados atualmente, é certo que a autonomia de vontade não deixa de existir nessa modalidade de negócio, afinal, a parte contratante continua tendo a liberdade de escolher a pessoa com quem irá contratar, e, ainda, consentindo ou não com a celebração do negócio jurídico.

Cabe aqui o questionamento se o Código de Defesa do Consumidor veio realmente para resguardar o consumidor hipossuficiente, ou abrir margem para que o Judiciário seja abarrotado de revisões contratuais com a justificativa de balancear as desigualdades. Interroga-se se, na realidade, não está na hora de uma revisão do Código, afinal, já se passaram mais de 30 anos de sua vigência e muita coisa evoluiu, principalmente o consumidor, que hoje dispõe de acesso às informações pela internet.

Vanessa Vasconcellos Morinigo
Advogada no escritório Parada Advogados.

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