Migalhas de Peso

Há crime na captação de clientela em anúncios virtuais e ferramentas de busca?

A manipulação de anúncios digitais e ferramentas de pesquisa virtual pode ser considerada ato de concorrência desleal e captação de clientela, sujeitando os autores a condenações diversas.

3/3/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

A competitividade do livre mercado é a força motriz do sucesso comercial. A própria Constituição da República erige a livre concorrência como princípio da ordem econômica pátria, fundada também na livre iniciativa (art. 170, IV, CR). A liberdade para concorrência, contudo, não pode ser exercida sem limites: a liberdade conferida pela Constituição não significa chancela para abuso. Por isso, no mesmo Título em que a Constituição indica a livre concorrência como princípio da ordem econômica, estão previstos também o princípio da defesa do consumidor (art. 170, V, CR) e a repressão ao “abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros” (art. 173, § 4.º, CR). Existe um equilíbrio que deve ser visado no cenário da livre concorrência comercial.

Justamente por isso, e num contexto de competitividade que se desenrola cada vez mais no plano virtual, tem-se dado atenção aos casos de aparentes abusos da liberdade de concorrência por meio da manipulação seletiva de anúncios e termos de pesquisas virtuais. Como já indicado em diversos escritos que abordaram o tema1, essa estratégia consiste na criação de anúncios “clonados” e/ou utilização seletiva de termos de pesquisa — em sistemas de consulta como o Google, Yahoo e Bing — que vinculam palavras-chave comumente associadas a determinadas marcas a anúncios publicados justamente por seus concorrentes. Em resumo, uma marca compra/cria anúncios virtuais que se assemelham e/ou utilizam palavras-chave relacionadas a uma outra marca concorrente. Assim, quando o consumidor realiza consulta de termos que normalmente remeteriam a uma determinada marca, ele se depara com anúncios de marca que compete diretamente com aquela primeira. Essa estratégia tem sido identificada como “brand bidding” ou “sequestro de anúncios”.2

Como exemplos já julgados pelos Tribunais Pátrios, temos: (i) ação movida pela Empreendimentos Quetzal Comércio de Brinquedos e Papelaria Ltda. (detentora do domínio virtual “www.saciperere.com.br”) contra as rés Microsoft Ltda. e Americanas.com S.A., no qual as rés foram civilmente condenadas por atos de concorrência desleal e desvio de clientela por terem vinculado o domínio da autora ao domínio da segunda ré, permitindo o acesso ao site da autora apenas por meio do domínio da segunda ré, sua concorrente direta no segmento comercial3; e (ii) a condenação da 123 Viagens e Turismo Ltda. (123 Milhas) pela utilização do termo “decolar” por meio da ferramenta Google Ads, desviando em seu favor as consultas relacionadas à concorrente Decolar.com Ltda.4

Parece haver consenso quanto à natureza abusiva de tais práticas e quanto às cabíveis consequências de natureza cível e patrimonial. Há, contudo, que se indagar acerca da possibilidade de tais fatos também constituírem crimes, sujeitando seus autores a penas criminais. Recente publicação no Migalhas indicou o possível enquadramento dessas condutas nos crimes previstos nos arts. 1895 e 1956 da lei 9.279/96, que tutelam direitos e obrigações relativos à propriedade industrial. A pergunta, porém, é mais complexa do que pode parecer em princípio, e a resposta demanda cuidados.

De fato, a lei 9.279/96 criminaliza condutas praticadas contra marcas registradas, de concorrência desleal e de desvio de clientela. Ainda, atos de “brand bidding” e “sequestro de anúncios” têm realmente sido reconhecidos como atos de concorrência desleal e desvio de clientela.7 Os casos, contudo, possuem natureza cível, de modo a ensejar consequências patrimoniais e obrigacionais, mas não responsabilidade penal. Reconhecer a ocorrência de concorrência desleal e desvio de clientela, portanto, não pressupõe afirmar a ocorrência de crime de concorrência desleal ou captação de clientela.8

Do ponto de vista do Direito Civil e Empresarial, na acirrada competição entre marcas e grandes empresas no cenário de livre concorrência, é interessante aos concorrentes/litigantes que possam contar com advertências de natureza criminal. Por vezes, a ameaça de aplicação de penas criminais surtirá mais efeitos do que a ameaça de condenação à reparação de danos na esfera cível. Por isso, grandes empresas e bancas altamente qualificadas de advocacia empresarial podem enxergar vantagens em tentar submeter essas práticas comerciais potencialmente abusivas ao campo do Direito Penal. Sendo os delitos da lei 9.279/96 crimes de iniciativa privada por via de queixa-crime (art. 199), pode-se cogitar tentativas de utilizar indevidamente o direito penal como instrumento de coação para discussões que devem permanecer na seara cível.

Assim como a livre concorrência, a proteção ao consumidor e a repressão ao abuso do poder econômico dependem de cuidadoso equilíbrio, a aplicação do Direito Penal também deve se equilibrar com os direitos fundamentais, as garantias do indivíduo e os limites ao exercício do poder punitivo estatal. A mera previsão legal de imputação de crimes de concorrência desleal e de captação de clientela, no âmbito de disputas de mercado, não deve justificar a mitigação dos limites impostos ao poder punitivo, que vinculam a responsabilização criminal à demonstração de ocorrência de conduta humana típica, antijurídica e culpável.

Salvo em casos de delitos ambientais9 — e mesmo nesses casos, sob alvo de críticas doutrinárias —, pessoas jurídicas não podem ser sujeitos ativos de crimes. Essa primeira premissa já deve ser levada em conta a fim de mitigar eventual utilização oportunista do aparato criminal em disputas comerciais: uma empresa não pode ser acusada por outra pela prática de crime de concorrência desleal.

Eventual queixa-crime deverá demonstrar, portanto, quais teriam sido as pessoas naturais que, de forma consciente e voluntária, praticaram condutas que resultaram em “brand bidding” ou “sequestro de anúncios”. E mais: a peça acusatória deverá demonstrar que tais pessoas tinham ciência quanto ao método específico utilizado — v.g. associação de palavras-chave com remissão a empresas/marcas concorrentes e/ou criação de anúncios “clonados” — para realização de tais atos, sob pena de ausência de elemento subjetivo do delito. Por fim, a queixa-crime deverá demonstrar a materialidade de tais atos, com provas documentais sólidas quanto à utilização desses subterfúgios a fim de manipular anúncios digitais e resultados de pesquisas virtuais.

Obedecer a esses requisitos, que insculpem alguns dos limites mínimos aplicáveis na seara penal, não é algo fácil. Em casos de empresas cuja hierarquia interna é estratificada e que terceirizam serviços de publicidade, especialmente a virtual, não se pode simplesmente imputar genericamente a prática de tais crimes aos dirigentes e sócios-proprietários. Isso consistiria em tentativa de responsabilização objetiva absolutamente vedada na seara criminal.

Não se nega em absoluto a possibilidade de ocorrência de condutas efetivamente criminosas no âmbito da atividade empresarial competitiva. É claro que efetivas fraudes que maculem intencionalmente a reputação objetiva de marca rival e/ou fraudes deliberadamente empregadas para induzir o consumidor em erro, a título exemplificativo, podem vir a ensejar punição na seara criminal.

O que se argumenta, contudo, é que a disputa comercial entre empresas concorrentes não pode “sequestrar” as ferramentas específicas da seara penal a fim de avançar seus interesses primordialmente econômicos e de mercado. E mais: a disputa de rivais comerciais, principalmente entre aqueles que detêm alto poder econômico, não pode resultar no elastecimento dos requisitos e limites ao poder punitivo estatal. Dentro da lógica própria ao sistema penal, os direitos fundamentais do acusado frente ao poder punitivo prevalecem sobre a livre concorrência e a proteção ao consumidor, principalmente por haver sistema de proteção próprio da lei 9.279/96 mais adequado à tutela de tais interesses.

____________

1 Ver, por exemplo: MIGALHAS, Usar nome de concorrente no Google Ads tem consequência Civil e Penal. Migalhas, 15 fev. 2022; COSTA. Amanda Resende; BURNETT, Thaís Gladys. RIBEIRO. Ana Carolina Spina de Campos. Marcas imitativas: concorrência desleal ou mera coincidência? Migalhas, 5 out. 2021; MIGALHAS, Empresas não podem usar marca de concorrente em palavras-chave ao anunciar na internet. Migalhas, 28 mai. 2019.

2 Brand-bidding é considerada prática de concorrência desleal. Brunner Digital, set. 2021.

3 TJ/RJ, 3.ª Câmara Cível, Apelação Cível n.º 2008.001.60797, Rel. Des. Mario Assis Gonçalves, j. 7 abr. 2009.

4 TJ/SP, 2.ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Apelação Cível n.º 1014930-35.2019.8.26.0068, Rel. Des. Grava Brazil, j. 20 jul. 2021. O caso já foi comentado no Migalhas: 123 Milhas não pode usar "decolar" no Google: "carona no prestígio". Migalhas, 29 jul. 2021.

5 “Art. 189. Comete crime contra registro de marca quem: I - reproduz, sem autorização do titular, no todo ou em parte, marca registrada, ou imita-a de modo que possa induzir confusão; ou II - altera marca registrada de outrem já aposta em produto colocado no mercado. Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.”

6 “Art. 195. Comete crime de concorrência desleal quem: [...] III - emprega meio fraudulento, para desviar, em proveito próprio ou alheio, clientela de outrem; IV - usa expressão ou sinal de propaganda alheios, ou os imita, de modo a criar confusão entre os produtos ou estabelecimentos; V - usa, indevidamente, nome comercial, título de estabelecimento ou insígnia alheios ou vende, expõe ou oferece à venda ou tem em estoque produto com essas referências;”

7 A título exemplificativo, em adição aos casos já citados anteriormente: TJ/SP, 1.ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Agravo de Instrumento n.º 2066080-48.2019.8.26.0000, Rel. Des. Cesar Ciampolini, j. 22 mai. 2019; TJ/SP, 1.ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Apelação Cível n.º 1016104-20.2018.8.26.0196, Rel. Des. Fortes Barbosa, j. 22 mai. 2019.

8 Nesse sentido, os arts. 207 e 209 da Lei n.º 9.279/1996: “Art. 207. Independentemente da ação criminal, o prejudicado poderá intentar as ações cíveis que considerar cabíveis na forma do Código de Processo Civil. [...]” “Art. 209. Fica ressalvado ao prejudicado o direito de haver perdas e danos em ressarcimento de prejuízos causados por atos de violação de direitos de propriedade industrial e atos de concorrência desleal não previstos nesta Lei, tendentes a prejudicar a reputação ou os negócios alheios, a criar confusão entre estabelecimentos comerciais, industriais ou prestadores de serviço, ou entre os produtos e serviços postos no comércio.”

9 Cf. arts. 2.º e 3.º da Lei n.º 9.605, de 1998.

Guilherme Brenner Lucchesi
Advogado sócio da banca Lucchesi Advocacia. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Diretor do Instituto dos Advogados do Paraná.

Ivan Navarro Zonta
Mestrando em Direito pela UFPR. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela ABDConst. Graduado em Direito pela UFPR. Advogado sócio da Lucchesi Advocacia.

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