Em razão da expansão dos negócios interestaduais, impulsionada pela difusão das vendas por meio de e-commerce, os Estados viram a necessidade de reequilibrar o recolhimento do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços - ICMS.
Até o ano de 2015, a totalidade do valor do imposto ICMS pago pela empresa prestadora do serviço ou vendedora era destinada ao Estado em que ela estava sediada. Assim, exemplificativamente, numa venda de mercadoria interestadual de uma empresa sediada em São Paulo para um destinatário localizado no Tocantins, o imposto era recolhido com base na alíquota aplicável em São Paulo e o valor integralmente destinado para a Fazenda de São Paulo, nada recebendo Tocantins pela realização dessa operação comercial.
A fim de equalizar a questão, foi editada a EC 87/2015, criando o Diferencial de Alíquota – DIFAL do ICMS. A alteração constitucional estabeleceu que “caberá ao Estado de localização do destinatário o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna do Estado destinatário e a alíquota interestadual”1.
A regulamentação dessa divisão se fez por meio do Convênio ICMS 93/2015. Contudo, os contribuintes identificaram a inexistência de lei complementar regulamentando a matéria, conforme exige o artigo 146 da Constituição Federal.
O tema chegou ao Supremo Tribunal Federal, por meio do Recurso Extraordinário 1.287.019, com repercussão geral (Tema 1.093), e da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.469. Em 24 de fevereiro de 2021, o STF julgou procedente referida ADI, para declarar a inconstitucionalidade formal das cláusulas 1ª, 2ª, 3ª, 6ª e 9ª do Convênio ICMS 93/2015. Ainda, deu-se provimento ao Recurso Extraordinário, fixando a invalidade de cobrança em operação interestadual envolvendo mercadoria destinada a consumidor final não contribuinte do DIFAL/ICMS, pela inexistência de lei complementar disciplinadora.
Ainda, foi fixada a seguinte tese de repercussão geral: “A cobrança do diferencial de alíquota alusiva ao ICMS, conforme introduzido pela emenda EC 87/2015, pressupõe a edição de lei complementar veiculando normas gerais"2.
Contudo, a fim de não gerar grave prejuízo aos cofres públicos, o STF modulou os efeitos da sua decisão, para que produzissem efeito a partir de 2022, permitindo que os Estados continuassem a exercer a cobrança nos moldes praticados até então durante o ano-calendário 2021. Ainda, sendo a decisão de fevereiro de 2021, haveria tempo suficiente para o Poder Legislativo promulgar a lei complementar necessária para regularizar a cobrança a partir do ano-calendário 2022.
Assim, diante da decisão do STF, o Congresso Nacional aprovou, ainda em 2021, o Projeto de lei complementar 32/2021, regulamentando a cobrança do DIFAL/ICMS. Contudo, somente houve sancionamento da Presidência da República em 04 de janeiro de 2022, sendo publicada a lei complementar 190/2022, em 05 de janeiro de 2022.
E assim surgiu uma nova celeuma jurídica sobre a questão.
A Constituição Federal estabelece em seu artigo 150, III, alínea b, a vedação de cobrança de tributos no mesmo exercício financeiro em que foi publicada a lei que o instituiu. Assim, pelo princípio da anterioridade anual, com a publicação da lei Complementar 190/2022, sustenta a Advocacia tributária que a cobrança do DIFAL/ICMS por ela estabelecido e regulamentado só poderá ocorrer em 2023. Nesse sentido já começam a surgir decisões judiciais suspendendo a cobrança do DIFAL/ICMS em 20223.
Para além das discussões técnico-jurídicas de caráter tributário, que fogem do escopo do presente texto, cabe indagar qual será a consequência jurídica-criminal para aqueles que não recolherem o ICMS/DIFAL no ano de 2022.
A lei 8.137/90 estabelece ser crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo por meio de determinadas condutas descritas nos incisos do artigo 1º, além de ser crime deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos. O STJ, ao julgar o HC 399.109/SC, fixou o entendimento de que o simples não recolhimento de ICMS descontado ou cobrado é crime, ainda que tal imposto esteja devidamente registrado, apurado e declarado em guia própria ou em livros fiscais.
Assim, existindo, de um lado, os Estados Federativos com leis publicadas em 2021 estabelecendo a cobrança do DIFAL/ICMS a partir de abril de 2022, e, de outro, o não respeito ao princípio da anterioridade anual para a cobrança desse tributo em razão da ausência de lei complementar, com decisões judiciais reconhecendo a inexigibilidade do tributo antes de 2023, qual a segurança jurídica do contribuinte no não recolhimento do imposto em face da possibilidade de responsabilização penal?
De fato, segurança jurídica não há.
Contudo, o não recolhimento do DIFAL/ICMS, diante da celeuma jurídico-tributária sobre o tema, permite o afastamento do crime de sonegação fiscal, ainda que a Fazenda e o Poder Judiciário posteriormente venham a entender ser exigível o recolhimento em 2022.
Isso porque o Código Penal prevê soluções jurídicas para aquele que age em erro escusável, como o que advém da insegurança jurídica ora tratada. Temos na Parte Geral do Código Penal dois tipos de erro, o de tipo e o de proibição.
O erro de tipo está previsto no artigo 20 do Código Penal: “o erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei.”4 Trata-se de erro essencial sobre uma das circunstâncias elementares do crime que, como consequência, afasta o dolo, a vontade livre e consciente de cometer uma conduta típica.
O erro de proibição, por sua vez, está previsto no artigo 21 do Código Penal: “O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço”5.
Há discussão na doutrina penal se o erro que recai sobre conteúdo da norma extrapenal que complementa as normas penais em branco, como são as normas que estabelecem os crimes tributários, crimes envolvendo drogas, crimes ambientais, dentre outros, caracteriza um erro de tipo ou um erro de proibição.
O erro de tipo afasta o dolo, ou seja, afeta a vontade livre e consciente do agente de praticar uma conduta, permitindo, contudo, sua punição por crime culposo se houver previsão legal. De outro lado, o erro de proibição afasta a culpabilidade do agente, sua capacidade de decidir agir ou não conforme a norma, pois a desconhece.
Para queles que entendem haver um erro do tipo na má interpretação das normas tributárias6, como poderia se dar no não recolhimento do DIFAL/ICMS, o agente estaria em erro sobre a elementar reduzir ou suprimir tributo, pois entende que não há tributo incidente, já que a norma que instituiu tal cobrança ainda não é aplicável, portanto, não estaria reduzindo ou suprimindo nada.
O erro de proibição, por sua vez, seria aplicável ao caso sob o raciocínio de que o agente, ao não recolher o DIFAL/ICMS, incide em erro sobre a compreensão da ilicitude da sua conduta, acredita que seu ato não é proibido criminalmente, pelo contrário. Diante de uma equivocada interpretação normativa acredita estar agindo conforme a lei, portanto, antes de agir com dolo ou culpa, age sem o entendimento da norma, afastando sua culpabilidade e, consequentemente, o isentando de pena7.
Para Francisco Muñoz Conde, o erro sobre um dever tributário pode caracterizar tanto o erro de tipo quanto o erro de proibição. Para o renomado autor, ambas as classificações encontram fundamentos dogmáticos, uma vez que o conhecimento do dever tributário é um pressuposto tanto do dolo do tipo quanto do conhecimento de sua antijuridicidade, sendo o erro sobre esse dever tributário simultaneamente um erro de tipo e de proibição. Contudo, por entender ser o erro de tipo mais benéfico ao acusado, já que afasta o dolo e, consequentemente, a tipicidade da conduta, ao passo que o erro de proibição vencível apenas diminui a pena aplicável, Muñoz Conde conclui que a questão deve ser tratada como erro de tipo8.
Trata-se de tema tormentoso na dogmática penal, mas que para a presente análise não altera o resultado prático. Diante da inexistência de crime de sonegação fiscal culposo, seja sob o prisma do erro de tipo, seja sob o prisma do erro de proibição, diante de um erro invencível a conduta não poderá ser criminalmente punida.
Portanto, caso permaneça a atual insegurança jurídica envolvendo a possibilidade de cobrança do DIFAL/ICMS em 2022 após a noventena legal, aliada à razoabilidade das interpretações jurídicas sobre a violação do princípio da anterioridade anual, sustentada por algumas decisões judiciais sobre o tema, não há que se falar em persecução penal, pois a conduta do agente é criminalmente escusável por erro.
1 EC 87, de 16 de abril de 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc87.htm. Acesso em: 7 de fev. de 2022.
2 http://stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=5994076&numeroProcesso=1287019&classeProcesso=RE&numeroTema=1093#
3 TJSP, Agravo de Instrumento 3000383-58.2022.8.26.0000, Relator Des. Eduardo Gouvêa, 7ª Câmara de Direito Público, decisão de 28/01/2022; e TJDF, Mandado de Segurança Coletivo 0700197-19.2022.8.07.0018, 2ª Vara da Fazenda Pública do Distrito Federal, decisão de 19/01/2022.
4 Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848.htm. Acesso em: 7 de fev. 2022.
5 Idem.
6 Nesse sentido: MACHADO, Hugo de Brito. Erro de tipo e erro de proibição nos crimes contra a ordem tributária. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 125, p. 23-32, fev. 2006. Disponível em: http://200.205.38.50/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=118654. Acesso em: 7 fev. 2022.; e SOLÍS, Luis Tisnado. Algunas consideraciones sobre el error en el delito de defraudación tributaria. Revista de derecho penal y procesal penal, Buenos Aires, n. 2, p. 200-209, fev.. 2008. Disponível em: http://200.205.38.50/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=65511. Acesso em: 7 fev. 2022.
7 Nesse sentido: DIAS, Jorge de Figueiredo. O problema da consciência da ilicitude em direito penal. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2000, p. 492/493.
8 MUÑOZ CONDE, Francisco. El error en el delito de defraudación tributaria del artículo 349 del código penal. Anuario de derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 39, n. 2, p. 379-393, mai./ago.. 1986. Disponível em: http://200.205.38.50/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=28181. Acesso em: 7 fev. 2022.