Migalhas de Peso

O conflito entre a suspensão do Difal e os princípios da Isonomia e do Federalismo

Tanto os Estados quanto as empresas menores, que vendem dentro dos próprios Estados, sofrerão prejuízos bilionários em benefício das grandes empresas, que conseguem vender nacionalmente.

25/2/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

A isonomia é o princípio basilar de toda sociedade livre e democrática, pautada na ausência de privilégios e perseguições. Por isso, a Constituição Federal – CF a elevou ao patamar de direito fundamental, no caput do art. 5º.

Esse essencial princípio foi reproduzido na área tributária por meio dos arts. 150, inciso II, que veda o “tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente”, e 152, que estabelece a norma essencial do federalismo tributário, dispondo:

Art. 152. É vedado aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer diferença tributária entre bens e serviços, de qualquer natureza, em razão de sua procedência ou destino.

Em complemento ao arcabouço isonômico, o art. 170, inciso IV, erige a livre concorrência como princípio basilar da atividade econômica. A aplicação desse princípio, que tem como fundamentos a isonomia e a livre inciativa, depende, essencialmente, da ausência de privilégios comerciais e tributários.

Apesar da clareza do texto constitucional e das graves consequências econômicas do desrespeito à livre concorrência, o STF e doutrina nacional majoritária defendem uma interpretação simplória e anti-isonômica da legislação do ICMS.

O Supremo Tribunal Federal decidiu, em julgamento de ADC1, ser necessária a edição de uma nova lei complementar para a cobrança integral do ICMS decorrente de operações interestaduais, tratadas no art. 155, § 2º, incisos VII e VIII, da CF, com a redação da EC 87/2015.

Ressalte-se que essa EC, que alterou a redação dos incisos VII e VIII, não menciona a necessidade de edição de uma nova lei complementar, o que permite a recepção integral da LC 87/1996, com a devida adaptação interpretativa.

 Em consequência desse julgamento, bem como do atraso na edição da lei complementar exigida pelo STF, que só ocorreu em 2022, foi criado um privilégio para as mercadorias oriundas de outros Estados. Ao longo desse ano, elas serão tributadas apenas pela alíquota interestadual, 7 ou 12%, ficando toda a arrecadação com o Estado de origem da mercadoria.

Já as mercadorias produzidas no próprio Estado onde estiver localizado o consumidor final ou empresário varejista sofrerão a incidência integral da alíquota interna do ICMS, em geral de 18%, em claro desrespeito aos princípios do federalismo e da livre concorrência.

Inadvertidamente o STF instituiu uma diferença tributária “em razão da procedência ou destino”, o que é expressamente vedado pelo supra-transcrito art. 152.

Esse equívoco jurisprudencial decorreu de outros dois erros interpretativos:

O primeiro foi cometido em 2014, quando o STF julgou as ADIs 4.628 e 4.713, acerca do Protocolo 21/2013, que versava sobre a cobrança do ICMS em operações interestaduais destinadas ao consumidor final. Naquele julgamento, de forma compreensível, mas imprecisa, o Supremo ratificou a interpretação fazendária habitual acerca do sentido da expressão “alíquota interna”, do inciso VIII, do art. 155, § 2º.

Por razões práticas, os Estados sempre entenderam que essa alíquota interna (e a correspondente arrecadação integral) era a do Estado onde estava localizado o remetente da mercadoria para o consumidor final localizado em outro Estado.

Contudo, a leitura sistemática dos incisos V a VIII, do mencionado § 2º (na sua redação original), evidenciava que a interpretação correta seria inversa, pois a alíquota interna era e é a do Estado onde estava localizado o consumidor final da mercadoria, uma vez que a expressão oposta, “alíquota interestadual”, era e ainda é a do Estado remetente.

Essa interpretação textual e lógica também decorre da leitura principiológica da Constituição, pois garante o respeito aos princípios do federalismo, isonomia e livre concorrência ao permitir a incidência uniforme da alíquota vigente em cada Estado sobre todas as operações nele ocorridas.

Em consequência desse julgamento, foi editada a EC 87/2015, estabelecendo que a divisão da arrecadação entre Estado remetente e destinatário sempre ocorrerá, seja a operação interestadual destinada a comerciante ou a consumidor final.

Cabe ao empresário que remete a mercadoria ao consumidor final localizado em outro Estado pagar o ICMS interestadual ao seu próprio Estado (7 ou 12%) e o ICMS complementar ao Estado destinatário, correspondente à diferença entre a alíquota interna deste Estado (em geral 18%) e os 7 ou 12% já pagos ao Estado do remetente.

Quando a venda for para comerciante localizado em outro Estado, o produtor/vendedor paga o ICMS pela alíquota interestadual ao seu próprio Estado (7 ou12%), cabendo ao comerciante localizado no Estado destinatário pagar a este o ICMS complementar (18 menos 7 ou 12%). Esse complemento de ICMS é informalmente denominado diferencial de alíquota - Difal.

O segundo erro no qual incorreu o STF foi tratar o chamado diferencial de alíquota como uma “nova relação jurídico-tributária” (expressão do acórdão), quando ele nada mais é do que uma solução de divisão da arrecadação do ICMS entre os Estados onde estão localizados o produtor e o comprador. É um instituto financeiro com reflexos tributários, mas não cria nem altera os elementos da relação tributária. Por isso, não está sujeito à anterioridade.

Quando um comerciante varejista compra uma cadeira de um industrial localizado no seu próprio Estado a cem reais, para revender a cento e cinquenta, ele sofre a incidência da alíquota cheia de 18% na compra, no valor de dezoito reais, destacado na nota fiscal (quem paga diretamente é o industrial).

No momento da revenda da cadeira, o comerciante calcula 18% sobre os cento e cinquenta reais, mas abate desses vinte e sete reais que deveria pagar os dezoito reais já pagos pelo industrial que lhe vendeu a cadeira, recolhendo apenas mais nove reais ao fisco estadual.

Entretanto, se ele comprar uma cadeira idêntica de um industrial localizado em outro Estado, pelos mesmos cem reais, o ICMS decorrente da operação interestadual, destacado na nota fiscal, será de apenas 7 ou 12%, dependendo do Estado de origem.

Quando a revendia para o consumidor final, antes da errônea decisão do STF, o comerciante varejista apurava os mesmos 18% sobre o preço de venda (cento e cinquenta reais) e recolhia à Fazenda de seu próprio Estado a diferença entre os vinte e sete reais e os sete ou doze reais que tivessem sido pagos antes. O pagamento desse complemento (Difal) garantia que a carga tributária total fosse sempre igual, em respeito ao art. 152, da Constituição.

Contudo, em razão do entendimento do STF, a mercadoria oriunda de outro Estado da Federação, mesmo que idêntica e comprada pelo mesmo preço, sofrerá uma carga tributária final menor do que a produzida no próprio Estado onde estiverem localizados o comerciante e o consumidor final, pois em 2022 não incidirá o complemento (Difal).

Em consequência, tanto os Estados quanto as empresas menores, que vendem dentro dos próprios Estados, sofrerão prejuízos bilionários em benefício das grandes empresas, que conseguem vender nacionalmente.

Tal distorção não ocorreria se a Suprema Corte, além de mais atenta ao texto constitucional, julgasse pautada nos princípios e ponderasse as consequências de suas decisões, como preconiza o art. 21, da lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro.

___________

1 Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.469. O julgamento também abrangeu o REX nº 287.019, em sede de recursos repetitivos. Julgados em 24/02/2021, Rel. Min. Dias Toffoli, Pleno.

Fernando Lemme Weiss
Advogado, mestre e doutor em Direito Público pela UERJ

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