A pandemia do Covid-19, episódio triste da humanidade, acabou nos trazendo muitas dores e provocou mudanças estruturais nos negócios e nas políticas públicas. Uma das mudanças trazidas por ela foi, sem sombra de dúvidas, um olhar mais atento aos pilares ASG, sigla para Ambiental, Social e Governança, como referência de empresas e instituições mais preparadas para a tomada de decisão, considerando-se todas as partes relacionadas e não somente os sujeitos diretos que se beneficiam de um determinado setor.
Apesar de o tema ASG ter adquirido mais notoriedade a partir de 2020, o G de Governança, já vem sendo fortalecido no setor privado, mormente em grandes empresas nacionais ou estrangeiras, por um apelo do mercado para que as decisões dos executivos sejam norteadas por transparência, accountability e acesso à informação e compliance.
No setor público, por sua vez, a Governança como modelo de formação das decisões no âmbito da Administração Pública, esteve pela primeira vez normatizada no decreto federal 9.203, de 22 de novembro de 2017, que “Dispõe sobre a política de governança da administração pública federal direta, autárquica e fundacional”.
Segundo o referido decreto, a governança pública consiste em “um conjunto de mecanismos de liderança, estratégia e controle postos em prática para avaliar, direcionar e monitorar a gestão, com vistas à condução de políticas públicas e à prestação de serviços de interesse da sociedade”, constituindo importante instrumento para entrega de políticas públicas mais eficazes e eficientes à sociedade.
Ainda nos termos do decreto federal 9.203/17, algumas das diretrizes da governança pública é a tomada de decisões baseada em evidências e voltadas a ações para a busca de resultados para a sociedade, encontrando soluções tempestivas e inovadoras para lidar com a limitação de recursos e com as mudanças de prioridades; a simplificação administrativa; a articulação institucional e a coordenação para melhor integração entre os diferentes níveis e esferas do setor público; a implementação de controles internos fundamentados na gestão de risco, que privilegiará ações estratégicas de prevenção antes de processos sancionadores; a edição e revisão de atos normativos, pautados pelas boas práticas regulatórias e pela legitimidade, estabilidade e coerência do ordenamento jurídico.
A recente edição da lei 14.133, de 1º de abril de 2021 – Nova Lei de Licitações e Contratos - NLLC, incorporou, definitivamente, a governança pública ao arcabouço jurídico nacional como forma de melhor gerir as contratações públicas. De acordo com o parágrafo único, do artigo 11 da citada lei, a alta administração do órgão ou entidade é responsável pela governança das contratações e deve implementar processos e estruturas, inclusive de gestão de riscos e controles internos, para avaliar, direcionar e monitorar os processos licitatórios e os respectivos contratos, promover um ambiente íntegro e confiável, assegurar o alinhamento das contratações ao planejamento estratégico e às leis orçamentárias e promover eficiência, efetividade e eficácia em suas contratações.
Nesse contexto, a NLLC conferiu importante papel à Advocacia Pública, conferindo-lhe, não apenas a competência pelo controle prévio e formal das contratações, mas definindo-a como agente promotor da boa governança pública. Em vários dispositivos observamos a intenção legislativa de integrar a Advocacia Pública neste processo, a teor do disposto no art. 7º; art. 19, IV; parágrafo único, do art. 168; e, inciso II, do art. 169.
Tais dispositivos estão em consonância com as diretrizes da governança pública consagradas no Decreto Federal nº 9.203/17 e demonstram a importância da Advocacia Pública nesse processo.
Com efeito, a Advocacia Pública possui mecanismos de, mediante uma análise de dados extraídos dos litígios provocados a partir de determinado programa de ação estatal – ou da ausência da atuação estatal em matéria específica, propor melhorias nas políticas públicas, não somente se limitar ao controle, defesa e fiscalização jurídica dos atos da administração pública. Neste ponto, o papel institucional da Advocacia Pública se conecta com a recomendação de um processo decisório embasado em evidências como atributo relevante da governança pública.
Neste sentido, pontua o Guia da Política de Governança Pública do Governo Federal1:
“Um aspecto normalmente negligenciado nas relações entre a gestão e a advocacia pública diz respeito à necessidade de monitorar permanentemente os padrões de judicialização das atividades da organização. Uma política pública que se judicializa frequentemente certamente apresenta problemas de desenho ou de implementação, que precisam ser de conhecimento da gestão para que essa possa atuar no sentido de propor as correções necessárias. Entretanto, se houver um distanciamento entre as áreas consultiva e de contencioso da advocacia pública, esses alertas podem não ocorrer no momento adequado, gerando grandes passivos para a administração pública.”
Com base na análise dos padrões de judicialização, a Advocacia Pública poderá propor melhorias nas políticas públicas, apoiando na implementação de controles internos fundamentados na gestão de risco, privilegiando ações estratégicas de prevenção antes de processos sancionadores, que constitui mais uma das diretrizes da governança pública. Afinal, políticas públicas que trazem um excesso de judicialização, não geram resultados satisfatórios e são ineficientes.
A simplificação administrativa, assim como a redução burocrática, pode ser apoiada pela Advocacia Pública, como determina o inciso IV, do art. 19, da NLLC, ao estabelecer que aos órgãos de assessoramento jurídico devem instituir modelos de minutas de editais, de termos de referência, de contratos padronizados e de outros documentos.
A articulação institucional e a coordenação para melhor integração entre os diferentes níveis e esferas do setor público também podem ser fomentadas pela Advocacia Pública, considerando a transversalidade de algumas políticas públicas, evitando sobreposição de ações e gastos públicos desnecessários.
Cabe, ainda, à Advocacia Pública apoiar na edição e revisão de atos normativos, pautando-se pelas boas práticas regulatórias e pela legitimidade, estabilidade e coerência do ordenamento jurídico.
Mostra-se, pois, que a Advocacia Pública assume um papel além do que funções meramente burocráticas e formais, sendo um verdadeiro agente de transformação da sociedade.
Como bem pontuou José Júnior Alves da Silveira2, “a Advocacia Pública integra o sistema constitucional de controle da juridicidade, tendo como diferencial em relação aos demais órgãos a atribuição de atuar, normalmente, preventiva e concomitantemente com as funções de governança pública, o que lhe assegura mais condições de evitar que se produzam ou se mantenham atos ilícitos, impedindo potenciais e gravosas consequências adversas ao interesse público que deles venham a decorrer”.
Portanto, num cenário que se espera da governança pública a importante função de instrumento para trazer resultados eficientes para a sociedade nos serviços públicos e reduzir as práticas que são ineficientes, a Advocacia Pública tem um papel relevante, indo além de uma atuação burocrática, garantindo as ferramentas necessárias para que os gestores tomem as melhores decisões para a busca de resultados para a sociedade.
2 SILVEIRA, José Júnior Alves da. A Nova Administração Pública e o Papel da Administração Pública. Revista Eletrônica da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro – PGE-RJ, Rio de Janeiro, v. 3 n.1, jan/abr. 2020.