Migalhas de Peso

Terceirização, segurança jurídica e prosperidade da economia

Num Estado de direito democrático não basta dizer que todos são iguais perante a lei, já que o direito a esta não se circunscreve.

24/2/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Durante muito tempo, prevaleceu no Brasil o entendimento consubstanciado na súmula 331 do TST, que restringia drasticamente a possibilidade de terceirização de mão de obra.  De acordo com o seu enunciado, a terceirização era cabível em poucos casos, como, por exemplo, para prestação do serviço de limpeza e trabalho temporário.

Também fazia a distinção entre terceirização da atividade-meio e terceirização da atividade-fim, para permitir, quando muito, apenas aquela.

No julgamento da ADPF 324, o STF reconheceu a inconstitucionalidade da súmula 331 do TST e firmou entendimento sobre ser licita a terceirização também da atividade fim.

De acordo com o STF, é lícita a terceirização de toda atividade, não se configurando relação de emprego entre o contratante (tomador do serviço) e o empregado da contratada (prestadora do serviço). Nesse contexto, a responsabilidade do tomador é subsidiária.

E não poderia ser diferente, não só sob o ponto de vista jurídico, quanto econômico, uma vez que se trata de exigência do cenário econômico atual (globalizado e altamente especializado).

As empresas devem ter ampla margem de liberdade negocial para  estruturar suas atividades, o que pressupõe a possibilidade de contratar outras empresas prestadoras de serviços, com maior expertise em determinada área.

Como não houve modulação dos efeitos, é natural que a decisão do STF produza eficácia retroativa.

Nas instâncias locais, são muitas as ações em que se questiona a licitude da relação de terceirização, que foi expressa  e explicitamente considerada lícita pelo Supremo Tribunal Federal, em controle concentrado e com eficácia vinculante.

Os juízes deparam-se com várias situações. São ações propostas, por exemplo, só contra o tomador do serviço, em que o autor pede o reconhecimento da ilicitude do vínculo entre este e o prestador. Há casos em que a ação foi proposta contra ambos, mas apenas um recorreu e o autor renuncia ao direito que se funda a ação em relação a este, para “forçar” o trânsito em julgado em relação àquele que não interpôs recurso e, dessa forma, impedir que se faça valer o entendimento do STF.

Identificando todas essas situações e outras mais, o TST afetou, para fins do julgamento pelo regime dos recursos repetitivos, o recurso de revista 0001000-71.2012.5.06.0018, para solução das seguintes controvérsias:

I – A possibilidade de renúncia ao direito em que se funda a ação apenas em relação à empresa recorrente, com o objetivo de impedir a reforma do julgado;

II – A legitimidade recursal da empresa que não integrou o processo, mas que nele poderia intervir, como terceiro interessado, ou daquela que o integrou, pela via (controversa) do chamamento ao processo; e

III – O alcance da decisão proferida em juízo de retratação, quando apenas uma das rés interpôs o recurso extraordinário que ensejou o retorno dos autos ao órgão prolator da decisão recorrida, nos termos do art. 1.030 do CPC.

Na última terça-feira, dia 22 de fevereiro de 2002, o TST decidiu, com o objetivo fundamental de criar condições para que se respeite a decisão do STF, no sentido de que há litisconsórcio necessário unitário, quando o trabalhador entra em juízo para questionar a licitude da relação de terceirização que existe entre as empresas prestadora e tomadora de serviço. Ou, ainda, quando o trabalhador formula pedido em juízo partindo da pré-concepção de que esta relação é inválida.

A decisão a nosso ver é digna de elogios, tanto pelo seu conteúdo, juridicamente irretocável, quanto pelo fato de dar o adequado cumprimento a uma decisão proferida em ADPF, ou seja, em controle concentrado de constitucionalidade.

A terceirização envolve uma única relação jurídica triangular, que gera direitos e deveres entre o empregado, a empresa prestadora e serviço e a empresa tomadora do serviço. O empregado responde diretamente à empresa prestadora do serviço, a quem compete a organização da força de trabalho. Já a empresa tomadora do serviço deve verificar a idoneidade e a capacidade econômica da empresa terceirizada e responder subsidiariamente pelo descumprimento das normas trabalhistas e das obrigações previdenciárias.

Portanto, o trabalhador não dica desprotegido, mas não pode “escolher” contra quem vai litigar: e isso acontece por força da lei e do sistema.

Se a prestação de serviços entre as empresas for tida por ilegal, haverá consequências jurídicas para os três envolvidos, de modo que não é possível fracionar a controvérsia. Ou o contrato de prestação de serviços é legítimo para todos, ou não é para ninguém. Como o provimento jurisdicional afeta a todos da mesma forma e ao mesmo tempo, a pretensão deve ser resolvida com unicidade.

É intuitivo que quando se questiona em juízo a validade de uma relação jurídica que acontece entre A e B, se provoca o judiciário para proferir uma sentença que necessariamente valerá para ambos: de fato, não se pode conceber que uma relação jurídica contratual seja válida para um contratante e não seja válida para o outro. Tecnicamente, se sabe, esta é a situação do litisconsórcio unitário.

Justamente porque a sentença deve necessariamente produzir efeitos para A e B, é que devem ambos estar necessariamente presentes no processo. Por isso é que se diz, e também é intuitivo, que o litisconsórcio é necessário: todos devem ser provocados a integrar o processo.

É extamente o que acontece com a terceirzação, no que tange ao liame que se forma entre tomador (a) de serviços e prestador(a) de serviços.

A regra no direito brasileiro é a de que cada um litigue com quem quiser, desde, é claro, que não se trate de litisconsórcio necessário. Tudo ainda é mais relevante quando se estiver diante de uma situação de litisconsórcio necessário unitário.

Reconhecer, na situação em que se questiona a licitude da terceirização, um caso de litisconsórcio necessário unitário, leva, por exemplo, a que não se admita que a ação seja movida só contra o tomador, que não é o empregador do autor da ação - já que existe a decisão do Supremo Tribunal Federal considerando lícita a terceirização, em princípio.

Quando o trabalhador propõe a ação diretamente contra a tomadora de serviços, como se ela fosse a sua real empregadora, porque a terceirização seria ilícita, não cabe ao Judiciário outro caminho senão extinguir o processo sem resolução de mérito ou determinar a citação do litisconsorte.

Em face de um acordão que julga procedente a ação movida contra ambos, se só o tomador recorre, não pode o autor renunciar ao direito sobre o qual se funda a ação apenas contra este, pois isso levaria a que tomador e prestador de serviços não fossem atingidos da mesma forma pela sentença. De rigor, ou há renúncia contra ambos ou esta é ineficaz.

Neste caso, evidentemente o recurso de um dos réus aproveita ao outro.

As decisões da Justiça do Trabalho que entendiam haver litisconsórcio passivo facultativo estavam baseadas, via de regra, em dois fundamentos: (i) o de que o reclamante estaria buscando o reconhecimento da relação de emprego unicamente junto à empresa tomadora dos serviços, para receber as verbas trabalhistas daí advindas; (ii) e o de que, nas obrigações solidárias, o credor poderia escolher demandar contra todos os devedores, ou qualquer um deles individualmente.

Esses fundamentos não se sustentam.

Nas reclamações que envolvem o tema da terceirização, o reclamante não busca, apenas, o pagamento de verbas trabalhistas que lhe seriam devidas. Busca, em primeiro lugar, a declaração de ilegalidade da relação entre as empresas prestadora e tomadora de serviços.

Há aqui, claramente, uma questão prejudicial de mérito (a legitimidade da relação de terceirização) que afeta a esfera jurídica dos três envolvidos: o empregado, a empresa tomadora dos serviços e a empresa prestadora de serviços. Daí porque o pedido de nulidade do vínculo trabalhista deve ser julgado de maneira uniforme entre as partes.

Além disso, só há solidariedade entre as empresas prestadora e tomadora de serviços pelo pagamento das verbas trabalhistas, caso seja reconhecida a ilegalidade da terceirização (sendo legítima a terceirização, a responsabilidade da tomadora é apenas subsidiária, conforme o entendimento do STF).

Vale dizer, a questão referente aos pagamentos das verbas trabalhistas pressupõe um juízo declaratório a respeito do contrato de terceirização, questão prejudicial ao mérito, que afeta ambas as empresas de maneira uniforme.

Entender-se que o autor não precisa mover a ação contra a prestadora de serviço, podendo atingir diretamente o tomador de serviços, significa ignorar a decisão do Supremo Tribunal Federal.

Admitir-se que, quando a ação é movida contra ambos, a situação de direito material criada pela sentença não seja idêntica para tomador e prestador de serviços, também é uma forma, mais elaborada, de se desrespeitar a decisão do Supremo Tribunal Federal.

O TST, na decisão ora comentada, agiu acertadamente, reforçando a coerência do ordenamento, a previsibilidade e a segurança jurídica. Ademais respeitaram-se as regras processuais de que há pouco falamos.

Afinal, num Estado de direito democrático não basta dizer que todos são iguais perante a lei, já que o direito a esta não se circunscreve. Todos são iguais, isto sim, perante o direito e o direito é o sistema positivo interpretado pelos nossos tribunais, e, neste caso, o que deve prevalecer é o efeito vinculativo das decisões proferidas em controle concentrado de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal.

Teresa Arruda Alvim
Sócia do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados. Livre-docente, doutora e mestre em Direito pela PUC/SP.

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