Quando a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, em data recente, declarou a impossibilidade de realização de interrogatório por videoconferência de réu foragido – o que se deu no âmbito do HC 640.770/SP, de relatoria do ministro Sebastião Reis Júnior, em 15/6/21 –, o fez de maneira excessivamente simplista e desprovida da análise criteriosa e cautelosa que o tema exige.
Isso porque se utilizou, essencialmente, do argumento rudimentar de que realizar o interrogatório virtual do acusado em situação de fuga, seria equivalente a “premiar a condição de foragido”. Limitou-se a aplicar, como se nota, o princípio geral do Direito que assinala que “ninguém pode se beneficiar da própria torpeza”, como se estivesse a solucionar simples caso de litigância de má-fé.
A partir dessa singela, e insuficiente, premissa – de estrutura muito mais política e utilitarista e muito menos técnica e democrática – concluiu-se pela inaplicabilidade do art. 220 do Código de Processo Penal, sob qualquer viés interpretativo, ao ato de interrogatório, em se tratando de réu foragido.
A decisão, contudo, parece não fornecer resposta juridicamente adequada ao debate. Talvez sirva ao propósito de agradar audiências acostumadas a festejar a supressão de garantias processuais penais daqueles que, pelo fato de responderem a uma acusação criminal, são comumente reduzidos à categoria de inimigos do Estado.
Nada obstante, a questão fulcral em torno deste debate, certamente não enfrentada pelo julgado supra referido, consiste em saber se é legítimo, ao Estado, no âmbito do processo penal, restringir a garantia constitucional da ampla defesa, condicionando o exercício do direito de autodefesa à disponibilidade da liberdade pelo cidadão. É, o direito de defesa, suscetível de barganha estatal?
A resposta a esse questionamento, desde que alinhada a um processo penal desenvolvido sobre bases democráticas e preocupado mais com as garantias do cidadão do que com a opinião pública, é, obrigatoriamente, negativa. E são várias as razões que alicerçam tal conclusão.
Por primeiro, convém rememorar que a recusa, por parte do cidadão, em dar cumprimento voluntário a uma ordem judicial de prisão contra si expedida não constitui fundamento idôneo, por si só, para considera-lo um sujeito que menospreza a aplicação da lei penal e, portanto, merece ser perseguido pelo Estado, inclusive mediante supressão de garantias fundamentais. Isso só poderia ser verdadeiro no âmbito de um direito penal de terceira velocidade, típico do funcionalismo sistêmico (em tese, inaceitável no direito penal brasileiro).
É plenamente legítima, destarte, a possibilidade de uma pessoa discutir a ordem de prisão que considera ilegal, enquanto conserva, no plano fático, o estado de liberdade que lhe foi suprimido no plano jurídico-processual. Tanto é assim que a legislação penal brasileira não tipifica a conduta de fuga (mas apenas de quem promove ou facilita a fuga de pessoa presa ou submetida a medida de segurança detentiva – art. 351, CP).
O direito de resistência à ordem de prisão, aliás, encontra-se, há muito, reconhecido no âmbito do Supremo Tribunal Federal. Recordemos, aqui, como não poderia deixar de ser, as palavras do Ministro Marco Aurélio, para quem “o simples fato de o acusado ter deixado o distrito da culpa, fugindo, não é de molde a respaldar o afastamento do direito ao relaxamento da prisão preventiva por excesso de prazo. A fuga é um direito natural dos que se sentem, por isso ou por aquilo, alvo de um ato discrepante da ordem jurídica, pouco importando a improcedência dessa visão, longe ficando de afastar o instituto do excesso de prazo” (RHC 84.851/BA. Julgado em 01/03/2005).
Nessa mesma ordem de raciocínio, mas no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, o Ministro Paulo Medina, também há longa data, afirmara que “o réu tem direito de fuga, salvo se usar de violência contra a pessoa (art. 352 do Código Penal), quando então será punido nos termos da Lei Penal e não da Lei Processual Penal. Sancionar o réu por exercer um direito é inverter o ônus da responsabilidade pela sua fuga. A responsabilidade é do Estado, que não adotou as cautelas devidas para evitar a fuga.” (HC 35997 SP, Julgado em 11/10/2005).
Significa, grosso modo, que o sujeito investigado/acusado da prática de um crime que tem sua prisão processual decretada, não possui o dever de entregar, voluntária e espontaneamente, sua liberdade ao Estado, de modo que a ausência desse comportamento ‘altruísta’ ou ‘moralmente recomendável’ não pode ser utilizada em seu desfavor, com a supressão de direitos e garantias no bojo do processo penal democrático.
Essa constatação inicial nos permite uma primeira conclusão parcial quando comparada com a questão central objeto deste escrito: se um sujeito conserva seu direito (fundamental) de impetrar ordem de habeas corpus, ou de outro modo pleitear sua liberdade, enquanto resiste ao cumprimento do mandado de prisão – e o conserva pelo simples fato de ser sujeito de direitos em um Estado Democrático de Direito –, parece certo que também conserva seu direito (fundamental) de autodefesa enquanto não efetivada a ordem de prisão, até porque pode utilizar o ato de interrogatório justamente para se apresentar ao Estado-juiz, esclarecer sua versão sobre os fatos e contestar a determinação de prisão.
Analisemos a questão, agora, sob outro importante enfoque.
É de conhecimento generalizado que, em sua redação originária, já nos idos de 1948, o Código de Processo Penal condicionava o direito de apelar ao recolhimento do réu à prisão, prevendo, em seu artigo 594 que “o réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, ou prestar fiança, salvo se condenado por crime de que se livre solto” e, em seu artigo 595, que “se o réu condenado fugir depois de haver apelado, será declarada deserta a apelação”.
Tais dispositivos foram revogados, respectivamente, pelo advento das leis 11.719/08 e 12.403/11, que cumpriram o papel de positivar o entendimento então sedimentado no âmbito da jurisprudência dos tribunais superiores, inclusive por meio de súmula 347 do Superior Tribunal de Justiça, com a seguinte redação: “o conhecimento de recurso de apelação do réu independe de sua prisão”.
A lógica motora da gradativa mudança no cenário jurisprudencial da época, que precedeu as sucessivas (e necessárias) alterações legislativas acima referidas, consistiu numa percepção, pelos integrantes das mais altas Cortes do país, tão elementar quanto cara ao processo penal: a de que a garantia, constitucional e fundamental, da ampla defesa e do contraditório – com todos os recursos e meios a ela inerentes – não pode servir de moeda de troca à efetivação da prisão processual.
Nessa ótica, condicionar o exercício do direito de defesa ao recolhimento do acusado à prisão equivale, em última análise, à criação de uma sanção, de caráter eminentemente penal, para atendimento de uma finalidade utilitarista do processo criminal. É cercear o mais, a serviço do menos.
A ratio decidendi alcançada em tal discussão, como facilmente se vê, é em tudo aplicável à questão da (im)possibilidade do interrogatório virtual do réu em estado de fuga.
Em ambas as situações, percebe-se que o Estado, no anseio de efetivar a prisão processual do indivíduo foragido – o que seria atribuição das forças policiais, não do Judiciário, diga-se – faz (indevido) uso do processo penal, coibindo o exercício de direitos que constituem a base fundante do devido processo legal, notadamente a ampla defesa e o contraditório.
Afinal, em se reconhecendo, a garantia da ampla defesa, em sua dupla face (defesa técnica e autodefesa), como uma prerrogativa jurídica essencial do devido processo legal consagrado na Constituição Federal, que ampara, indistintamente, qualquer acusado (estando ele preso, ou não) em sede de persecução penal, tem-se como inconcebível qualquer comportamento tendente a restringir o pleno exercício do direito de defesa[1], seja no plano legislativo, seja no plano judicial.
No caso do interrogatório do réu foragido, aliás, a situação é ainda mais grave, pois inexiste proibição legal do exercício do direito de autodefesa em caso de fuga do acusado. Não se trata, portanto, de conflito entre lei e Constituição, como era o caso da proibição de apelar sem recolher-se preso ou prestar fiança, mas sim de deliberada criação de óbice à efetivação de garantia constitucionalmente assegurada.
Nessa perspectiva, tudo indica que o recente, e imaturo, posicionamento do Superior Tribunal de Justiça na temática da vedação do interrogatório do réu foragido estampa verdadeiro retrocesso na seara dos direitos fundamentais alcançados com a revogação dos artigos 594 e 595 do Código de Processo Penal. É dizer, no lugar de promover meios para a materialização de princípios e garantias constitucionais, cria condições para impedir sua concretização.
Um terceiro ponto de vista é ainda possível, e recomendado, para enfrentamento da questão.
A razão de ser da proibição do interrogatório por videoconferência do réu foragido está diretamente relacionada aos efeitos da pandemia provocada pelo COVID-19, que promoveu ao status de regra os atos processuais virtuais, antes relegados à posição de exceção.
É evidente que, como toda mudança, a era da virtualização processual experimenta benefícios e, também, perdas, quando em comparação com a era dos processos físicos. Ganha-se, por exemplo, em celeridade e quantidade de julgamentos. Perde-se, por vezes, em qualidade.
O ponto é que as perdas inerentes à era digital não podem conduzir, absolutamente, à perda ou mitigação de direitos e garantias processuais penais. As formas devem, sempre, conformar-se ao direito que buscam efetivar, não o contrário.
Nessa ordem de ideias, forçoso reconhecer que a possibilidade de o réu, estando foragido, exercer regularmente seu direito de autodefesa sem ter imediatamente suprimida a sua liberdade – o que fatalmente ocorreria tivesse ele que se apresentar, pessoalmente, numa sala de audiência do edifício do fórum – é um dos tantos corolários lógicos e naturais da virtualização processual. Assim como o é a possibilidade de o Magistrado, o Promotor de Justiça e o Advogado compareceram a audiências e sessões de julgamento país afora sem saírem de suas residências.
Não se trata, pois, de avaliar se tal efeito é positivo ou negativo, pois tal análise seria meramente subjetiva e pouco produtiva. A análise neutra e imparcial da questão, como deve ser, só permite uma conclusão lógica: tecnicamente, a realização virtual das audiências, que tem sido a regra tanto em processos de réus soltos, quanto em processos de réus presos, criou condições fáticas (e físicas) para que o sujeito foragido compareça ao seu interrogatório sem ser imediatamente preso.
Vale lembrar, nessa perspectiva, que o Código de Processo Penal não veda a participação do réu foragido dos atos do processo e o artigo 185, por sua vez, preconiza o comparecimento do acusado “perante a autoridade judiciária”, na presença de seu defensor, para realização do interrogatório, nada dispondo sobre a obrigatoriedade desse comparecimento ocorrer de forma presencial.
A Constituição Federal de 1988, a seu turno, cuida de assegurar “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (art. 5º, LV). Por sua vez, a Convenção Interamericana de Direitos Humanos e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, também de envergadura constitucional (art. 5º, § 3º, CR/88), asseguram a toda pessoa acusada de um delito o direito de “dispor do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa e a comunicar-se com defensor de sua escolha” (Artigo 14, 3, b). Vê-se, pois, que nenhum dos diplomas normativos promove qualquer tipo de distinção quanto ao fato de o réu encontrar-se preso, ou não.
É inegável, destarte, que, no cenário atual, a audiência virtual é meio e recurso inerente ao exercício da autodefesa, sendo irrelevante, à luz da legislação adjetiva penal, da Constituição Federal e dos tratados internacionais assinados pelo Brasil, se o acusado se encontra detido, em liberdade ou em estado fuga.
Aliás, tanto é possível a interpretação extensiva do artigo 222 do Código de Processo Penal que os interrogatórios continuaram – e continuam – acontecendo regularmente durante a pandemia e, como regra, de modo virtual.
Todas essas reflexões permitem concluir que a negativa da realização do interrogatório virtual a pretexto de “não se premiar o réu foragido”, para além de intolerável cerceamento das garantias da ampla defesa e do contraditório e do próprio direito (legítimo) de resistência, promove tratamento processual desigual sem esteio legal e transfere ao réu o ônus de suportar a deficiência do aparato estatal (Estado-polícia) em prender ou manter preso o cidadão, tratamento em tudo incompatível com os ideais democráticos orientadores do devido processo legal brasileiro.
O exercício do direito de defesa não se defere mediante barganha. Não se trata, em absoluto, de um prêmio que o Estado-juiz pode, ou não, ofertar ao acusado, a depender de seu “bom comportamento processual”. O interrogatório, que é tanto meio de defesa, quanto meio de prova, seguramente não é instrumento de efetivação da prisão processual, nem pode ser alijado do processo penal como forma de punição do acusado que se recusa a entregar voluntariamente sua liberdade ao Estado.
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1 Convém rememorar, nessa perspectiva, as precisas palavras do Ministro Celso de Mello, “o direito de audiência, de um lado, e o direito de presença do réu, de outro, esteja ele preso ou não, traduzem prerrogativas jurídicas essenciais que derivam da garantia constitucional do "due process of law" e que asseguram, por isso mesmo, ao acusado, o direito de comparecer aos atos processuais a serem realizados perante o juízo processante, ainda que situado este em local diverso daquele em que esteja custodiado o réu (...) Essa prerrogativa processual reveste-se de caráter fundamental, pois compõe o próprio estatuto constitucional do direito de defesa, enquanto complexo de princípios e de normas que amparam qualquer acusado em sede de persecução criminal.” (STF HC 93503, Julgado em 02/06/2009).