A saúde é um direito de todos os cidadãos e um dever atribuído ao Estado, que tem a responsabilidade de garantir a promoção, proteção e recuperação da prestação de assistência à saúde, e o faz por meio do Sistema Único de Saúde (SUS).
Ocorre que, tendo em vista as conhecidas limitações dos recursos do Estado e a precariedade suportada pelos cidadãos que dependem do serviço público de saúde, são muitas as pessoas que buscam a saúde suplementar, assistência de saúde promovida pelo setor privado.
Tendo em vista que a saúde de cada pessoa se trata de um tema tão necessário e caro à coletividade, todas as operadoras de planos de saúde são submetidas e devem obedecer às normas e fiscalizações do Poder Público.
Nesse sentido, foi procedida a criação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), pela MP 1.928, reeditada pela MP 2012-2, mais tarde convertida na lei 9.961/00, pela qual foi atribuída a regulação do setor de saúde suplementar.
A ANS é uma autarquia sob o regime especial, vinculada ao Ministério da Saúde, sendo conferida autonomia administrativa, financeira, patrimonial e de gestão de recursos humanos, bem como em suas decisões técnicas.
A sua atuação é estendida a todo o território nacional, sendo considerado um órgão de regulação, normatização, controle e fiscalização das atividades que garantam a assistência suplementar à saúde, nos termos do art. 1º, da lei 9.961/00.
Isto é, por mais que exista um contrato particular firmado entre o beneficiário e a operadora do plano de saúde escolhido dotado de cláusulas com certas limitações impostas, a relação jurídica está subordinada basilarmente às normas e à fiscalização da ANS, independente da modalidade de produto, serviço e contrato que se firmou.
O cerne da atuação da ANS é promover aos usuários a garantia do adequado acesso aos serviços de assistência médico-hospitalar, em observância ao perfeito equilíbrio entre a cobertura contratada e o valor da contraprestação pecuniária exigida, extirpando qualquer prática abusiva que ofenda o direito fundamental à saúde.
Assim sendo, a ANS prevê um Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, que constitui a referência de cobertura assistencial obrigatória pelos planos privados de assistência à saúde, contratados a partir de 1º de janeiro de 1999.
A controvérsia se instaura no tocante à extensão e aos limites da cobertura contratual dos planos de saúde.
Isso porque, segundo o entendimento firmado pela Terceira Turma da Eg. Corte o Rol de Procedimentos da ANS possui caráter exemplificativo, pelo qual se estabelece uma referência mínima às operadoras.
No entanto, em 10 de dezembro de 2019, a Quarta Turma do Superior Tribunal inovou a jurisprudência pacífica, tendo adotado o entendimento de que a lista de procedimentos obrigatórios da ANS não seria meramente exemplificativa.
Cumpre transcrever a seguir trecho do voto do relator Ministro Luis Felipe Salomão que considerou a taxatividade do Rol:
3. A elaboração do rol, em linha com o que se deduz do Direito Comparado, apresenta diretrizes técnicas relevantes, de inegável e peculiar complexidade, como: utilização dos princípios da Avaliação de Tecnologias em Saúde - ATS; observância aos preceitos da Saúde Baseada em Evidências - SBE; e resguardo da manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do setor. 4. O rol mínimo e obrigatório de procedimentos e eventos em saúde constitui relevante garantia do consumidor para propiciar direito à saúde, com preços acessíveis, contemplando a camada mais ampla e vulnerável da população. Por conseguinte, em revisitação ao exame detido e aprofundado do tema, conclui-se que é inviável o entendimento de que o rol é meramente exemplificativo e de que a cobertura mínima, paradoxalmente, não tem limitações definidas. Esse raciocínio tem o condão de encarecer e efetivamente padronizar os planos de saúde, obrigando-lhes, tacitamente, a fornecer qualquer tratamento prescrito, restringindo a livre concorrência e negando vigência aos dispositivos legais que estabelecem o plano-referência de assistência à saúde (plano básico) e a possibilidade de definição contratual de outras coberturas. (REsp 1733013/PR, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 10/12/2019, DJe 20/02/2020.)
Importa dizer que são muitas as práticas abusivas realizadas pelas operadoras em relação à negativa da cobertura assistencial, razão que fundamenta parcela considerável dos litígios entre os beneficiários e os seus respectivos planos de saúde, elevando a judicialização da saúde.
Segundo consta do Relatório de Ouvidorias 2021, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) registrou 72.731 ocorrências em face de 334 operadoras. A finalidade de todas as ocorrências era o Requerimento de Reanálise Assistencial, meio pelo qual o beneficiário recorre à ouvidoria do próprio plano de saúde quando a operadora nega alguma cobertura.
Ademais, a lei 9.656/98, que rege a atuação dos planos de saúde e seguros privados de assistência à saúde, em seu artigo 10, caput, estabelece a cobertura de todas as doenças listadas na Classificação Estatística de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde, nos limites da respectiva segmentação.
No mesmo sentido, o artigo 35-F da lei 9.656/98, reforça a obrigatoriedade da integralidade de assistência ao usuário de todas as doenças.
Importa ressaltar que a rigidez do Rol de procedimentos e eventos é incompatível com a constante evolução científica da medicina que proporciona variáveis descobertas científicas continuadamente.
Ademais, o entendimento acerca da taxatividade é contrário às disposições legais que garantem, de modo expresso, a obrigatoriedade da cobertura a todas as doenças constantes do CID, bem como o fornecimento obrigatório pelas operadoras de planos de assistência à saúde todos os procedimentos e ações necessárias para à prevenção, à recuperação, manutenção e reabilitação da saúde do consumidor.
Assim sendo, pelo julgamento acerca do caráter ilustrativo ou rígido do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS, que ocorrerá na próxima quarta-feira, dia 23 de fevereiro de 2022, por meio do EResp 1.889.702/SP, a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça pode gerar o desamparo de milhares de beneficiários que têm garantida a cobertura das terapias e tratamento necessários em razão do entendimento que considera a lista de procedimentos exemplificativa.
É certo que os pacientes que suportam doenças raras e graves, pessoas com deficiência, crianças diagnosticadas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) em meio a terapias reconhecidamente eficazes, além de diversos outros grupos que compõe parcela vulnerável da sociedade, podem vir a ser diretamente afetados a depender do julgamento, aqui debatido.