Migalhas de Peso

TCU confirma a tese dos filmes fantasmas e a necessidade de recolhimento integral do tributo. No fim das contas, os caça fantasmas estavam certos!

Em meados de janeiro de 2019, a Agência Nacional do Cinema - Ancine havia encaminhado, na forma de representação, o resultado da auditoria interna concluída em setembro do ano anterior a três órgãos de controle federais - TCU, CGU e MPF.

21/2/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Na década de oitenta, “Os Caça Fantasmas” ou “Ghostbusters” foi um blockbuster que ficou bastante em evidência para aquela geração. A consequência de seu sucesso foi a realização do sonho dourado da maioria dos filmes bem sucedidos de filmar as sequências (continuações), incluindo o atual “Ghostbusters Afterlife”, lançado em agora em 2021. Isso tudo sem olvidar o mérito de multiplicar os ganhos da obra cinematográfica com todo o tipo de subproduto possível, desde bonecos e roupas até jogos eletrônicos e demais acessórios.

Lembro-me perfeitamente de que quando jovem, meu primeiro videogame foi um Phanton System que vinha com um cartucho dos Caça Fantasmas... Normalmente os jogos que eram “brindes” não eram tão bons, mas esse era diferente. Eu confesso que adorava aquele jogar aquele jogo com meu irmão!

Mas a história que interessa e tem uma relação com esse artigo vem da sua sinopse.

Segundo o roteiro cinematográfico, professores universitários de parapsicologia de Columbia (Nova Iorque), tiveram a sua verba para pesquisa cortada e foram colocados na rua pelo por serem considerados farsantes. Isto porque os professores preferiam estudar manifestações sobrenaturais e aparições (fantasmas), o que a sociedade não admitia. Assim, os ditos professores resolvem então criar uma empresa especializada em casos de aparições sobrenaturais até que conseguem achar os ditos fantasmas que assolavam Nova Iorque. O restante da história todos já conhecem...

Pois bem... Em meados de janeiro de 2019, a Agência Nacional do Cinema - Ancine havia encaminhado, na forma de representação, o resultado da auditoria interna concluída em setembro do ano anterior a três órgãos de controle federais - TCU, CGU e MPF.

A equipe de auditoria interna da Ancine teria confirmado suspeitas de uso indevido de recursos da política de fomento à produção audiovisual com a concessão indevida da isenção fiscal sobre remessas de programadoras estrangeiras ao exterior, mormente no que diz respeito ao mecanismo de incentivo fiscal aposto no art. 39, inciso X da MP 2.228-1/2001. 

Segundo relatado na imprensa1, as irregularidades na concessão de incentivo fiscal teriam desfalcado o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) em mais de R$ 350 milhões de reais no período de 2013 a 2017. De modo que “o levantamento havia identificado problemas de captação à época de ao menos 200 milhões de reais para 64 projetos”.

Contudo, a despeito do relatório de auditoria e do recebimento das representações pelos órgãos de controle, o Ministério Público Federal, em seu melhor estilo lavajatista, entendeu que o Diretor-Presidente da Ancine, sua equipe de assessores, alguns servidores da cúpula da gestão e do antigo Ministério da Cultura, por terem ciência daqueles fatos, deveriam ser afastados imediatamente de suas funções públicas e responder judicialmente por denunciação caluniosa e crimes contra a honra.

Estes servidores públicos foram efetivamente afastados cautelarmente, massacrados na imprensa e suportaram todas as mazelas possíveis e imagináveis do padrão lavajato, que vai desde uma busca e apreensão espetacularizada até uma menção do William Bonner em pleno Jornal Nacional.

Porém, a despeito de toda essa campanha de lawfare contra os servidores, aquela mesma auditoria do ano de 2019 que teria sido motivada por denúncia anônima ao Ministério da Cultura e que veio a público no ano de 2017, acaba de ser CONFIRMADA e julgada parcialmente procedente no dia 16 de fevereiro de 2022, com a publicação do Acórdão do Tribunal de Contas da União. Ou seja, a denúncia anônima não era somente verdadeira e plausível, mas era PROCEDENTE e o Ministério Público Federal errou feio!

Em linhas gerais, para uma melhor explanação, pode se dizer que o estratagema dos filmes fantasmas funcionava da seguinte maneira:

Inicialmente, a Condecine Remessa é um tributo da espécie de CIDE incidente sobre o pagamento, o crédito, o emprego, a remessa ou a entrega, aos produtores, distribuidores ou intermediários no exterior, de importâncias relativas a rendimento decorrente da exploração de obras cinematográficas e videofonográficas, ou por sua aquisição ou importação, a preço fixo;  sendo certo que, consoante o disposto no §2º do art. 33 da MP 2.228-1/01, a Condecine será determinada mediante a aplicação de alíquota de onze por cento sobre as importâncias ali referidas.

Além disso, a Condecine Remessa também comporta uma hipótese legal de isenção condicionada, conforme dispõe o art. 39, X, da Medida Provisória nº 2.228-1/2001. Ausculte-se:

Art. 39.  São isentos da Condecine: [...]

X - a Condecine de que trata o parágrafo único do art. 32, referente à programação internacional, de que trata o inciso XIV do art. 1º, desde que a programadora beneficiária desta isenção opte por aplicar o valor correspondente a 3% (três por cento) do valor do pagamento, do crédito, do emprego, da remessa ou da entrega aos produtores, distribuidores ou intermediários no exterior, das importâncias relativas a rendimentos ou remuneração decorrentes da exploração de obras cinematográficas ou videofonográficas ou por sua aquisição ou importação a preço fixo, bem como qualquer montante referente a aquisição ou licenciamento de qualquer forma de direitos, em projetos de produção de obras cinematográficas e videofonográficas brasileiras de longa, média e curta metragens de produção independente, de co-produção de obras cinematográficas e videofonográficas brasileiras de produção independente, de telefilmes, minisséries, documentais, ficcionais, animações e de programas de televisão de caráter educativo e cultural, brasileiros de produção independente, aprovados pela Ancine. [...]

§ 3º Os valores não aplicados na forma do inciso X do caput deste artigo, após 270 (duzentos e setenta) dias de seu depósito na conta de que trata o § 2º deste artigo, destinar-se-ão ao FNC e serão alocados em categoria de programação específica denominada Fundo Setorial do Audiovisual.

§ 4º Os valores previstos no inciso X do caput deste artigo não poderão ser aplicados em obras audiovisuais de natureza publicitária.

Nesse diapasão, imaginemos que o contribuinte da Condecine Remessa, que pode ser uma programadora internacional (por exemplo), opta pela isenção condicionada prevista no art. 39, inciso X da MP 2.228-1/2001. Assim, o contribuinte efetua o depósito referente aos 3% sobre o valor da remessa (equivalente a, aproximadamente, 27% da Condecine Remessa, tributo integral) na conta de recolhimento. Porém, transcorridos 270 (duzentos e setenta) dias da data do depósito na conta de recolhimento, a programadora internacional não indica formalmente projeto apto a captar os recursos investidos. Ou melhor, ela indica um projeto inexistente, um projeto F-A-N-T-A-S-M-A.

Na sequência, ao invés desses valores serem devidamente encaminhados para depósito na categoria de programação específica do Fundo Nacional de Cultura, denominada Fundo Setorial do Audiovisual - FSA, na forma do § 3º do art. 39 da MP 2.228-1/2001, eles continuam atrelados ao projeto fantasma, como um simulacro. E podem ficar passando de simulacro a simulacro até alcançar um projeto real, existente.

Essa manobra gera uma economia tributária equivalente a 73% do montante inerente ao tributo devido, que se refere aos 8% restantes (totalizando a alíquota de 11% da Condecine Remessa). Sem olvidar o lucro do equity, que são os direitos patrimoniais da obra audiovisual, e uma possível burla ao teto de captação, pois a verba ficava ali congelada (“guardando caixão”), pois esse projeto fantasma podia passar para outro projeto fantasma, realizando assim uma espécie de looping infinito, ao invés de ser democraticamente investida através do FSA.

Portanto, além da evasão fiscal é nítido o prejuízo ao FSA e aos atores do mercado que ficam completamente prejudicados com esse complexo estratagema dos filmes fantasmas. Se perfazendo necessário, portanto, a cobrança e o ulterior recolhimento integral do tributo para evitar a lesão ao erário.

Não foi à toa que o livro recém lançado de minha autoria, Condecine e Poder Regulamentar2, obra adaptada e fruto de uma dissertação de mestrado na Uerj, aprovada com louvor pela banca examinadora no ano de 2021, já alertava que diante da natureza condicionada da isenção fiscal, o não preenchimento das condicionantes importa na sua “não ocorrência”, o que dá ensejo a necessidade de recolhimento integral dos valores (11%). Confira-se:

Já adiantamos aqui nosso entendimento no sentido de que deve ser realizado o recolhimento integral do tributo na hipótese sob alíquota de 11%, haja vista que pela natureza condicionada da isenção, o mero depósito dos valores não é suficiente para expurgar a necessidade de recolhimento integral do tributo. Caso contrário, a Condecine Remessa prevista no parágrafo único do art. 32 da MP 2.228-1/2001 se tornaria letra morta, havendo, assim, uma subversão completa da finalidade da CIDE de atuar na correção e no fomento ao mercado audiovisual, trazendo possivelmente uma desventurada concentração de recursos públicos em prol de determinadas empresas.

Com efeito, ao realizar a opção de tentar efetivar a isenção a partir da data inicial de recolhimento, caso não seja indicado formalmente um projeto devidamente aprovado pela Ancine, tal como preconiza o art. 39, inciso X da MP 2.228-1/2001, o contribuinte tem o prazo de 270 dias para pagar o seu tributo (integral). Nesse ínterim, o devedor tributário recolhe uma parte do valor (3%, equivalente a 27% do tributo devido), quase como um depósito caução, e pode buscar a validação da sua isenção, que é dependente do cumprimento de diversos condicionantes. Caso não consiga cumprir as condições impostas, deverá recolher o tributo integral conforme já asseverado.

No âmbito do TCU, cumpre assinalar que o relatório de auditoria contendo as irregularidades na concessão do incentivo fiscal previsto no art. 39, inciso X da MP 2.228-1/2001 e que deu origem à Tomada de Contas 001.759/2019-1, também havia sido tratado em tópicos específicos na Tomada de Contas TC 031.532/2020-9 que abordou a questão do Fundo Setorial do Audiovisual - FSA.

Portanto, tendo em vista que ambas as tomadas de contas tiveram como relator o Ministro Marcos Bemquerer Costa, destaco aqui alguns trechos bastante contundentes os quais passo a compilar a seguir:

 76. Conforme apontado pela equipe de auditoria, o correto recolhimento dos valores incentivados com base no art. 39, inciso X, da MP 2.228-1/2001 não está sendo assegurado, ou seja, não há como garantir a correta destinação da arrecadação da Condecine-Remessa, o que pode acarretar utilização irregular desse incentivo, com concessões indevidas de isenções.

77. O que ocorre é que os responsáveis tributários que teriam a obrigação de recolher 11% do valor da operação diretamente ao FSA (Condecine-Remessa), para obter a isenção fiscal, pagam apenas os 3% previstos na legislação, mas não indicam um projeto aprovado pela Ancine que será beneficiado com esse recurso, de tal forma que o respectivo depósito só pode ser transferido ao FSA após o decurso do prazo legal de 270 dias, sendo que, na prática, esse prazo tem sido ainda maior, devido as dificuldades operacionais da Ancine em efetuar essa transferência dentro desse prazo legal.

78. Conforme bem explicitado pela unidade técnica, resta demonstrado que essa situação tem prejudicado o FSA duplamente, pois são repassados menos recursos (3% em vez de 11%) e a quantia bem menor que é recolhida demora muito para ser repassada ao fundo.

79. O que se observa é que as empresas estrangeiras que deveriam pagar o Condecine-Remessa, no percentual de 11%, acabam por se beneficiar da isenção tributária, sem oferecer a contrapartida prevista pelo legislador de investir em projetos de produtoras nacionais independentes e promover o fomento do setor audiovisual brasileiro.

 (...)

 81. Tem-se, portanto, que o impacto negativo dessa manobra fiscal não pode ser minimizado, pois no período de 2008 a 2020, um montante total de R$ 145.839.872,11 deixou de ser arrecadado.

 (...)

 84. Ainda acerca da evasão fiscal, reporto-me ao que prevê a Lei o art. 1º da Lei 4.729/1965:

“Art 1º Constitui crime de sonegação fiscal: (Vide Decreto-Lei nº 1.060, de 1969)

I - prestar declaração falsa ou omitir, total ou parcialmente, informação que deva ser produzida a agentes das pessoas jurídicas de direito público interno, com a intenção de eximir-se, total ou parcialmente, do pagamento de tributos, taxas e quaisquer adicionais devidos por lei;

II - inserir elementos inexatos ou omitir, rendimentos ou operações de qualquer natureza em documentos ou livros exigidos pelas leis fiscais, com a intenção de exonerar-se do pagamento de tributos devidos à Fazenda Pública;”

 85. Acrescente-se o conceito contido na Lei 8.137/1990 que define crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo:

“Art. 1°. Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: (Vide Lei nº 9.964, de 10.4.2000):

I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;”

(grifos acrescidos)

 87. Por todo o exposto, considero ser dever desta Corte de Contas, ao detectar potencial risco de evasão fiscal, determinar a adoção de providências por parte dos órgãos competentes, no caso a Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil e a Agência Nacional do Cinema.

Ante o exposto, cabe realçar que o combate à evasão fiscal por parte dos órgãos de fiscalização e autoridades fazendárias é essencial para toda a sociedade, que é a mais afetada pela evasão fiscal e sofre com as consequências nefastas que esta traz. Portanto, as ações de coibição da evasão fiscal são imprescindíveis, pois a evasão é uma conduta de proporções prejudiciais exorbitantes, equiparando-se com a corrupção, e faz com que a receita da máquina pública diminua e recaia sobre quem paga rigorosamente seus tributos, que, por sua vez, não tem o retorno esperado com políticas públicas insuficientes.

Finalmente, voltando-me para a analogia com a sinopse dos caça fantasmas mencionados no introito desde artigo, fica evidenciado que os fantasmas já foram devidamente localizados pelos professores e “monstro de marshmallow” já está pronto para o abate, com a devida restituição ao erário público e a correta responsabilização dos agentes realmente envolvidos, caso haja. 

Mas o bem da verdade é que o final dessa história ainda está para ser escrito, mas é preciso que as pessoas enxerguem esse absurdo para que os equívocos sejam reparados. E uma coisa é certa: no fim das contas, os caça fantasmas estavam certos!

_____________

1 BITENCOURT, Rafael. Ancine Aponta Prejuízos em Fundo do Audiovisual de 350 milhões. Valor Econômico. Publicado em 22/01/2019. Brasília. . Acesso em 26 de abril de 2021.

2 MARANHÃO JUNIOR, Magno de Aguiar. Condecine e Poder Regulamentar: um ensaio sobre a infração regulatória. Rio de Janeiro: ed. Lumen Juris, 2021. p. 162.

 

 

Magno de Aguiar Maranhão Junior
Doutorando em Direito pela UERJ. Mestre em Direito pela UERJ. Especialista em Direito Civil-Constitucional pela UERJ. Professor da FTESM e especialista em Regulação da ANCINE.

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