Migalhas de Peso

A nefasta súmula 377 do STF

Devemos voltar os olhos para o fato de que o Código é aquilo que ele é e não aquilo que nós aspiramos que ele idealmente seja.

8/2/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Em 3 de abril de 1964 se instaurou uma das maiores divergências no âmbito do Direito de Família brasileiro. Embalado pela fúnebre notícia de que na madrugada do dia anterior o seu Presidente, Ribeiro da Costa, havia sido conduzido pelo deputado Nélson Carneiro ao palácio da Alvorada, em Brasília, onde investiu o deputado Ranieri Mazzilli, então presidente da Câmara dos Deputados, na presidência da República, em substituição a João Goulart, deposto pelo movimento político-militar de 31 de março1, o Supremo Tribunal Federal editou a súmula 3772, prevendo que “No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”.

Desde então, a doutrina e a jurisprudência travam um verdadeiro embate acerca do tema para saber se estaria o verbete sumular superado ou não na vigência do Código Civil de 2002.

Ab initio, cumpre destacar que o principal argumento trazido à baia por aqueles que defendem a manutenção no sistema da vetusta súmula é o de que ela teria como escopo afastar o enriquecimento sem causa (arts. 884 a 886 do CC/02), tendo em vista que, na maioria das vezes, todo o patrimônio constituído pelo casal acabava nas mãos de um só, que, geralmente, era o marido.

Limongi França conceitua o enriquecimento sem causa como “o acréscimo de bens que se verifica no patrimônio de um sujeito, em detrimento de outrem, sem que para isso tenha um fundamento jurídico”3.

Superado o conceito inicial e partindo-se para a análise do argumento, Rolf Madaleno assevera que:

[...] um dos evidentes propósitos do Supremo Tribunal Federal ao editar a Súmula 377, a par da questão pontual do artigo 259 do Código Civil de 1916, também foi o de evitar o enriquecimento ilícito nos casamentos de imposição do regime da separação de bens, porque o patrimônio adquirido na constância do casamento pelo esforço comum terminava em mãos de só um dos cônjuges, de hábito o varão, sob cuja titularidade restava inscrito o acervo construído durante toda a história do matrimônio (MADALENO, 2011, p. 73).

Boa parte dos doutrinadores contemporâneos sufragam a manutenção do tenebroso entendimento. A título de exemplo podemos colacionar Paulo Lôbo4, Maria Helena Diniz5, Nelson Nery Júnior e Rosa Nery6, Zeno Veloso7, Rodrigo Toscano de Brito8, Maria Berenice Dias9, Silvio de Salvo Venosa10, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald11, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho12.

Assim também caminha a jurisprudência do Tribunal da Cidadania que, não contente em aplicar um entendimento com base em direito revogado, resolveu brincar com o verbete e ampliar o debate para saber se haveria necessidade de esforço comum para comunhão dos aquestos e, mais recentemente, se esse esforço seria direto ou indireto13.

Diante desse cenário, faz-se necessário um esclarecimento que, na ânsia de tentar embasar um dispositivo legal morto, parece ter sido deixado às margens pela doutrina e jurisprudência.

Imaginemos a situação em que um senhor de 90 anos de idade conhece uma bela moça de 19 e passa a estabelecer com ela um romance. Depois de alguns meses, eles resolvem se casar. A moça, com intenções espúrias, começa a pedir presentes ao amado e ele, envolto em nobres sentimentos pela donzela, começa a presenteá-la com imóveis e itens luxuosos. Ela, estudante de Direito, sabendo da existência da nefasta súmula, contribui com a aquisição dos imóveis em pequenas quantias que detinha na sua conta corrente. Depois de pouco mais de três anos, a moça diz que o sentimento acabou e decide colocar fim a relação. Pergunto: nesse caso, teria a súmula inibido o enriquecimento sem causa? Nos parece que não. Ao revés, ela deturpou um instituto que visava proteger o idoso, desaguando em nítido prejuízo para ele, que terá que lidar com um transtorno para demonstrar a proporção de contribuição da ex-esposa, em nítido descompasso com o que almejava o legislador do Código de 2002.

É isso o que ocorre sempre que o Judiciário decide se imiscuir nas funções típicas do Legislativo. Aliás, essa característica tem sido amplamente criticada pela doutrina, uma vez que o STF, cada vez mais, tenta usurpar as demais funções da República14,15,16.

O legislador, ao criar o inciso II do art. 1.641 do atual Código Civil, tinha como objetivo a proteção do idoso, visando evitar eventuais matrimônios contraídos com interesses meramente patrimoniais. A intenção dele (legislador) foi a de estabelecer definitivamente a não comunhão dos aquestos no regime de separação obrigatória de bens.

Não poderia o STF, por uma súmula, inovar a ordem jurídica, contrariando expressamente o texto da lei. Pior do que isso, o STF não poderia manter o entendimento mesmo diante da emergência de um novo diploma privado que, sem deixar dúvidas, revogou os artigos que lhe davam fundamento (arts. 258 e 259 do CC/16)17,18.

Com a devida vênia e respeito, até mesmo a doutrina supracitada que advoga no sentido da manutenção da sumular entre nós, reconhece que o intuito da sua edição foi o de ludibriar a restrição legal estampada no art. 1.641, II. Esclarecem Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald que “Com o propósito de escapar da restrição legal, foi editada a Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal [...]”19.

Desse modo, é inconcebível em um Estado democrático de direito que, sempre que não se concorde com uma norma, utilize-se da força judicante para submergi-la. Eventuais descontentamentos com os impedimentos de se determinar livremente o regime de bens do casamento devem ser questionados pela via correta, seguindo os trâmites determinados por lei,20 com respeito às competências típicas do Poder Legislativo.

Faz-se mister ressaltar que o que se pretende no presente artigo não é proferir um juízo de valor acerca do conteúdo do entendimento sumulado. Não se questiona se a súmula é boa ou ruim, apenas se esclarece que ela não deveria existir, por vagar entre nós com base no direito não mais existente e por nascer com o nítido intuito de ludibriar o texto legal, em total dissonância dos trâmites exigidos por lei.

Ademais, outro argumento que rotineiramente surge quando se descortina o fato de que o Supremo quis fazer as vezes de legislador é o de que há outras fontes no direito que não apenas a lei. Por todos, podemos citar Rodrigo da Cunha Pereira, para quem “[...] como a fonte do Direito não é só a lei, mas também os costumes, a doutrina e a jurisprudência foram se encarregando de corrigir esta injustiça, culminando em 08/05/1964, na Súmula 377 do STF [...]”21.

Esquecem-se os navegantes de tão turvas águas que, apesar do fortalecimento dado pela doutrina e jurisprudência às súmulas, elas ainda permanecem no nosso ordenamento como fonte subsidiária.

Nesse ponto, faz-se importante esclarecer que as súmulas e as súmulas vinculantes exercem papéis diametralmente distintos no sistema de justiça brasileiro. Nesse sentido, esclarece José Tarcísio de Almeida:

A súmula da Jurisprudência Predominante do STF, organizada pela Comissão formada pelos ministros Victor Nunes Leal, Gonçalves de Oliveira e Pedro Chaves, introduzida pela Emenda Regimental de 26 de Agosto de 1963, não se confunde com a súmula vinculante. Ao contrário desta, que é impositiva, a súmula da jurisprudência predominante visa orientar e servir de método de trabalho para os operadores do direito, como advogados, magistrados etc. [...] Os ministros que organizaram a súmula explicaram que sua finalidade ‘não é somente proporcionar maior estabilidade à jurisprudência, mas também facilitar o trabalho dos advogados e do Tribunal, simplificando o julgamento das questões mais frequentes’ (MELO, 2008, p. 7).

Diante do esclarecimento, podemos vislumbrar que as súmulas possuem efeito limitado, de cunho supletivo, servindo apenas para orientação do intérprete. Não é à toa que a lei de introdução às normas do Direito Brasileiro permite ao juiz inovar nas suas decisões, apenas quando verificada a omissão da lei22.

Não podemos nos descurar de que o ordenamento jurídico brasileiro é fundado e encontra raízes no Civil Law, com base no sistema romano germânico, em que a lei exerce prevalência sobre as demais fontes do direito. Embora cada vez mais a tendência seja pela mitigação desse sistema, ainda há predominância daquilo que está escrito e legislado sobre a doutrina, a jurisprudência e os costumes.

Um dos maiores juristas que já caminhou entre nós, Miguel Reale, ressaltou, no seu aclamado livro intitulado “Lições preliminares de direito”, que:

Cabe, nesse sentido, distinguir dois tipos de ordenamento jurídico, o da tradição romanística (nações latinas e germânicas) e o da tradição anglo-americana (common law). A primeira caracteriza-se pelo primado do processo legislativo, com atribuição de valor secundário às demais fontes do direito. [...] Ao lado dessa tradição, que exagera e exacerba o elemento legislativo, temos a tradição dos povos anglo-saxões, nos quais o Direito se revela muito mais pelos usos e costumes e pela jurisdição do que pelo trabalho abstrato e genérico dos parlamentos. Trata-se, mais propriamente, de um Direito misto, costumeiro e jurisprudencial. Se, na Inglaterra, há necessidade de saber-se o que é lícito em matéria civil ou comercial, não há um Código de Comércio ou Civil que o diga, através de um ato de manifestação legislativa. O Direito é, ao contrário, coordenado e consolidado em precedentes judiciais, isto é, segundo uma série de decisões baseadas em usos e costumes prévios. Já o Direito em vigor nas nações latinas e latino-americanas, assim como também na restante Europa continental, funda-se, primordialmente, em enunciados normativos elaborados através de órgãos legislativos próprios (REALE JÚNIOR, 2002, p. 141).

Como consectário desse sistema, a LINDB determina que uma lei só pode ser revogada por outra lei,23 não sendo possível, assim, que fontes acessórias como doutrina e/ou jurisprudência revoguem uma norma posta ou estabeleçam exceções em desconformidade ao que consta no texto legal.

Diante do preciso ensinamento supramencionado, não resta outra conclusão se não a de que o verbete se encontra superado e deveria ser extirpado do ordenamento pátrio, tendo em vista contrariar fatalmente o objetivo do legislador ordinário.

O que se conclama é que os defensores da manutenção da vetusta súmula se insurjam pelas vias corretas, cobrando do Legislativo uma alteração legal que siga todos os ritos para elaboração de uma norma, não legitimando decisões judiciais às margens do Código Civil de 2002 e, sobretudo, da Carta da República de 1988.

Por fim, devemos voltar os olhos para o fato de que o Código é aquilo que ele é e não aquilo que nós aspiramos que ele idealmente seja.

__________

1 DIAS, Sonia. Alvaro Moutinho Ribeiro da Costa. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/alvaro-moutinho-ribeiro-da-costa. Acesso em: 26 jan. 2022.

2 Tendo como precedentes os Recurso Extraordinários 7243 EI, de 12/06/1945, 10951, de 09/04/1948, 9128, de 17/12/1948, e 8984 EI, de 11/01/1951. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula 377. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/seq-sumula377/false. Acesso em: 26 jan. 2022).

3 FRANÇA, Limongi. Enriquecimento sem Causa. São Paulo: Saraiva, 1987.

4 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 307-308

5 DINIZ, Maria Helena. Código Civil anotado. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 1.169

6 NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil anotado. 2. ed. São Paulo: RT, 2003. p. 737

7 VELOSO, Zeno. Direito hereditário do cônjuge e do companheiro. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 55.

8 BRITO, Rodrigo Toscano de. Compromisso de compra e venda e as regras de equilíbrio contratual do CC/2002. In: DINIZ, Maria Helena (Coord.). Atualidades jurídicas. São Paulo: Saraiva, 2004. n. 5,

9 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 14. ed. Salvador: Juspodivm, 2021. p. 717

10 VENOSA, Silvio de Salvo. Código Civil interpretado. São Paulo: Atlas, 2010. p. 1.511-1.512

11 FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias. Salvador: Juspodivm, 2017. p. 314

12 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Direito de Família. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 316. v. 6

13 Por todos, vide REsp. n. 154.896/RJ, 1.623.858/MG e 1.689.152/SC.

14 O STF tem legislado?  Acesso em: 03 fev. 2022.

15 STF legisla ao criminalizar homofobia. Canal Ciências Criminais, 2019. Disponível em: https://canalcienciascriminais.com.br/stf-legisla-ao-criminalizar-a-homofobia/. Acesso em: 03 fev. 2022.

16 STF legisla ao criar mutações constitucionais, diz jurista português.  Acesso em: 03 fev. 2022.

17 Art. 258 do CC/1916 - Não havendo convenção, ou sendo nula, vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime de comunhão parcial.

18 Art. 259 do CC/1916 - Embora o regime não seja o da comunhão de bens, prevalecerão, no silêncio do contrato, os princípios dela, quanto à comunicação dos adquiridos na constância do casamento.

19 FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias. Salvador: Juspodivm, 2017. p. 313

20 O processo legislativo é tratado na Constituição Federal de 1988 entre os arts. 59 a 69.

21 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito das Famílias. 2. ed. Rio de Janeiro: Forens, 2021. p. 394

22 Art. 4 - Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

23 Art. 2 - Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.

Lucas Ruan
Graduado em Direito pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo (Unisal). Graduando em Filosofia pela Universidade Católica de Brasília (UCB). Membro da Academia Brasileira de Direito Civil.

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