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Processo arbitral que não segue decisão judicial com eficácia vinculante pode ser anulado

Se as regras de direito forem objeto de interpretação vinculante e um árbitro conferir-lhes entendimento diverso, a sentença arbitral viola a ordem pública e pode ser anulada.

9/2/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Entre as inovações introduzidas no sistema processual, uma das mais importantes consiste na eficácia vinculante de determinadas decisões judiciais, proferidas em certos incidentes e consubstanciadas em enunciados. Tal conclusão pode ser extraída de alguns dispositivos que tratam do tema.

Teses contrárias a enunciados de súmulas ou a julgamentos de recursos repetitivos pelo STF e STJ, bem como a entendimento firmados em incidentes de resolução de demanda repetitivas ou de assunção de competência e a súmula do tribunal de justiça sobre direito local devem ser rejeitadas liminarmente (CPC, art. 332).

Nessa mesma linha, o legislador determina aos juízes e tribunais a observância de decisões resultantes das referidas técnicas processuais (arts. 927, 947, § 3º, 985, 987 e 988, 1030 e 1043).

Dessas regras extrai-se a inexorável conclusão segundo a qual a orientação adotada nas decisões nelas previstas devem ser obrigatoriamente seguidas em julgamentos futuros, inclusive nos processos arbitrais. Trata-se de técnica processual adotada pelo legislador, por força da qual as teses jurídicas fixadas em determinados julgados dos tribunais tornam-se vinculantes e devem ser observadas.

Essa regulamentação prevista no Código de Processo Civil não configura, a meu ver, ofensa à Constituição Federal.

Embora a eficácia da interpretação da norma pelo juiz não implique propriamente criação do direito, pois ele parte de algo preexistente, cujos limites não podem ser extrapolados, não se pode negar que o resultado desse processo constitui fenômeno inédito, pois ele representa, no entender do julgador, a vontade do legislador, que pode não coincidir com a conclusão de outro juiz sobre a mesma regra.

Assim, identificado o sentido de determinado dispositivo legal, a incidência da solução para situações diversas do caso concreto, inclusive futuras, não constitui criação de regra geral e abstrata pelo tribunal.

A orientação obrigatória resulta do entendimento atribuído a determinado dispositivo preexistente, criado por quem tem o poder de fazê-lo, não pelo juiz. Ao extrair o sentido da regra, ele não pode desconsiderar seu conteúdo e o significado de seus termos. Essa orientação pode tornar-se vinculante mediante técnica processual. Se tal ocorrer, todos devem observá-la. O conteúdo da lei revelado por certos órgãos jurisdicionais pode, portanto, tornar-se obrigatório. A existência de enunciados genéricos, abstratos e vinculantes, não implica invasão da esfera reservada ao Legislativo, pois eles correspondem ao resultado do legítimo exercício da função jurisdicional.

Nada impede, aliás, a criação de nova lei, conferindo à anterior significado diverso daquele extraído pelo Judiciário em decisão vinculante. A partir de então, perde eficácia a orientação adotada pelo tribunal em qualquer dos mecanismos processuais aptos à uniformização da jurisprudência. Esse fenômeno é admitido mesmo no sistema da common law.

Admitida a premissa inexorável de que compete ao juiz construir o sentido da norma, visto que a letra da lei sempre comportará mais de um significado, não me parece haver óbice a que o legislador processual adote técnicas destinadas a conferir força vinculante a determinadas decisões, visando a uniformizar a interpretação do direito.

Aliás, soluções semelhantes já existem no sistema brasileiro, como a extensão a terceiro da imutabilidade de sentença proferida em processo versando sobre interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos (lei 8.078, de 11.9.90, art. 103). A técnica é diversa, mas o resultado é análogo, ou seja, em certa medida, a decisão vinculará terceiros, não podendo o julgador deixar de observá-la.

Assim, nada obsta que o legislador ordinário reconheça essa eficácia em relação a situações às quais seja possível aplicar a regra formulada em acórdãos resultantes de certos incidentes verificados no âmbito dos tribunais (demandas repetitivas, assunção de competência, repercussão geral, recursos repetitivos), de enunciados de súmulas do STF e do STJ, bem como de orientações do plenário e o órgão especial (NCPC, art. 927).

Além do mais, esse entendimento vai ao encontro do sistema constitucional, que confere ao Supremo Tribunal Federal a guarda da Constituição e, em consequência, o poder de decidir em última instância, mediante controle concentrado ou difuso, sobre a constitucionalidade das leis (CF, art. 102, caput, incisos I, a e III; 103-A). Nessa mesma linha, ao Superior Tribunal de Justiça compete julgar, em caráter definitivo, controvérsia sobre direito federal, bem como uniformizar a jurisprudência sobre o entendimento dessas normas (CF, art. 105, inciso III). Como esses Tribunais Superiores não examinam legislação estadual, cabe aos Tribunais dos Estados a decisão final sobre a interpretação desse direito.

À luz dessas considerações, não obsta a criação, pelo legislador ordinário, de técnicas destinadas a tornar vinculantes orientações consubstanciadas em enunciados dessas Cortes, visando a dar cumprimento à função a elas atribuída pelo legislador constitucional. Se receberam da Constituição a atribuição de definir a interpretação adequada de determina norma – constitucional, federal e estadual, respectivamente – razoável a regulamentação dessa atividade pelo Código de Processo Civil, de modo a tornar vinculantes as decisões proferidas em incidentes destinados exatamente ao cumprimento desse escopo constitucional. 

Assim, as orientações vinculantes previstas pelo CPC devem ser observadas em todos os julgamentos realizados em processos judiciais ou arbitrais, ressalvada, em relação ao mecanismo alternativo, a expressa autorização das partes para adoção da equidade (lei de arbitragem, art. 11, II). Se, nesse caso, as partes podem abrir mão das regras de direito, também poderão fazê-lo em relação à interpretação vinculante dada a elas pelos tribunais. Inexistente a convenção, se as regras de direito pertinentes forem objeto de interpretação vinculante, não poderá o árbitro conferir-lhes entendimento diverso, sob pena de violação a regra processual de ordem pública (LA, art. 2º, § 1º) e nulidade da respectiva sentença, a ser decretada pelo Poder Judiciário (LA, arts. 32/33). Não se trata de juízo de mérito, mas violação à técnica processual consistente no efeito vinculante erga omnes conferido pelo legislador a certas decisões judiciais.

José Roberto dos Santos Bedaque
Professor titular de Direito Processual da Faculdade de Direito da USP, e sócio do Escritório Dinamarco, Rossi, Beraldo & Bedaque.

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