Migalhas de Peso

Num reino bem distante

Servo da realidade, vou aguardar os acontecimentos e oportunamente relatarei o epílogo dessa história.

7/2/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Advirto-vos que a história que adiante será narrada é baseada em fatos reais, embora os nomes sejam fictícios, pela óbvia finalidade de preservar a identidade dos envolvidos. 

O Reino vivia sua era de máxima prosperidade. Após longos e exitosos anos, o rei Luís XIII viu que sua obra era boa e que era hora de descansar. Numa rápida solenidade, passou o cetro para a rainha Dilma e recolheu-se em gozo de sua merecida aposentadoria.  Nunca antes na história daquele distante Reino uma mulher houvera assumido o comando magno da nação. 

Todos os nobres, autoridades e grande contingente dos populares compareceram à solenidade. Lá estava até mesmo o príncipe Aécio, cujos olhos sangravam de inveja e ódio, pois considerava-se herdeiro natural do trono. Lá mesmo o príncipe se uniu em conspiração ao conde Cunha, um líder religioso que comandava a Casa dos Comuns. “Ela não poderia ter sido a escolhida, não poderia ter assumido e não poderá governar”, dizia-lhe ao ouvido o inconsolável invejoso. “Não se preocupe, príncipe Aécio. Vamos estancar essa sangria, visível em seus olhos, com supremo e com tudo”, respondeu-lhe o pastor comandante da Câmara Baixa, enquanto fingia atenção ao discurso que proferia a rainha. 

Jair, o bobo da Corte, estava ao lado dos conspiradores e ouviu o diálogo. Espalhou a notícia por todo o Reino, mas era o bobo da Corte e ninguém o levou a sério. 

O fato é que um ano depois a rainha acabou sendo deposta, num processo provocado por uma criadora de serpentes de nome Janaína, atividade exótica que lhe rendeu a alcunha de “Jana, a Insana”. A acusação era de que toda manhã a rainha se dava ao luxo de pedalar pelo entorno do Palácio com sua bicicleta de quadro de alumínio e aro 29, o que algumas pessoas passaram a considerar um acinte aos que só dispunham de seus próprios pés para seus transportes. Acresce que ela exercitava suas pedaladas praticamente na hora do trabalho, entre seis e sete horas da manhã, e só às sete, em ponto, iniciava o expediente, que em geral não terminava antes das dez da noite. Em um ou outro dia houve quem se queixasse do odor pouco agradável exalado pela rainha ciclista, pois nessas raras ocasiões ocorreu de não ter tido tempo de perfumar-se antes de se entregar aos ofícios.  

Embora discutíveis os argumentos à luz do bom Direito, o fato é que uma bem orquestrada campanha difamatória comandada pel'O Reino - não o Reino que a rainha governava, mas “O Reino”, título do periódico de maior circulação por aquelas plagas – levou os súditos a crerem que de fato aquelas pedaladas feriam real e gravemente os normativos legais. E “Jana, a Insana” bradava aos quatro cantos enquanto girava uma bandeira nacional, como o atleta olímpico que preparasse o lançamento do martelo, para molde de dar mais realismo à encenação, que era uma “bicicleta de alumínio e aro 29!”.  

Juristas renomados, do Reino e do exterior, apontavam para a fragilidade da argumentação. Diziam que era ridícula a sustentação de que o fato de a rainha pedalar toda manhã das seis às sete e alguma vez ter iniciado o expediente sem se perfumar feria o artigo 85 da Carta Magna, mas o conluio era “com o Supremo, com tudo”. E, de fato, a Corte Máxima pronunciou-se no sentido de que a acusação indicava suficientemente a tipificação do crime de responsabilidade. Destacou que a rainha havia tido oportunidade e exercera plenamente seu direito à ampla defesa e ao contraditório e, portanto, havia sido observado o devido processo legal. Concluiu que, diante desse quadro de absoluta normalidade, nada havia que pudesse ser feito para impedir o evidente golpe de estado, como reconheceu o eminente magistrado Luís, o Barroso, em brilhante e irretocável voto, elogio que lhe dedicaram os demais luíses da Corte, o Fux e o Fachim. 

Assim que proclamado o resultado, imediatamente tomou posse o vice-rei Michel, o Breve, que bem poderia ter passado para a História como O Invisível. Seu governo foi tão obscuro que ninguém notou quando Jair, o bobo da Corte, a título de fazer mais uma graça, aproximou-se do vice-rei com uma faca de uso cenográfico e, rindo, simulou um golpe contra as costas do governante. O que o bobo não esperava é que o vice, em pleno exercício do reinado, mas cansado já de seu papel apenas decorativo, pudesse fingir sofrer o golpe deveras. De fato, Sua Alteza simulou desmaio e, a despeito de não ter vertido uma só gota de sangue, acabou levado ao hospital, onde foi submetido a delicada cirurgia.  

A notícia de que o vice-rei houvera sido esfaqueado como Júlio César por Brutus espalhou-se pelo Reino. O bobo da Corte chegou a ser preso, suspeito da tentativa do falso assassinato. Alegou em defesa que o crime houvera sido cometido por terceiro, um plebeu de nome Adélio, agente do Partido do Sol, e que, na verdade, ele próprio acudira a vítima, levando-a para o nosocômio, salvando-a da morte. Acabou libertado por ser considerado inimputável, haja vista sua evidente incapacidade de raciocínio. Ex-militar, o bobo da Corte já houvera vivenciado situação semelhante, quando fora encarcerado e expulso do Exército Real por planejar explodir equipamentos da corporação. 

Enquanto o Reino atravessava tal turbulência, o rei Luís XIII viu-se na contingência de abandonar seu justo descanso e retomar para si a Coroa. Era o que o povo queria, pois presente na lembrança de todos os bons tempos vividos pelo populacho sob seu reinado, os melhores em incontáveis décadas, quiçá de toda a História. A hipótese, porém, contrariava as expectativas do príncipe Aécio, ainda inconformado por não o ter sucedido, tampouco lembrado para suceder à rainha deposta.  

Conde Cunha àquela altura achava-se preso, condenado que fora por desfalque ao erário. O príncipe lembrou-se então de um antigo aliado, um magistrado obscuro de uma comarca agrícola no interior. Era o pretor Sérgio Lara Ápio, alcunhado “juiz ladrão” por Glauber, o documentarista real. Glauber era responsável por registrar tudo o que ocorria no ambiente da Corte e que, por isso, vivia com uma ideia na cabeça e equipamento de retrato na mão. Notabilizou-se por grandes tiradas, como essa com que eternizou o pretor interiorano. 

Sérgio, o "juiz ladrão", viu no caso a possibilidade de ele próprio alcançar o posto de rei e tudo fez, de legal e de ilegal, para incriminar Luís XIII. Nada encontrou, mas criatividade não lhe faltou para fazer malabarismo jurídico combinado com prestidigitação e condenar o antigo rei por corrupção, porque houvera recusado vantagem indevida de uma empreiteira. Sim, o pretor conseguiu o feito de condenar um dirigente público por corrupção passiva por este ter recusado a propina que lhe fora oferecida! 

No curso dos acontecimentos, eis que Jair, o bobo da Corte, tornou-se muito popular, sobretudo por ter livrado o povo do jugo que lhe fora imposto por Michel, o Invisível, e aproveitou o vácuo de poder para assumi-lo ele próprio. Dizia contar com apoio da população, que o chamava de “mito” em grandes aglomerações que ele próprio organizava. 

O bobo da Corte nada sabia sobre coisa alguma. Era um sujeito limítrofe que fazia graça contando anedotas surradas sobre mulheres, pessoas de cor e gostos diferentes dos seus e estrangeiros. Com esse comportamento, distraía os demais integrantes da Corte de então, formada por vetustos homens brancos que ostentavam reluzentes cãs e se esforçavam para ocultar desejos tão inconfessáveis quão inescondíveis. 

No reinado de Bobo nada era verdadeiro, tudo rescendia a falsidade. Ele fingia governar. Toda manhã, recebia populares no vestíbulo do Palácio e ali exercia o melhor de sua capacidade, que era fazer rir. E, de fato, as pessoas no cercadinho fartavam-se de gargalhar, o que as fazia sentirem-se felizes.  

O Reino, porém, foi acometido de grave peste que matava pessoas aos borbotões. Bobo nada fazia. Indicava magia, emplastos inúteis, infusões e placebos que oferecia até às emas do palácio, ao mesmo tempo em que se recusava a comprar medicamentos eficazes, o que só fazia crescer a mortandade. Acusaram-no de charlatanismo, curandeirismo, corrupção e toda sorte de crimes contra a saúde pública. 

Enquanto o povo sofria, o rei Bobo divertia-se em cavalgadas e passeios de barco com grande acompanhamento de apoiadores, empanturrando-se de camarões, picanha e leite condensado. Fingia-se popular comendo frango com farofa com as mãos, espalhando sujeira por todo lado, chafurdando no prato como se fosse o porco que de fato era.  

Foi, aos poucos perdendo popularidade, ao mesmo tempo em que se elevavam os clamores pela libertação de Luís XIII e seu retorno ao trono. 

O pretor Sérgio, que houvera abandonado a magistratura como previamente acertara com o rei Bobo, tornou-se seu ministro, em paga e reconhecimento de sua fundamental contribuição para ascensão e assunção do trono, e a população pode então vê-lo como realmente era, mais bobo do que o rei. 

Eis que, passado algum tempo, Sua Majestade, num raro ato digno de aplauso, deu um pé-na-bunda no juiz ladrão que, de tão forte o golpe no traseiro, projetou-o para o reino do Norte, a cujos interesses este servira com gosto enquanto homiziava sob a toga seus anseios políticos. 

Num lance inesperado, porém, uma Corte Máxima envergonhada e já não acoelhada como antes decretou a libertação do rei preso na masmorra da urbe agrícola do interior, ao mesmo tempo em que condenou o pretor Sérgio por parcialidade e incompetência.  

Libertado o rei Luís XIII, este acabou encontrando-se no Palácio com o rei Bobo e o pretor larápio, que retornara do reino do Norte sedento por tomar o lugar de quem lhe vilipendiara as nádegas, maculando-as com a marca indelével de sua botina real. Trancaram-se os três para uma luta de vida ou morte, mas Luís XIII era tão maior que os demais que ambos, amedrontados, saíram correndo rumo à praia mais próxima, onde morreram abraçados. 

Em verdade, em verdade, digo-vos eu, o autor da crônica, o final da História não foi esse, ainda não ocorreu e nem eu mesmo sei como será. Os três, por enquanto, estão na sala onde haverá a luta e eu não me arrisco a adivinhar o desfecho. O roteirista do Reino é muito mais criativo do que minha pobre imaginação possa alcançar. Servo da realidade, vou aguardar os acontecimentos e oportunamente relatarei o epílogo dessa História. 

Luís Antônio Albiero
Procurador Municipal (São José dos Campos, SP). Graduado pela UNIMEP (Piracicaba). Foi vereador (Capivari, SP), advogado do Banespa, assessor jurídico (ALESP), Procurador da Câmara de Americana (SP).

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