No dia 6 de janeiro de 2022, mais de um ano depois das greves de entregadores de aplicativos, que foram chamadas de “breque dos apps”, foi promulgada a lei 14.297/22, que dispõe sobre as condições de trabalho dos entregadores e entregadoras que atuam em prol de aplicativos de entrega e delivery durante a vigência da emergência em saúde pública decorrente do coronavírus, de iniciativa Dep. Ivan Valente (PSOL). Diz-se desde logo: expectativas foram frustradas! A começar por a lei ser temporária!
Na prática, a legislação traz alguns avanços, mas ainda não é suficiente para conferir a proteção adequada almejada pela categoria. Os entregadores passaram a ser mais demandados durante a emergência sanitária mundial, ocasionada pela pandemia da Covid-19, com isso entraram no centro do debate sobre a precariedade das suas condições de trabalho.
A legislação contém pontos que permitem críticas contundentes. Cite-se por exemplo o art. 2º, inciso I, que qualifica as empresas de aplicativos como meras “intermediárias”, as quais forneceriam apenas a tecnologia para conectar clientes e entregadores. Neste aspecto, o texto repisa a insegurança jurídica vivida hoje pelos profissionais que atuam em prol das plataformas de entregas, permitindo que a litigiosidade no judiciário prossiga como está: indefinida.
Isso, apesar de a CLT, desde 2011, já trazer a definição de trabalho controlado por meios telemáticos, o que seria suficiente para resolver a questão: “os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio” (CLT, parágrafo único do art. 6º, com a redação da lei 12.551). As empresas de tecnologia, todavia, resistem na aplicação da CLT, por classificarem o trabalho dos profissionais que lhe prestam serviços como de “parceria” ou mero “trabalho autônomo”.
Não bastasse a disposição do inciso I do art. 2º, o art. 10 da lei 14.297/22, ao ressaltar que “os benefícios e as conceituações”, nela previstos, “não servirão de base para caracterização da natureza jurídica da relação entre os entregadores e as empresas de aplicativo de entrega”, atua como verdadeira cortina de fumaça, mantendo indefinida a caracterização dessa relação como de emprego. Como se sabe, essa indefinição não permite a esses profissionais o acesso aos mais básicos direitos trabalhistas previstos na Constituição federal — jornada de trabalho de até 44 horas semanais, remuneração mínima equivalente ao salário-mínimo, descansos remunerados, décimo terceiro salário, dentre outros —, assim como à seguridade social, nas condições mais benéficas garantidas aos demais trabalhadores com carteira assinada.
Nesses aspectos (artigos 2º, I, e 10), pode-se dizer que o Congresso Nacional seguiu na contramão de grandes potências internacionais, como os Estados Unidos da América1, o Reino Unido2 e a União Europeia3, cuja jurisprudência ou diretivas caminham na linha do reconhecimento do trabalho “uberizado” como subordinado. Condição que entrega a esses trabalhadores e trabalhadoras os direitos e garantias sociais que aqui ainda lhes são dificultados.
Ademais disso, vale ressaltar a vigência temporária da lei, já que sua aplicação se dará apenas enquanto perdurar a pandemia da Covid-19. Questiona-se: e o amanhã?
Há mais. A lei faz referência expressa apenas aos entregadores, deixando à mercê da sorte os demais trabalhadores em aplicativos, como os motoristas de plataformas de transporte, que vivem praticamente as mesmas condições de trabalho dos entregadores: epidemia dos acidentes de trânsito, extensas jornadas de trabalho para a satisfação das necessidades básicas de vida, aumento dos custos com combustível, adoecimento e exposição pela Covid-19, ausência de respaldo das empresas em caso de bloqueio ou exclusão involuntária da plataforma.
Por seus pontos positivos, a nova legislação garante aos entregadores a contratação de seguro contra acidentes, cuja responsabilidade do custeio é da plataforma; o pagamento de auxílio financeiro em caso de infecção pelo coronavírus; informações atualizadas sobre proteção contra a Covid-19; o fornecimento de equipamentos de proteção individual — como máscaras e álcool em gel durante as entregas —; permite que os trabalhadores utilizem os sanitários e bebam água potável dos estabelecimentos onde coletam as entregas e ainda determina que as plataformas justifiquem bloqueios e exclusões indevidas, que devem ser realizadas após notificação do profissional — grande desejo da categoria.
A lei 14.297/22 também prevê a possibilidade de sanções administrativas e financeiras às plataformas, em caso de descumprimento dos seus termos.
Coincidência ou não, com a aprovação da lei que confere alguns direitos aos entregadores em aplicativos, a Uber Eats anunciou o fim das operações de delivery no Brasil. Estaria a precariedade das condições de trabalho dos plataformizados com os dias contados? A conferir o que 2022 trará de progresso nessa discussão.
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1 Em agosto de 2020, uma corte de apelação da Califórnia obrigou a Uber e a Lyft a cumprirem a AB 5 em 10 dias. https://pt.scribd.com/document/481294968/Uber-Lyft-Appeals-Ruling, acesso em 10/01/2021.
2 Em fevereiro de 2021, a Suprema Corte do Reino Unido confirmou, por unanimidade, as decisões das três instâncias inferiores e reconheceu que os motoristas da Uber são “workers”, e não trabalhadores autônomos, como queria a empresa. A decisão seguiu o caminho traçado pelas cortes máximas da Alemanha, França, Espanha e Itália. https://trab21.blog/2021/02/19/suprema-corte-do-reino-unido-confirma-motoristas-da-uber-nao-sao-trabalhadores-autonomos/, acesso em 10/01/2021
3 Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, relativa à melhoria das condições de trabalho nas plataformas digitais (Bruxelas, 9/12/2021). https://portugal.representation.ec.europa.eu/news/propostas-da-comissao-para-melhorar-condicoes-de-trabalho-das-pessoas-que-trabalham-atraves-de-2021-12-09_pt, acesso em 10/01/2021.