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Recuperação judicial de times de futebol e a SAF

A mudança para uma fase de gestão empresarial no universo do futebol brasileiro já se iniciou e é um caminho sem volta para a modernização sem perder a paixão.

5/1/2022

No último dia 17 de dezembro de 2021 a Justiça Estadual de Santa Catarina homologou o plano de recuperação extrajudicial protocolizado pelos procuradores que representam o Figueirense Futebol Clube.

Tenha-se presente que, no cenário nacional, o Figueirense Futebol Clube, tradicional clube de futebol do Estado de Santa Catarina que, atualmente, participa da terceira divisão do Campeonato Brasileiro, foi o primeiro clube a protocolizar o plano de recuperação extrajudicial de natureza impositiva.

A acertada decisão proferida nos autos número 5024222-97.2021.8.24.0023/SC pelo E. Juiz de Direito da Vara Regional de Rec. Judiciais, Falências e Concordatas da Comarca de Florianópolis do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, o Dr. Luiz Henrique Bonatelli, além de inovadora (dentro de um contexto esportivo/econômico no Brasil), salvaguarda a atividade esportiva, cultural e econômica de um clube expressivo do futebol brasileiro há mais de 100 anos.

Necessário relembrar, que antes da decisão homologatória do pedido de Recuperação Extrajudicial, o Figueirense havia requerido tutela cautelar antecedente preparatória a qual foi indeferida por ilegitimidade ativa, julgada extinta sem resolução de mérito.

Destarte, em grau recursal, a sentença foi acertadamente reformada tendo como base histórica casos de Associações Civis que exerciam atividades econômicas – Casa de Portugal, Ulbra, Cândido Mendes – calcada em no entendimento nas normas de Direito Civil, Processual Civil, na lei 11.101/05 e na lei 9.615/98:

“Concluo, portanto, que o fato de o primeiro apelante enquadrar-se como associação civil não lhe torna ilegítimo para pleitear a aplicação dos institutos previstos na lei 11.101/05, porquanto não excluído expressamente do âmbito de incidência da norma (art. 2º), equiparado às sociedades empresárias textualmente pela lei Pelé e, notadamente, diante da sua reconhecida atividade desenvolvida em âmbito estadual e nacional desde 12/6/1921, passível de consubstanciar típico elemento de empresa (atividade econômica organizada).” (Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Apelação Cível 5024222-97.2021.8.24.0023, Relator Desembargador Torres Marques).

A Decisão Homologatória do Plano de Recuperação Extrajudicialembora recente, não utiliza como fundamento a também novata lei Federal 14.193 de 2021, responsável pela criação da Sociedade Anônima do Futebol (SAF).

Em que pese não haja qualquer menção a SAF na decisão que homologou o seu Plano de Recuperação Extrajudicial, o Conselho Deliberativo do clube catarinense, no dia 09 de dezembro de 2021 autorizou, por maioria absoluta, a criação da “SAF-Figueirense”.

A criação da lei da Sociedade Anônima do Futebol (SAF), para alguns operadores da área do Direito, jornalistas e apaixonados pelo esporte, possibilitará a infração e/ou não observação de regras já claramente expostas na Consolidação dos Provimentos da Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho de 2019 e no Regime Especial de Execução Forçada, citados apenas a título de exemplo.

No entanto, sob outra perspectiva, para possibilitar a criação da Sociedade, injeção de dinheiro novo e novos patrocínios o art. 9º determina que a “A Sociedade Anônima do Futebol não responde pelas obrigações do clube ou pessoa jurídica original que a constituiu, anteriores ou posteriores à data de sua constituição, exceto quanto às atividades específicas do seu objeto social, e responde pelas obrigações que lhe forem transferidas conforme disposto no § 2º do art. 2º desta lei, cujo pagamento aos credores se limitará à forma estabelecida no art. 10 desta lei.”

Importante ressaltar que estão incluídos no conceito de dívida trabalhista não apenas os jogadores, atletas, mas todos os demais envolvidos diretamente no futebol como comissão técnica e funcionários.

Outro aspecto relevante trata da ausência de sucessão do passivo, de qualquer natureza, do clube originário para a SAF que além de permanecer com a responsabilidade pelo seu pagamento, também receberá receitas da nova Sociedade, da seguinte forma:

a)  20% (vinte por cento) das receitas correntes mensais auferidas, conforme plano aprovado pelos credores;

b) 50% (cinquenta por cento) dos dividendos, dos juros sobre o capital próprio ou de outra remuneração recebida desta, na condição de acionista.

E como forma de garantir que a SAF permaneça cumprindo essa obrigação, a lei 14.113/21 veda “qualquer forma de constrição ao patrimônio ou às receitas, por penhora ou ordem de bloqueio de valores de qualquer natureza ou espécie sobre as suas receitas, com relação às obrigações anteriores à constituição da Sociedade Anônima do Futebol”.

Para que não pairem dúvidas sobre os modos que os clubes originários poderão se utilizar para fins de quitação dos débitos preexistentes, além da negociação com seus credores, por intermédio do Regime Centralizado de Execuções, muito usado na esfera trabalhista, têm ao seu dispor os mecanismos previstos na lei 11.101/05: Recuperação Judicial, Recuperação Extrajudicial, Falência (Autofalência), Medida Cautelar Antecede e Mediação Extrajudicial (Câmara Privada ou Cejusc).

A respeito do Regime Centralizado de Execuções, o Fluminense Football Club requereu a instauração desse procedimento perante o TRT da 1ª Região, com fundamento no artigo 13, da lei 14.193/21, cabendo ressaltar a necessidade de depósito judicial de 20% de modo a ‘salvaguardar o interesse dos credores.’

Para a concessão do período de suspensão de 60 dias, como pedido de tutela de urgência, ressaltou que a ausência de proteção contra penhoras e bloqueios de quaisquer naturezas poderiam pôr em risco seu o patrimônio e receitas.

Como bem destacado na decisão de deferimento, há de ser apresentado no mesmo prazo de suspensão o plano de pagamento credores, verbis:

“Pelo exposto, ASSINO AO REQUERENTE o prazo de 60 dias, para que apresente o plano de credores, observando o disposto no art. 16 da lei 14.193/21 e DEFIRO A TUTELA DE URGÊNCIA, para determinar aos juízos das Varas do Trabalho vinculadas a este Regional, que se abstenham de determinar medidas constritivas nas execuções em desfavor do Requerente.” (Processo 0103843-94.2021.5.01.0000).

Contudo, não há qualquer sombra de dúvida, inclusive, para os carentes do futebol romântico que, na ausência de uma legislação como a SAF, clubes tradicionalíssimos como Cruzeiro, Vasco da Gama e Botafogo, todos campeões nacionais, estariam predestinados a serem apenas memórias de épocas áureas e tempos gloriosos.

O modelo associativo, antes predominante em todo o território nacional, não mais permite a recuperação financeira dos clubes de futebol, salvo em raríssimas exceções, como acontece com os tradicionais clubes espanhóis Real Madrid e Barcelona.

A título de exemplo, cai a lanço reproduzir abaixo o ranking das maiores dívidas do futebol brasileiro disponibilizado pela rede ESPN em seu sítio eletrônico no dia 03 de maio de 2021:

 

(Imagem: Divulgação)

Com base nas cifras acima (referentes às 20 maiores dívidas dos clubes brasileiros até o mês de abril de 2021) há clara compreensão de que a adoção de um modelo empresarial e profissional na gestão dos clubes evitará a falência esportiva das agremiações e clubes de futebol.

Além do Figueirense, às vésperas do Natal o Gama, clube mais popular do Distrito Federal assinou a alteração do seu Contrato Social para aderir oficialmente ao mundo novo das Sociedades Anônimas do Futebol (SAF), contando inclusive com uma criptomoeda chamada ‘Gama Utility Token (GAMAO)’.       

Nem mesmo os mais otimistas creem em uma recuperação orgânica (ou seja, sem aporte financeiro externo) de clubes como Cruzeiro e Botafogo. Estes últimos, recentemente, apresentaram a sociedade brasileira o recebimento de ofertas externas visando a constituição de uma nova estrutura societária através de uma SAF.

A mudança para uma fase de gestão empresarial no universo do futebol brasileiro já se iniciou e é um caminho sem volta para a modernização sem perder a paixão.

Hugo Filardi
Bacharel em Direito pela UFRJ. Doutor e mestre em Direito pela PUC/SP. Sócio do escritório SiqueiraCastro.

Juliana Castro
Advogada na SiqueiraCastro. Membro da Comissão de Recuperação Judicial e Falência da OAB/RJ, do IBDE e do CMREmpresarial.

Rafael Orazem Ramos Machado
Advogado associado no escritório Siqueira Castro Advogados

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