Em 17 de novembro de 2021, a turma julgadora da 23ª Câmara de Direito Privado do TJ/SP decidiu que o segurador sub-rogado não se submete à cláusula de compromisso arbitral presente em contrato internacional de transporte de carga (apelação cível, processo 1048345-39.2021.8.26.0100).
A decisão, que reformou a sentença, é mais uma que se soma ao conjunto atual e aponta para uma tendência jurisprudencial bastante sólida.
Das mãos do seu ilustre relator, desembargador Hélio Nogueira, a ementa do acórdão (voto 22.885) antecipa a qualidade do conteúdo, magnífica aula de Direito dos Transportes, Direito dos Seguros e Direito Processual Civil:
"Apelação Cível. Ação regressiva. Sub-rogação da seguradora. Sentença de extinção sem resolução do mérito. Inconformismo da autora. Cláusula de eleição de foro internacional e arbitragem. Inteligência do artigo 25 do CPC. Soberania. Autolimitação da jurisdição do Estado Brasileiro. Mitigação. Competência da autoridade judiciária brasileira na verificação de haver legalidade e eficácia da eleição de foro estrangeiro no negócio jurídico. Hipótese dos autos que, por vícios na formulação de vontade, não afasta aplicação da jurisdição nacional. Ato jurídico que abriga a extensão da autoridade brasileira para conhecer do litígio. Inteligência do artigo 21 do CPC. Competência da jurisdição brasileira para julgamento da causa reconhecida. Cláusula de arbitragem. Resolução de conflitos por arbitragem só obriga as partes contratantes e não terceiros. Extinção afastada. Causa madura. Imediato julgamento do mérito neste momento processual. Artigo 1.013, §3º, I, do Código de Processo Civil. Direito de regresso. Sub-rogação da seguradora, ante o pagamento da indenização à segurada. Responsabilidade objetiva da ré. Perda total das mercadorias. Dever da transportadora pagar o valor sub-rogado. Sentença reformada. Ação julgada procedente. Sucumbência exclusiva da ré. Recurso provido."
Fala-se aqui em aula de Direito dos Transportes, porque corretamente se entendeu a dinâmica do transporte multimodal e a responsabilidade civil integral do agente logístico (transportador); de Direito dos Seguros, porque houve profunda compreensão da sub-rogação legal do segurador e do direito-dever de ressarcimento em regresso; de Direito Processual Civil, porque corretamente aplicou as regras de jurisdição e competência, bem como reconheceu os limites da arbitragem.
Faz tempo que defendo, profissional e academicamente, que:
- As cláusulas de arbitragem e de foro estrangeiro em contratos internacionais de transportes de cargas são abusivas, portanto, inválidas e ineficazes, quando não nulas de pleno direito, se não negociadas previamente pelas partes [a rigor, são impostas unilateralmente pelos transportadores].
- Essas cláusulas não respeitam a Lei de Arbitragem brasileira, considerando não observarem a forma e o modo específicos para os contratos de adesão. Também por isso não se revestem de legalidade.
- Mesmo quando negociadas pelos donos de cargas – algo que é raro – não projetam efeitos jurídicos aos seguradores sub-rogados, já que a lei diz ser ineficaz qualquer ato que prejudique o direito de regresso. Além disso, o direito do segurador sub-rogado não deriva do inadimplemento do contrato de transporte, mas da indenização paga ao segurado, vítima do dano.
- A garantia fundamental constitucional de acesso à Justiça é indeclinável e não pode ser afastada senão voluntariamente. Dela não se cogita renúncia tácita. Foro estrangeiro e arbitragem só podem atingir os que voluntariamente os desejaram.
Daí meu contentamento ao ler o seguinte fundamento: “Competência da jurisdição brasileira para julgamento da causa reconhecida. Cláusula de arbitragem. Resolução de conflitos por arbitragem só obriga as partes contratantes e não terceiros. Extinção afastada. Causa madura. Imediato julgamento do mérito neste momento processual. Artigo 1.013, §3º, I, do CPC. Direito de regresso. Sub-rogação da seguradora, ante o pagamento da indenização à segurada”.
Dizia ontem, digo hoje e direi amanhã que não é correto, sequer moralmente ordenado, impor arbitragem – ainda que válida e eficaz – a quem não é parte do contrato que a prevê, especialmente se se tratar de segurador sub-rogado, que busca o ressarcimento contra o causador do dano em defesa dos legítimos direitos e interesses do mútuo, do colégio de segurados, por força do princípio do mutualismo.
E se a arbitragem não for previamente pelo segurado, ainda mais sem sentido é a tentativa de vincular a cláusula compromissória arbitral ao segurador sub-rogado. Seria algo como um bis in idem da ilegalidade.
Exatamente o que ocorreu no caso em estudo, conforme correta fundamentação do acórdão: “Além do mais, sem a participação e a vontade do contratante na elaboração do foro de eleição, a estipulação, com posta, com duplicidade de escolha do foro de eleição, e a critério único da vontade do transportador, traz ínsita a sua ilicitude e a nulidade”.
Faço questão de enfatizar este trecho: “(...) traz ínsita a sua ilicitude e a nulidade”. É exatamente o que combato nos litígios de Direito dos Transportes, a ilicitude e a nulidade das cláusulas que impõem unilateralmente o foro estrangeiro e a arbitragem. Nem mesmo ao segurado, dono da carga, as cláusulas podem ser consideradas válidas e eficazes, uma vez que ausente a manifestação expressa de vontade.
Para referendar seu correto e excelente entendimento, o desembargador Hélio Nogueira destacou a visão do STJ:
"Conforme entendimento do Colendo Superior Tribunal de Justiça, verificada a natureza jurídica de contrato de adesão, cabe ao juízo estatal analisar a eficácia da cláusula compromissória, à luz do art. 4º, §2º, da Lei nº 9.307/1996, para fins de afastamento de eventual cláusula patológica (STJ. AgInt no REsp 1773599/PE, Rel. Min. PAULO DE TARSO SANSEVERINO, 3ª Turma, j. 26/10/2020; AgInt no AgInt no REsp 1431391/SP, Rel. Min. ANTONIO CARLOS FERREIRA, 4ª Turma, j. 20/04/2020).
Com a promulgação da Lei de Arbitragem, passaram a conviver, em harmonia, três regramentos de diferentes graus de especificidade: (i) a regra geral, que obriga a observância da arbitragem quando pactuada pelas partes; (ii) a regra específica, aplicável a contratos de adesão genéricos, que restringe a eficácia da cláusula compromissória; e (iii) a regra ainda mais específica, incidente sobre contratos sujeitos ao CDC, sejam eles de adesão ou não, impondo a nulidade de cláusula que determine a utilização compulsória da arbitragem, ainda que satisfeitos os requisitos do art. 4º, §2º, da Lei nº 9.307/96” (trecho do voto da Exma. Relª. Minª. NANCY ANDRIGHI).”
Poderia parar por aqui, dada a excelência dessas afirmações, porém sigo, dada a importância de se bem debater o assunto; uma não-questão que infelizmente foi transformada em seu oposto mais por força da retórica do que da ortodoxia.
Antes de prosseguir, porém, esclareço que minha oposição é pontual e diz respeito ao contrato de transporte, que é de adesão, e ao segurador sub-rogado. Em termos gerais, vejo com bons olhos o procedimental arbitral. Se negociado por todos os interessados, há de ser observado e levado a efeito.
O que não posso aceitar é a imposição unilateral de arbitragem no exterior a quem sequer é parte no contrato, prejudicando-se gravemente seus legítimos direitos e interesses.
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