Migalhas de Peso

Metaverso como produto do ciberespaço, da cibercultura e da regulamentação

Os metaversos são produto da evolução espacial (ciberespaço), cultural (cibercultura) e legal, demandando entendimento multidisciplinar do operador do direito que pretenda atuar no segmento.

3/1/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

INTRODUÇÃO 

No ano de 1992, Bill Gates previu que as pessoas não mais ficariam vinculadas a comunidades físicas, aduzindo que estas iriam se expandir a partir de novos fluxos de informação. No mesmo ano, o termo “metaverso” foi empregado na obra de ficção “Snow Crash”, escrita por Neal Stephenson. Cerca de 30 anos depois, o tema “metaverso” estremece as bases da sociedade moderna, aparentando ser a grande disrupção desde o advento e da popularização da internet. Entender o metaverso e como ele se relaciona ao mundo atual é uma tarefa árdua, notadamente porque o seu conteúdo demanda um tipo de conhecimento multidisciplinar raro e complexo. Nesse contexto, o presente artigo se propõe a mitigar essa dificuldade. 

1. O ciberespaço: fator espacial das transformações tecnológicas 

O termo "ciberespaço'' foi empregado pela primeira vez por William Gibson na obra Neuromancer (GIBSON, 2008). A referida obra de ficção científica aproximava a relação entre o homem e a máquina no remoto ano de 1983 - ano em que foi publicada -, instaurando um modelo futurista numa época em que a vida analógica ainda era preponderante. 

Foi Pierre Lévy, filósofo moderno e pesquisador da ciência da informação e da comunicação, quem se tornou a grande referência na abordagem do ciberespaço. Para ele, o ciberespaço é o produto da evolução da sociedade ao longo dos anos, passando pelo desenvolvimento da escrita, do alfabeto e da imprensa (LÉVY, 2008). 

O metameio (ciberespaço) definido pelo autor “apóia muitas tecnologias intelectuais que desenvolvem a memória (através de bases de dados, hiperdocumentos, Web), a imaginação (através de simulações visuais interativas), raciocínio (através da inteligência artificial, sistemas especialistas, simulações), percepção (através de imagens computadas de dados e telepresença generalizada) e criação (palavras, imagens, música e processadores de espaços virtuais)” (LÉVY, Pierre, 2008). Como podemos observar, um dos traços marcantes do ciberespaço - e do que ele representa -, encontra-se justamente no fato de que o seu ambiente é propício à interação.  

Portanto, o ciberespaço é o espaço de interação por onde transitam informações que podem ser acessadas, manipuladas e transformadas pelos seus usuários em tempo real ou não. Nesse ambiente, conectado pela rede mundial de computadores (internet), encontramos múltiplas possibilidades de interações, as quais podem ser experimentadas nos videogames, nos aplicativos, nas redes sociais e, por que não, nos metaversos.   

2. A cibercultura: fator cultural como produto das relações no ciberespaço 

O ciberespaço é o local onipresente que contempla não apenas a infraestrutura material da comunicação digital, mas também - e principalmente - o universo de informações que por ele transitam intensamente. A cibercultura é o produto colhido de dentro deste ciberespaço, podendo ser conceituada como o “conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço” (LÉVY, 2010. pág. 17). 

Se pensarmos no ciberespaço como a representação ambiental composta pelo emaranhado tecnológico que a sustenta, podemos reconhecer a preponderância do seu aspecto técnico (ciberespaço entendido como técnica). Tal técnica condiciona a cultura, isto é, tudo o que o ciberespaço e as tecnologias a ele associadas oferecem à sociedade condicionam diversos aspectos culturais, embora não possam ser encarados como fatores determinantes (LÉVY, 2010. pág. 26). 

Dito de outro modo, não podemos afirmar que a cultura é determinada pelas tecnologias ou pelo ciberespaço, até porque a cultura em si é produto de um feixe complexo composto por inúmeros elementos. Todavia, é inegável que a cultura acaba sendo condicionada por fatores de ordem técnica resultantes do ciberespaço. 

Assim, a explosão tecnológica promovida no ciberespaço é resultado de um processo complexo composto por diversos elementos, e não - apenas - das ferramentas em si, das máquinas, dos algoritmos ou da infraestrutura. A cibercultura, portanto, é mais abrangente que o ciberespaço. 

Não é mera divagação distinguir ciberespaço de cibercultura, uma vez que o entendimento acerca dos efeitos do ciberespaço na cultura é crucial para a compreensão do que estamos prestes a vivenciar com o advento dos metaversos. Em verdade, já vivenciamos algo parecido com a ideia dos metaversos, embora não com o nível avançado de experiência que tendemos a experimentar nos próximos anos. Você, eu e quase todos vivemos metaversos por meio dos nossos smartphones, videogames, computadores e tudo mais o que se conecte a redes sociais, por exemplo. Já vivemos experiências intensas e imersivas no ciberespaço, porquanto a cibercultura nos introduziu aos novos padrões de experiência e de comportamento que nos transformaram em seres digitais ou virtuais, quase dependentes dos nossos dispositivos eletrônicos conectados à internet. 

4. Metaversos como produtos 

As redes sociais podem ser consideradas o nascedouro dos metaversos. Não por outra razão, o grande marco de discussão em sociedade sobre a existência dos metaversos nasceu a partir da modificação do nome comercial do “Facebook” para “Meta3. Em ambos os casos (redes sociais atuais e os metaversos do futuro), trata-se de experiências interativas virtuais. A grande diferença entre as atuais redes sociais e os metaversos encontra-se no fato de que será cada vez mais complexo distinguir uma experiência física (dita real) de uma experiência remota (dita virtual). 

Ao longo dos anos, temos vivido uma verdadeira migração dos ambientes físicos para os virtuais. E, associado a isso, quanto mais a tecnologia se desenvolve, mais recursos ficam disponíveis para que a existência dos metaversos se torne algo presente no dia a dia das pessoas. Entretanto, para além do entusiasmo, existe uma série de entraves e pendências de ordem técnica e social para serem resolvidas antes que a “utopia” se torne realidade.  

Mas o que, afinal de contas, espera-se do metaverso? Espera-se que o metaverso seja uma experiência perpétua, com traços de compartilhamento intenso, simultâneo, infinito e permanente, ou seja, um ciberespaço virtual e físico mesclado para acomodar um número ilimitado de usuários (LEE et al., 2021). 

Não é difícil imaginar que poderemos viver em multiversos, em que cada metaverso será responsável por um formato de mundo, com avatares que os habitam. Cada metaverso produzirá um sistema, uma economia e as suas regras de convívio. Por curiosidade ou por necessidade, as pessoas habitarão novos mundos virtuais e paralelos à nossa realidade. 

A questão que surge, na realidade, nem é tanto sobre o que será capaz de ser feito nos metaversos, mas sim sobre o que poderá ser evitado, especialmente quanto a eventuais violações, tais como de segurança e de privacidade. Além disso, questões pertinentes à regulamentação poderão ser objeto de potencial complexidade, especialmente considerando o traço da multidisciplinaridade que marca a temática. Dito isso, que tipo de profissional será necessário para trabalhar junto aos metaversos? 

O metaverso nada mais é que o produto do ciberespaço, da cibercultura e da iminente regulamentação a ser criada em nível mundial. Não há como conceber a existência de mundos paralelos sem que haja a consideração sobre tais elementos, especialmente para profissionais que se posicionarem para atuar neste mercado de trilhões de reais4 

A título de exemplo, não haverá espaço para advogados no segmento jurídico. Haverá, nesse caso, espaço para profissionais que tenham conhecimento sobre tecnologia, sobre cibercultura, sobre a regulamentação dos metaversos e temáticas congêneres e, claro, que advoguem. Da mesma forma, profissionais do setor público deverão estar preparados para as demandas em caráter multidisciplinar que, ao que tudo indica, serão as grandes discussões levadas ao contexto da jurisdição. Tal lógica multidisciplinar aplica-se aos demais casos e áreas de atuação. 

Por tudo isso, compreender o ciberespaço e a cibercultura é essencial, na medida em que os tão falados metaversos são meras extensões desse processo evolutivo. A evolução das tecnologias está abrindo as portas para novas experiências, mas isso não significa que sejam elas - as tecnologias - as responsáveis por toda a mudança. Mais que metaversos, devemos compreender o ciberespaço e a cibercultura, já que são elas as bases para todas as discussões vindouras sobre tecnologia, sobre aspectos sociais, sobre economia e sobre as suas implicações jurídicas e legais oriundas das relações existentes nos metaversos. 

CONCLUSÃO 

Muito se fala acerca dos metaversos, mas pouco se pesquisa sobre o fato de que eles nada mais são do que produtos da evolução tecnológica e cultural. Não há novidades em nível conceitual, mas puramente no tocante ao fato de que as tecnologias estão permitindo o aprofundamento das sensações e das experiências vivenciadas na interação virtual. 

Por isso, o grande enfoque de pesquisa para a evolução em sociedade (e não apenas dos metaversos), diante de tantas novidades incipientes, é buscar o entendimento profundo sobre o local onde tudo acontece (ciberespaço), o processo cultural e econômico que provêm da interação no ambiente digital (cibercultura) e sobre as questões regulamentares e legais que podem ser objeto de discussão nas Casas Legislativas em todo o mundo (aspecto jurídico). 

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CASSERLY, Toni. Through AI, Humans Might Literally Create God. Big Think, 2021. Disponível em: <https://bigthink.com/the-future/toni-lane-casserly-on-the-dangers-and-potential-of-artificial-intelligence/>. Acesso em 28 de dez. de 2021. 

GIBSON, William. Neuromancer. São Paulo: Aleph, 2008. 

HOHFELDT, Antônio; FRANÇA, Vera Veiga; MARTINO, Luiz. Teorias da Comunicação: conceitos, escolas e tendências. Petrópolis: Vozes, 2001.  

Lee, Lik-Hang & Braud, Tristan & Zhou, Pengyuan & Wang, Lin & Xu, Dianlei & Lin, Zijun & Kumar, Abhishek & Bermejo, Carlos & Hui, Pan. (2021). All One Needs to Know about Metaverse: A Complete Survey on Technological Singularity, Virtual Ecosystem, and Research Agenda. 10.13140/RG.2.2.11200.05124/8.   

LÉVY, P. O ciberepaço como um passo metaevolutivo. Revista FAMECOS, v. 7, n. 13, p. 59-67, 10 abr. 2008. Disponível em https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/download/3081/2357/ 

LÉVY, Pierre. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 2010. 

MITTERMAYER, Thiago. Narrativa transmídia: uma releitura conceitual. São Paulo: Editora C0D3S, 2017. 

PACETE, Luiz Gustavo. NFTs de iates viram opções de investimento no metaverso. Forbes, 07 de dez. de 2021. Disponível em: <https://forbes.com.br/forbes-tech/2021/12/nfts-de-iates-viram-opcao-de-investimento-no-metaverso/>. Acesso em 28 de dez. de 2021. 

ROBINSON, Melia. Bill Gates basically predicted the rise of Netflix and Facebook in a 1994 Playboy interview. Insider, 03 de mar. de 2017. Disponível em: <https://www.businessinsider.com/bill-gates-predicted-technologies-of-the-future-2017-3>. Acesso em 28 de dez. de 2021. 

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SANTOS, Lucas Vinicius. Metaverso industrial deve arrecadar R$ 3 trilhões até 2025. Tecmundo, 30 de nov. de 2021. Disponível em: <https://www.tecmundo.com.br/mercado/229663-metaverso-industrial-deve-arrecadar-r-3-trilhoes-2025.htm>. Acesso em 28 de dez. de 2021. 

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Vitor Martins Dutra
Servidor público federal do TRF4. MBA em Tecnologia pela PUCRS/RS, Especialista em Direito Previdenciário pela Uniritter e Graduado em Direito pela Unisinos/RS.

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