O ano de 2021 foi intenso. A esperança do término da pandemia do Coronavírus acabou frustrada por inúmeras novas cepas que atemorizaram a população mundial. Novas medidas de isolamento foram impostas, assim como diversas outras restrições ao tráfico das relações, não apenas no Brasil, como em diversos outros países ao redor do globo, e terminamos o ano com a recente ameaça da Ômicron, variante do vírus que tem sido a responsável pela maioria dos novos casos de Covid-19 na Europa e na África, o que acabou por impactar as relações jurídicas de um modo geral, e em particular aquelas de direito privado.
Nada obstante, os conflitos existentes no âmbito das relações privadas não se limitaram àqueles atinentes às questões pandêmicas. Outros tantos foram intensamente discutidos no âmbito do Poder Judiciário, em especial no STJ, última instância na solução dos conflitos envolvendo matéria de lei federal e, consequentemente, de direito privado. É certo que a eficácia horizontal dos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição permite a discussão de certas questões dos privados no âmbito do STF, o Guardião da Lei Fundamental. No entanto, é no Tribunal da Cidadania, assim denominado o STJ porque suas decisões impactam todos os aspectos da vida cotidiana das pessoas, que têm assento as principais controvérsias envolvendo as relações jurídicas privadas.
Por isso, e tal qual um programa esportivo, este texto se propõe a apresentar um compacto dos melhores momentos da jurisprudência do STJ no ano 2021 em matéria de direito privado, tão importante em nosso dia a dia. No entanto, e como se perceberá, os julgados foram selecionados, como “mais relevantes”, sob a ótica deste autor, que por isso já pede perdão por eventuais frustrações causadas aos seus 3 ou 4 assíduos leitores, em que se crê que não haverá nenhuma violação à boa-fé pelas expectativas criadas com o título. Vamos, então, a uma análise mês a mês destes julgados, iniciando-se por fevereiro, mês de abertura do ano Judiciário.
Fevereiro – Planos de saúde
As questões atinentes aos planos de saúde são um prato cheio para intensas controvérsias. O STJ decide rotineiramente essa matéria, pois ela diz respeito a um contrato que impacta diretamente na dignidade da pessoa humana, na medida em que as operadoras de plano de saúde fornecem produtos e serviços diretamente relacionados à vida e à saúde dos contratantes ou beneficiários. Os contratos de plano de saúde podem ser, segundo a legislação, de três tipos: individual ou familiar, coletivo por adesão e coletivo empresarial. O individual ou familiar é aquele em que uma pessoa ou família contrata o serviço diretamente com a operadora, sob a intermediação de um corretor inscrito na SUSEP. Os planos coletivos são aqueles celebrados por pessoas jurídicas com as operadoras visando beneficiar seus membros, cuja intervenção da ANS é mais branda, conferindo maior liberdade às partes no momento da contratação. O coletivo por adesão é contratado por associações ou sindicatos em que o beneficiário deve aderir à pessoa jurídica para fazer jus ao serviço da operadora. Já o plano coletivo empresarial é aquele celebrado entre o empregador e a operadora em favor de seus empregados, diretores, administradores e sócios.
Assim posto, o STJ, no julgamento do REsp 1830065, ao examinar questão atinente ao desequilíbrio contratual nos contratos de plano de saúde coletivo, decidiu que a cláusula contratual de cobrança mínima, no caso de evasão de usuários de plano de saúde coletivo, que se torna, ela própria, fator de onerosidade excessiva para a estipulante e vantagem exagerada para a operadora, autoriza a revisão ou rescisão do contrato, nos termos dos artigos 478 e 479 do Código Civil de 2002. No entender da Corte, os referidos contratos não sofrem a incidência do CDC, salvo se tiverem menos de 30 associados, de modo que não gozam das regras protetivas do diploma consumerista. Nada obstante, entendeu o Tribunal Superior que a finalidade da previsão de cobrança mínima é evitar o desequilíbrio econômico-financeiro do contrato, preservando a própria viabilidade da prestação do serviço de assistência coletiva à saúde nos moldes em que foi contratado. Desse modo, a grande evasão de beneficiários, ocorrida de modo extraordinário e imprevisível, provoca um desequilíbrio econômico-financeiro no contrato a justificar a rescisão sem multa do vínculo. Isso porque a cobrança mínima, que corresponde ao pagamento de um valor por um determinado número de beneficiários não existentes, viola o espírito da justiça contratual, um dos pilares da autonomia privada (negocial). Assim, a cláusula de cobrança mínima, que em tese serviria para corrigir desequilíbrios e permitir a manutenção do contrato, transforma-se em "fator de onerosidade excessiva para a estipulante e vantagem exagerada para a operadora", a qual se beneficia com o recebimento correspondente a um percentual de beneficiários ativos (que não existem concretamente), sem ter a obrigação de prestar o serviço.
Ainda na questão atinente aos contratos de plano de saúde coletivo, também no mês de fevereiro, o STJ fixou três teses em sede de Recurso Especial Repetitivo (Tema 1.034 – Recursos Especiais 1818487; 1816482; 1829862) sobre quais condições assistenciais e de custeio do plano de saúde, previstas no art. 31 da lei 9.656/98, devem ser mantidas para os beneficiários inativos. Segundo o mencionado dispositivo, ao aposentado que contribuir para plano privado de assistência à saúde, em decorrência de vínculo empregatício, pelo prazo mínimo de dez anos, é assegurado o direito de manutenção como beneficiário, nas mesmas condições de cobertura assistencial de que gozava durante a vigência do contrato de trabalho, desde que assuma o seu pagamento integral. O relator dos recursos especiais, ministro Antonio Carlos Ferreira, destacou que o artigo faz menção ao período de contribuição a produtos de assistência médica, hospitalar e odontológica oferecidos pelo ex-empregador genericamente, sem especificação de plano privado de saúde. Essa contribuição, afirmou, não diz respeito a uma operadora determinada, nem a uma hipótese precisa de modalidade de prestação de serviço, as quais podem ser substituídas sempre que necessário para a viabilidade do plano. Por isso, para o ministro, mudanças de operadora do plano de saúde, de modelo de prestação de serviço, de forma de custeio e de valores de contribuição não interrompem a contagem do prazo de dez anos – tempo necessário para que o ex-empregado aposentado obtenha o direito de permanecer no plano por tempo indeterminado. De acordo com o ministro, se não fosse assim, seria impossível ao empregado alcançar o prazo de dez anos.
Com esse entendimento, a Corte fixou as três teses: a) Eventuais mudanças de operadora, de modelo de prestação de serviço, de forma de custeio e de valores de contribuição não implicam interrupção da contagem do prazo de dez anos previsto no artigo 31 da Lei 9.656/1998, devendo haver a soma dos períodos contributivos para fins de cálculo da manutenção proporcional ou indeterminada do trabalhador aposentado no plano coletivo empresarial; b) O artigo 31 da lei 9.656/98 impõe que ativos e inativos sejam inseridos em plano de saúde coletivo único, contendo as mesmas condições de cobertura assistencial e de prestação de serviço – o que inclui, para todo o universo de beneficiários, a igualdade de modelo de pagamento e de valor de contribuição, admitindo-se a diferenciação por faixa etária, se for contratada para todos –, cabendo ao inativo o custeio integral, cujo valor pode ser obtido com a soma de sua cota-parte com a parcela que, quanto aos ativos, é proporcionalmente suportada pelo empregador; e c) O ex-empregado aposentado, preenchidos os requisitos do artigo 31 da lei 9.656/98, não tem direito adquirido de se manter no mesmo plano privado de assistência à saúde vigente na época da aposentadoria, podendo haver a substituição da operadora e a alteração do modelo de prestação de serviços, da forma de custeio e dos respectivos valores, desde que mantida paridade com o modelo dos trabalhadores ativos e facultada a portabilidade de carências.