A percepção que temos do Direito mais vulgar é de que Direito é um conjunto de normas que prescrevem deveres e obrigações. Ou, sendo mais refinado, Direito é um conjunto de normas que prescrevem condutas e descrevem fatos, reconhecido juridicamente e recortado no tempo e espaço. Porém, retirado essa premissa, o Direito é, antes dos fatos e dos fatos jurídicos, uma rede de acontecimentos. E não se confunde com o objeto que disciplina. Isso significa que o Direito não é, ele acontece. E acontece por uma série de eventos que desencadeiam fatos, situações e relações jurídicas.
Um exemplo clássico é o da propriedade. O direito à propriedade só surge quando uma série de outros eventos são praticados. Não existe direito a propriedade entre a pessoa e a coisa, a propriedade surge em relação a pessoa e todas as outras que podem reivindicar determinada coisa para si. Os códigos prescrevem como acontece a propriedade. Ainda que o direito se relacione e se refira a estados de coisas que o circunda, sua existência difere da coisa em si. Ou seja, se uma linguagem para obter sentido deve ter um referencial semântico, as normas jurídicas, mesmo sem esse referencial, podem preservar o sentido.
Isso porque há uma diferença entre o evento e o estado de coisas. Um evento é uma situação de duração limitada, ainda que de longa duração, no tempo e no espaço. Já um estado de coisas, ou a coisa em si, é permanente. É possível dizer onde uma coisa estará amanhã, porém, contrariamente, não faz sentido perguntar onde uma a propriedade vai estar amanhã.
Alf Niels Christian Ross foi um jusfilósofo escandinavo com grandes contribuições para o Direito, o que fez dele um dos grandes nomes para a Teoria do Direito. Lembrado principalmente por duas de suas obras: On Law e Justice (Direito e Justiça) e Logic das Normas (publicado em 1968 como Diretrizes e Normas), Ross escreveu sobre várias outras coisas, ficando conhecido por seu precursor do Realismo Jurídico, uma filosofia analítica com o propósito de enxergar a norma empirista como uma via alternativa ao positivismo tradicional e ao jusnaturalismo.
Porém, em 1951, Alf Ross publicou um pequeno manual chamado Tû-tû1, no qual ele, em linhas gerais, explica como alguns conceitos problemáticos usados na linguagem são compreendidos pelo Direito. Explica como conceitos de dever, obrigação, propriedade e direito subjetivo são entendidos pelo direito e como devem ter uma concepção que possa ser útil para o Direito.
Tû-tû é um livro que demonstra como determinados conceitos podem ser entendidos numa comunidade, e de onde eles extraem normatividade. Ross usa uma metodologia já usada por ele quando da definição de direito vigente; para a compreensão do conceito de direito vigente, o filósofo traçou uma analogia em relação ao jogo de xadrez, uma regra é considerada em vigente quando recebe apoio de parte de uma determinada comunidade, e isso ocorre de forma eficaz porque os membros desta comunidade reconhecem a norma como obrigatória e, portanto, eles se sentem constrangidos a obedecê-la.
Como no jogo de xadrez, no plano macro, os eventos (ou movimentos), não obedecem puramente a questões causais, mas o caráter intersubjetivo com o qual é realizado é o que define cada movimento, ou novo evento, ou seja, a interação entre as ações dos membros com as regras que foram internalizadas dá sentido a comunidade e conduzem para outras interações. A validade desta metáfora do jogo significa que uma regra é observada do ponto de vista psíquico e social.
Ross explica o Direito Vigente por meio de dois elementos: o primeiro é constituído pelo cumprimento repetido e observável de um padrão de conduta; e a segunda, refere-se à experiência do referido padrão como uma norma vinculativa, embora o autor considerasse que este último era reservado para aplicadores do direito. Ross ainda acrescenta que o Direito Vigente depende de dois atores, a ator social e a autoridade jurídica. Assumindo o acima exposto, Ross declarou: "direito vigente é o conjunto abstrato de ideias normativas que serve como um esquema interpretativo para os fenômenos do direito em ação, o que por sua vez significa que essas normas são efetivamente acatadas e que o são porque são experimentadas e sentidas como socialmente obrigatórias”2.
A normatividade localiza-se, desta forma, entre dois aspectos que se pretendem empíricos: o psicológico e o comportamental; e a lei é, portanto, um composto correlacionado de eventos, fenômenos jurídicos e normas jurídicas. A proposta rossiana aponta que, a partir da determinação do que é direito vigente, é possível interpretar uma sucessão de ações e eventos como fenômenos jurídicos que formam um “todo coerente de significado e motivação”.
A história contata por Ross situa-se nas relações sociais e comportamentais da tribo Aisat-naf. Essa tribo acredita que se um homem encontra sua sogra, ou se mata um animal totêmico, ou se come a comida preparada pelo chefe acontece o que eles chamam de tû-tû. Tû-tû é, portanto, um tipo de força maligna que cai sobre o culpado e ameaça toda a comunidade com um desastre. Estando a pessoa em estado de tû-tû, deve passar por uma cerimônia de purificação para que livre a comunidade dos danos oriundos desse estado.
Ross pretende com esse exemplo mostrar como um termo sem significado possui uma função importante para a comunidade, exercendo dessa maneira as principais funções que toda linguagem cumpre: uma função prescritiva e descritiva.
A palavra tû-tû não possui uma referência semântica que permita dar-lhe uma forma linguística determinado, mas está relacionado a um estado de coisas que é considerado existente e que é afirmado em um enunciado descritivo, ou está relacionado a um estado de coisas que conter uma prescrição. Desta forma, o termo tû-tû, mesmo sem ter um significado em si, é usado nos enunciados da comunidade de acordo com dois estados de coisas: tû-tû está conectado com o estado de coisas em relação à transgressão de um tabu, bem como com o estado de coisas sobre a necessidade de praticar um ato de purificação para evitar em detrimento da tribo.
Mesmo sem referência semântica, a enunciação em que é usado dá uma noção de referencial, e consiste na combinação dos dois estados de coisas existentes; a afirmação é suscetível a ser submetido a um processo de verificação que pode ser realizado em qualquer um dos dois estados de coisas e tornar-se verdade se, de fato, houver uma violação de um tabu, ou se uma cerimônia de purificação pode ser necessária. A referência semântica pertence ao afirmado independentemente do fato de que tû-tû não signifique nada ou não estabeleça relação causal alguma.
Ross demonstra com suas conclusões que apesar do direito está relacionado linguisticamente com estados de coisas, ele não se confunde com isso. Entre o enunciado descritivo ao estado de coisa e o enunciado prescrito a outro estado de coisa, existe um evento que faz o direito acontecer e que sai de um estado de coisa para outro. O direito cria e modifica um determinado estado de coisa sem se confundir com ele. Antes desse estado de coisa há um evento que captura naquele tempo e espaço de modo descritos ou prescritos pela norma jurídica.
Na terminologia da linguagem jurídica, as normas de conduta não são expressas com forma de instruções diretas e claras sobre como o comportamento deve ser, mas sim descrevem um mecanismo de acordo com o qual certos eventos produzem efeitos, embora invisíveis, como, por exemplo, uma obrigação, proibição ou faculdade. Ross admitiu que a forma de expressão das normas tem fomentado a crença errônea de uma realidade diversa, de um mundo de relações jurídicas desenvolvido por algum tipo de força criativa invisível; esta crença, na opinião do autor, fez seus próprios bens atribuídos aos direitos e deveres, concedendo-lhes a forma metafísica de entidades substanciais, sendo necessário compreender que os conceitos do tipo tû-tû não tem existência ou referência de qualquer tipo, mas ainda sim desempenham um papel importante para disciplina social.
Dessas premissas, é possível chegar a algumas conclusões sobre a linguagem jurídica: primeiro, a linguagem jurídica exige informações limitadas. Não é todo fato que tem relevância para o direito, mas apenas aquilo que seja necessário para o evento ocorrer. Para que haja uma infração de trânsito por ultrapassagem em sinal vermelho, basta que o condutor de um veículo automotor ultrapasse o sinal quando este estiver em sinal vermelho. Não interessa o tipo de veículo, a cor ou a marca. A descrição normativa depende de informações limitadas. No exemplo exposto por Ross, para que haja tû-tû é preciso que um membro da tribo se encontre com sua sogra, ou mate um animal totêmico, ou coma a comida preparada pelo chefe. As informações devem ser limitadas para surtir efeito.
Outra conclusão refere-se ao indeterminismo do direito. Por ser formado por um sistema, a norma jurídica é formada por relações internas e externas, dessas relações surgem os eventos, existentes pelo fato e concretizados pelo fato juridicamente relevante. Porém, entre uma relação e outra é impossível saber onde um evento vai ocorrer. Quer-se dizer que não é possível identificar onde o direito vai ocorrer, há, no máximo, uma previsibilidade de que se ali houver um fato que tenha descrição na norma jurídica está irá incidir. A noção de segurança jurídica, certeza e previsibilidade, não pretende “adivinhar” onde o direito ocorre, mas ocorrendo, que haja a incidência normativa vigente. Daí porque a censura prévia a liberdade de opinião é uma situação ilógica juridicamente, pois estar a punir, antecipadamente, por uma coisa da qual não houve evento jurídico algum. É como se o direito previsse quando um ato ilícito ocorreria, situação impossível de ocorrer.
Por fim, uma terceira conclusão: o direito é relação. E essa relação do direito não descreve ele como é, mas como ele acontece e como influencia e interage com outras coisas. Na lição de Lourival Vilanova uma relação jurídica só é jurídica porque as condutas naturais previstas são relevantes para o direito, mas são relações como outra qualquer, seja biológica ou sociológica, que dispõe de uma estrutura formal composta por termos, aos termos eles são antecedentes (referente), um termo consequente (relato) e um operador relacionante. Esse operador, para o direito, significa a função deôntica de permitido, obrigatório e proibido.3
De tudo que foi dito, um fato é que a tríplice modalidade deôntica de obrigar, proibir ou permitir é causalidade da norma jurídica. Ela pode ocorrer, mas não se saber onde ou quando. Mas ao ocorrer, começará por um evento que faz o direito acontecer por uma conduta relacional, interpessoal ou intersubjetiva que afeta, por ação ou omissão, a conduta de outrem. De modo que só existirá relação quando convergem um fato (conduta) entre sujeitos, numa relação jurídica entre sujeitos de direito. Por isso não há relação entre sujeito e objeto, que só será se enxergará no plano detalhado quando houver intrinsecamente uma relação mediata entre sujeitos.
1 ROSS, Alf. Tû-tû. São Paulo: Quartier Latin, 2004.
2 ROSS, Alf. Direito e Justiça. Tradução Edson Bini. Revisão técnica Alysson Leandro Mascaro. 2ª Edição. Bauru, SP: EDIPRO, 2007, p. 41
3 VILANOVA, Lourival. Causalidade e Relação no Direito. 5. ed. São Paulo: Noeses, 2015, p. 85.