Migalhas de Peso

Mrs. Robinson

O Poder Judiciário demanda profissionais humanos, sensíveis, confiados a um sistema consistente e consequente de preparação, conscientes das suas missões em um Estado-Nação de tantas carências e tantas iniquidades.

17/12/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Há alguns dias assisti uma série de TV sobre um crime famoso, de grande repercussão, e que em um determinado trecho mostra uma entrevista com um médico-legista que ficou conhecido pelas conclusões a que chegou quando examinou a vítima (esquartejada, segundo ele, ainda viva).

Quando ele comenta o caso, uma coisa espanta: a frieza com que se relaciona com os detalhes. Eu e minha esposa, que assistia atenta ao meu lado, ficamos impressionados com a forma como ele descreveu as minúcias. E olha que estamos relativamente habituados com as verdades da vida adulta (eu advogado, ela jornalista).

Ele falou sobre um corpo cortado em pedaços de forma natural, sem devaneios e sem deixar que os sentimentos entorpecessem as suas ideias. Comentou o caso com absoluta naturalidade, como se estive falando, sei lá, sobre o campeonato de futebol que, há alguns domingos, sagrou um time paulista [que não tem mundial!] campeão da libertadores.

Esse fenômeno é comum a praticamente todos os profissionais da área da saúde, em especial médicos e enfermeiros. Querendo ou não, eles acabam se tornando frios, desapegados de questões que, para nós, que não lidamos com as mesmas situações todos os dias, causariam enorme impacto.

No portal do Dr. Drauzio Varela, a repórter Juliana Conte escreveu em 2015 que “a frieza dos médicos se transformou em algo tão inquestionável que os pacientes até se espantam quando o especialista fica mais de 5 minutos no consultório e conversa olhando em seus olhos, não para a tela do computador”.

O “x” da questão é que essa não é uma característica só da turma da medicina. No Judiciário, onde ocupo o espaço reservado à defesa nos últimos 16 anos, não é diferente. Os profissionais que o compõem acabam convivendo com tantos dramas sociais que boa parte deles ficam frios. A exemplo do legista, eles perdem a sensibilidade sobre coisas que, para alguém de fora, causariam ansiedade, pânico ou coisas do tipo.

Ocorre que, tanto lá, no consultório, como aqui, no balcão do Fórum, há exceções. Nos dois ambientes, há casos de profissionais que agem de forma diferente. De pessoas que, por múltiplas questões, aprenderam a não focar naquele emaranhado de regras, normas, códigos e afins, e conseguem enxergar dilemas de vida, rostos, sonhos, desejos etc.

Seria injusto não registrar que há um grande número de assistentes, assessores, escreventes, juízes etc. que oferecem para a advocacia e para a população em geral um olhar mais, digamos, humanista. Mas ainda é bastante comum a gente conversar com um ou outro atendente, pedir uma informação e perceber que estamos falando sozinhos. Em alguns casos o “diagnóstico” está ali, na palma da mão. Ainda assim, é como se não fosse possível ajudar.

E quando a gente cruza com essas pessoas que pensam de forma mais ampla, humana e sistêmica, o resultado é o mesmo daquele que a Juliana mencionou no artigo que escreveu: a gente se espanta!

Ultimamente tenho atuado em casos que demandam graus de preocupação e de delicadeza que se diferenciam dos demais. São processos que envolvem aqueles dilemas que falei antes e que, portanto, não podem ser ignorados. Até pouco tempo, a pessoa que estava lá do outro lado do balcão era um desses profissionais mais frios. De repente, porém, depois de um “toc toc” na porta do cartório (no momento certo) e de uma leve pitada de insistência (característica que deve fazer parte da vida do advogado de trincheira), ele acabou caindo no colo de um tipo desses; digo, de um tipo que enxerga além.

É muito provável que esse cara não tenha a menor noção das coisas que envolvem a vida da pessoa cujo nome estampa a capa daquele processo. Ele não sabe a história daquela vida, daquela família, dos amigos, das angústias, enfim, não sabe nada versus nada sobre aquele alguém. Mas isso não me impede de dizer que a sua sensibilidade e disponibilidade em atender bem e em oferecer informações que estão ali, ao seu dispor, permitiram que uma nova história fosse escrita.

Depois de formado, a minha primeira experiência pós-acadêmica foi estender a formação. Estudei História da Ética na Escola Paulista da Magistratura, sob a coordenação do prof. José Renato Nalini, que foi presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, maior Corte de Justiça do planeta.

Ele é autor de um livro interessante e através do qual faz uma reflexão sobre as questões que envolvem o Poder Judiciário do Brasil (onde tramitavam, quando o livro foi escrito, mais de 100 milhões de processos). Na obra, ele deixa claro que, em terra tupiniquim, qualquer questiúncula chega à apreciação de um juiz, profissional que, diz o autor, precisa ter algumas questões como norte:

“Juiz humano, juiz sensível, juiz confiado a um sistema consistente e consequente de preparação, consciente de sua missão num Estado-Nação de tantas carências e tantas iniquidades. Esse o juiz de que o Brasil precisa, capaz de produzir uma justiça mais substantiva do que procedimental. Justiça preocupada mais com o presente e o futuro das relações sociais do que da crônica do passado. Juiz suficientemente apto a procurar a verdade do conflito e os elementos de uma solução justa no conjunto dos fatos significativos, e flexibilizar a rigidez das regras explícitas, toda vez que elas o impedirem dessa concretização” (José Renato Nalini, in A Rebelião da Toga).

Ouso dizer que não são só eles, os juízes, que demandam essas características. As pessoas que dividem com ele o peso e as responsabilidades da condução de um processo também precisam entender que esses predicados são essenciais e absurdamente necessários quando o resultado das suas atividades são a vida, o patrimônio e a liberdade do ser humano. Se eles não tiverem ciência disso, eles podem fazer qualquer coisa, menos dedicar tempo atuando no lugar onde alguém deposita confiança em algo justo.

Estou feliz por perceber que atrás daquelas portas, sentado em uma cadeira desconfortável e tomando um café ruim, havia alguém que entende isso. E que, a partir daquele dia e naquele caso, “o médico” passou a olhar nos meus olhos, não na tela do computador.

Dinovan Oliveira
Advogado, tem extensão universitária em História da Ética pela Escola Paulista da Magistratura. Cursou especialização em Dir. Penal Econômico pela Fac. de Direito da Universidade de Coimbra/IBCCrim.

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