Foi publicada em novembro a lei 14.238/21, que institui o Estatuto da Pessoa com Câncer. O importante e inédito marco legal estabelece princípios, objetivos e direitos em relação à pessoa com câncer, além dos deveres do Estado com tal parcela da população. Apesar de não se tratar de norma de natureza trabalhista, poderá, sim, ser aplicada a relações de trabalho, diante do permissivo contido no art. 8º, § 1º da CLT (que prevê a aplicação do direito comum como fonte subsidiária), razão pela qual devem ser analisados seus possíveis impactos em tal seara.
O Tribunal Superior do Trabalho possui entendimento consolidado em sua Súmula 443 no sentido de que “Presume-se discriminatória a despedida de empregado portador do vírus HIV ou de outra doença grave que suscite estigma ou preconceito”. Diante da redação da parte final do verbete sumular, muito se debate se a dispensa do empregado com câncer poderia ser presumida discriminatória, havendo tendência na jurisprudência a responder tal questão de forma positiva, especialmente no âmbito da Corte Superior Trabalhista.
Para a corrente que defende a impossibilidade de se considerar a dispensa discriminatória, o argumento central é de que não se trata de patologia com manifestações externas que possam causar estigma ou preconceito, especialmente pela impossibilidade de contágio por terceiros, pelo que não seria atraída a aplicação da Súmula 443. Neste sentido, menciona-se o seguinte julgado:
DESPEDIDA DISCRIMINATÓRIA. EMPREGADA PORTADORA DE CÂNCER. NÃO CARACTERIZAÇÃO.
A neoplasia maligna, apesar de grave, não é considerada como doença estigmatizante, não envolvendo risco de contágio ou sequelas que tragam repulsa, a fazer incidir o disposto na Súmula 443, do C. TST. Nesse quadro, conclui-se que não há presunção de dispensa discriminatória por ser a empregada acometida por um câncer. E não havendo a presunção, a prova da dispensa discriminatória cabe à parte reclamante, ônus do qual não se desvencilhou, inexistindo, pois, direito a reintegração ou a indenização por danos morais. Recurso empresarial a que se dá provimento para julgar improcedente a ação.
(Tribunal Regional da 6ª Região, Proc. 0000639-44.2019.5.06.0233, Relatora: Carmen Lucia Vieira do Nascimento)
Assim, a dispensa não se presume discriminatória, devendo existir robusto acervo probatório que respalde tal alegação. Por outro lado, também há forte entendimento jurisprudencial e doutrinário defendendo a inclusão da neoplasia maligna no rol de patologias a que se refere a Súmula em debate - tal como no precedente abaixo transcrito:
EMBARGOS EM RECURSO DE REVISTA INTERPOSTOS PELA RECLAMANTE SOB A ÉGIDE DA LEI 13015/14. DISPENSA DISCRIMINATÓRIA. NEOPLASIA MALIGNA. CÂNCER DE MAMA. Discute-se a aplicação da Súmula 443 do TST nas hipóteses de dispensa de empregado portador de neoplasia maligna. Da leitura do acórdão embargado, verifica-se que a Turma julgadora concluiu que o câncer, por si só, não possui natureza contagiosa nem estigmatizante, cabendo à empregada o ônus de provar que, no caso concreto, havia estigma ou motivação discriminatória em sua dispensa. Nesse contexto, constata-se a dissonância do julgamento com o entendimento recentemente firmado pela SbDI-1 que, ao interpretar a Súmula 443 do TST, fixou tese no sentido de que se presume discriminatória a dispensa do empregado portador de neoplasia maligna, presunção esta que só pode ser elidida mediante prova robusta em sentido contrário, a cargo da empresa. Recurso de embargos conhecido e provido.
(Tribunal Superior do Trabalho, Seção de Dissídios Individuais, Proc. TST-E-ED-RR-2493-66.2014.5.02.0037, Relator: Ministro Alexandre Luiz Ramos)
Com a promulgação do Estatuto da Pessoa com Câncer, pode ter nascido reforço argumentativo para a corrente que defende a presunção de discriminação - e isto por diversos motivos. Inicialmente, tal norma prevê que, dentre seus princípios informadores, se encontram o “respeito à dignidade da pessoa humana, à igualdade, à não discriminação e à autonomia individual”.
Segue tal norma estabelecendo que, dentre seus objetivos, busca “garantir e viabilizar o pleno exercício dos direitos sociais da pessoa com câncer” – e o trabalho é um dos direitos sociais protegidos pela Constituição Federal, como disposto em seu artigo 6º.
Na mesma linha, prevê o Estatuto em seu artigo 4º que, dentre os direitos fundamentais da pessoa com câncer, se encontra a “proteção do seu bem-estar pessoal, social e econômico”, reforçando a amplitude de seu escopo, e que pode substanciar o argumento de que nele se incluem as relações laborais.
Ademais, prevê o Estatuto em seu artigo 5º que é dever da sociedade assegurar à pessoa com câncer a plena efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à assistência social e jurídica, à convivência familiar e comunitária, dentre outros decorrentes da Constituição Federal e das leis. Tal disposição pode ser usada como argumento pela corrente que defende a função social da propriedade privada, pois a proteção da pessoa com câncer não seria um dever exclusivo do Estado, mas sim de toda a sociedade.
Logo, devem os empregadores ter cautela no momento da dispensa do empregado acometido por tal patologia. Idealmente, a decisão pelo desligamento deve estar robustamente fundamentada (na extinção do setor empresarial, por exemplo), sob risco de a Justiça do Trabalho declarar a nulidade da resilição contratual, mormente diante da maior proteção conferida a tais empregados pela lei 14.238/21.