Migalhas de Peso

Generalistas versus especialistas no direito: boia e labirinto?

O direito precisará aprender a viver nesse preocupante mundo novo, no qual o operador do direito terá de se tornar cabeça pensante e não em mero executor de tarefas repetitivas.

15/12/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Há muitos anos, muitos mesmo, estive em Nova York assessorando um grande escritório daquela cidade em uma pendência travada entre bancos brasileiros e uma empresa americana que havia feito uma importação de um produtor brasileiro. A questão dizia respeito a operações de adiantamento sobre de contrato de câmbio ACC, cujos pormenores não precisamos tratar neste momento. As audiências eram realizadas nos próprios escritórios dos advogados, reunidos em imensas salas em cujo centro havia uma mesa enorme, com cerca de quarenta cadeiras (vinte de cada lado), nas quais se acomodavam os participantes, ocupando geralmente todas elas. Em uma das cabeceiras ficava o meirinho ou seu equivalente, que registrava a audiência e encaminhava para o juiz as petições dos advogados das partes.

Estranhei tanta gente, pois os bancos brasileiros eram representados por um único escritório, diante daquele que defendia a empresa americana. Mas logo descobri a razão. Os diversos e complexos aspectos da pendência ficavam a cargo de advogados especialistas, cada um altamente competente na sua área. Mas havia um problema: nenhum deles era capaz de compreender o todo da questão posta, emaranhando-se em discussões intermináveis sobre cada ponto controverso ou, mesmo, falsamente controverso, pois alguns deles, no fundo, eram falsos problemas. Quase tudo se passava como se fossem uma conversa entre diversas pessoas, cada uma delas falando em uma língua inteiramente incompreensível para as demais.

Faltava uma cabeça que pudesse entender a situação sob o seu ponto de vista macro, para poder direcionar a discussão de forma sistematizada e harmônica. Eu não consegui fazer isso em favor da empresa americana, tendo sido quase inteiramente inúteis as minhas tentativas de mostrar aos colegas americanos a quem assessorava qual era o caminho adequado, verdadeiramente a percorrer. O resultado não foi dos melhores para aquela cliente americana.

Esse introito foi feito com a intenção de demonstrar uma realidade que se mostra cada vez mais presente, qual seja a perda da visão geral do direito e dos seus microssistemas em favor de especializações que se tornam cada vez mais precoces no universo jurídico brasileiro, no qual a maior parte dos atores busca um nicho onde localizar-se, no qual possa realizar-se plenamente como um profissional de sucesso. Dentro dessa realidade o coitado do estagiário ingressa em um escritório para atuar em determinada área e corre o risco de nela se aposentar se não morrer antes.

Cabe aqui a famosa anedota sobre o médico ortopedista que somente sabe tratar do dedo mindinho da mão esquerda, nada podendo fazer em relação aos seus vizinhos. Ora, a superespecialização no direito tem levado os especialistas para dentro de um labirinto jurídico verdadeiramente emaranhado, do qual não conseguem sair, ao menos de uma forma razoavelmente eficaz, toda vez que se encontram diante de uma situação que envolve diversos microssistemas jurídicos. Falta aquilo que os alemães chamam de “Weltashauung”, aplicável ao nosso caso como uma cosmovisão, ou uma visão geral do direito.

Quanto aos generalistas, esses são capazes de compreender o todo de forma satisfatória, mas muitas vezes não conseguem descer ao nível particular dos problemas a serem enfrentados, conhecendo muito pouco dos microssistemas em jogo, de forma que não lhes é possível amarrar de forma adequada todas as pontas soltas. Eles são como as boias salva-vidas, que ficam eternamente na superfície da água. Dessa forma, esses generalistas perdem todo o riquíssimo ambiente de vida que está sob a superfície das águas.

Em tal cenário afiguram-se o generalista que sabe tudo de nada e o especialista que sabe nada de tudo. Ou vice-versa.

A pressão pela especialidade é intensa, refletida nas grades curriculares dos cursos de direito, cuidando-se dos planetas e dos asteroides, deixando de lado galáxias inteiras. Atitudes dessa natureza chegam a ser ridículas, como uma que presenciei ao tempo em que fui coordenador de uma faculdade privada de direito. Naquela ocasião um assessor contratado pela direção da escola fez uma proposta consistente em se dar um reforço no estudo de matérias específicas com aumento da carga horária, a ser feito durante o próprio curso de graduação, findo ao qual o aluno sairia formado, ao mesmo tempo bacharel e já especialista na área que tivesse escolhido. Fica evidente que, considerada uma carga horária limitada, as especialidades diversas tomariam o lugar do estudo da parte geral de muitas disciplinas e dos conteúdos genéricos, reduzindo-se, o aprendizado do direito constitucional, direito civil, direito comercial, direito penal etc., nos seus aspectos mais fundamentais.

E veja-se que, na minha visão, não existe ou não deve existir um dilema ente a escolha por um ensino mais generalista ou mais especializado, como se verá em seguida.

Ao longo dos meus mais de quarenta e cinco anos de magistério no direito, eu cheguei a algumas conclusões sobre como tornar os cursos jurídicos mais eficientes, preparadores de melhores profissionais para o mercado de trabalho. E há um aspecto novo que já estava presente, mas que se avolumou de forma exponencial no curso da pandemia ora ainda entre nós, o da aplicação da tecnologia ao direito.

No sentido acima devemos assumir que os robôs jurídicos vieram para serem usados de forma definitiva no mundo jurídico. E isso ainda se torna mais sensível quando se verifica que eles não somente farão tarefas repetitivas na pesquisa da jurisprudência e na elaboração de peças relativas a casos de massa, mas, mercê da inteligência artificial, exercerão funções quase verdadeiramente pensantes (senão mais do que isso), o que é extremamente assustador. As histórias de acontecimentos ocorridos com experiências feitas relativamente a alguns algoritmos deixam os cabelos em pé, para quem ainda os tem.

No momento que estamos vivendo já percebemos o desaparecimento progressivo do paralegal e do advogado júnior, cujas funções têm ficado nas mãos de programas de computador muito eficientes. Em futuro não muito distante, o incremento de novas tecnologias disruptivas e da chegada do 5G ao Brasil avançará sobre outras funções da engrenagem jurídica, de forma que a substituição daqueles operadores se dará de maneira muito mais rápida e intensa. E não adiantará – destaque-se - qualquer medida que a OAB venha a tomar contra essa realidade já visível, pois as pressões em favor do mundo novo que já está na nossa porta serão insuportáveis, favorecidas pela redução dos custos que ele proporciona, ao lado da atividade e da velocidade necessárias para o atendimento de necessidades que cada vez mais se multiplicam em um ambiente globalizado. O direito precisará aprender a viver nesse preocupante mundo novo, no qual o operador do direito terá de se tornar cabeça pensante e não em mero executor de tarefas repetitivas, reforçando-se que os contratos inteligentes, celebrados por programas cada vez mais evoluídos, serão aplicados a um elevado nível de complexidade.

Diante dessa automação da atividade jurídica, revela-se nada promissor o horizonte de médio e de longo prazo para o profissional do direito, com as habilidades que lhe proporcionam os cursos atuais e os estágios nos escritórios. A sua substituição por ferramentas eficientes ataca dois lados do problema: a superação da necessidade de profissionais tarefeiros e a redução da quantidade de profissionais em geral, considerando que a automação reduzirá cada vez mais a necessidade de gente, do velho ser humano voltado para o direito. E a proliferação indiscriminada de cursos jurídicos que se verifica hoje e sempre somente agravará o problema de uma vasta massa de desempregados, que nem sequer subempregados terão o luxo de ser.

Qual será o tipo de trabalho do advogado de um futuro já bem próximo? Como já disse, o de cabeça pensante que – a par de um trabalho verdadeiramente artesanal como um parecer complexo -, aliado à tecnologia, alimentará os robôs jurídicos com as informações necessárias para a atuação destes. Essa alimentação consistirá em diretrizes a serem introduzidas nos algoritmos implantados nos sistemas, por exemplo, depois da análise crítica de alguma nova lei ou de decisão importante de um tribunal superior. Nesses casos a tecnologia se mostrará inviável, porque não consegue tratar com juízos de valor não aplicáveis ao caso as famosas três leis da robótica propostas por Isaac Asimov na sua inolvidável obra Eu Robô, às quais o autor mais tarde acrescentou uma quarta lei1. Afinal de contas, muitas vezes o que é moral não é legal e o que é formalmente legal pode ser imoral. E existe o caso dos princípios gerais de direito, não escrito, e das clausula pétreas, umas absolutas e outras nem tanto. Explique-se isso para um algoritmo.

Diante de todo esse cenário, fica resolvido o aparente conflito entre generalistas e especialistas do direito, com a valorização e supremacia dos primeiros. O lugar dos especialistas ficará reservado à tecnologia, exceto no campo das respectivas teorias gerais atinentes aos microssistemas que os integram, campo de generalistas especializados, digamos assim. Do lado dos generalistas, estes necessitarão enfronhar-se nas bases dos microssistemas particulares, para que a sua visão do todo compreenda as respectivas particularidades. E como disse acima, embaixo da água, há muita vida a ser descoberta.

Do lado dos cursos de direito, sua adaptação deverá se dar – sob pena de não sobrevivência – na preparação dos ditos generalistas, que implica essencialmente no ensino do saber pensar, tarefa reservada a poucos. Isso leva a outra consequência inarredável, como seja, a necessidade da significativa redução do número de alunos por classe, que permita uma discussão dinâmica mínima em sala de aula dos temas relativos ao programa a ser atualizado. Cuida-se da adoção do chamado método socrático, na parte em que se volta para a construção do conhecimento e não voltado para a simples transmissão decoreba de ideias.

Pode ser aceitável a existência de classes de graduação com no máximo cinquenta alunos em aulas teóricas, desde que o seu conteúdo seja discutido depois em grupos que não superem quinze deles. E quinze é o limite a não ser ultrapassado em cursos de pós-graduação, preferencialmente presenciais. Quanto a esse aspecto durante a pandemia ministrei quatro disciplinas semestrais inteiramente a distância com um razoável nível de aproveitamento, mas longe do ideal. A propósito, seria sábia uma opção por cursos híbridos, os quais, sendo de quatro aulas mensais, tivessem uma delas presenciais e outras on line. Isso abriria a portas para alunos de localidades distantes, lhes permitindo o aceso a universidades de ponta, sem precisaram abandonar o domicílio e/ou o trabalho.

Nessa mudança de paradigma para cursos pensantes, o carro atola por dois motivos. O primeiro diz respeito aos professores já formados e em exercício que não tenham construído o seu ensino sobre as bases socráticas e que sejam ignorantes e nem dominem os mínimos rudimentos da tecnologia aplicável ao direito. Eles são, quando muito, gerentes de classes. O segundo estará na enorme dificuldade de fazer novos professores segundo esse figurino generalista, pois falta na geração de hoje conhecimento cultural em um espectro amplo, que somente nasce depois de muita leitura e de muita reflexão. Eu frequentemente me espanto quando descubro tudo de importante que os estudantes de hoje jamais leram, em um universo de alunos considerados de elite.

E os professores precisarão interagir uns com os outros, o que no Brasil quanto ao direito revela-se impraticável porque cada qual precisa sobreviver fora das portas de suas faculdades, desenvolvendo atividades profissionais paralelas em outras áreas2. Não há entidades agregadas àquelas faculdades, que possam contratar professores de direito em atividade complementar de pesquisa, sendo os de tempo integral tão raros quanto o trevo de quatro folhas. Compreende-se que é importante um arejamento das mentes com ares externos, mas de outro lado, se a dose for excessiva, pode matar a pesquisa que é imprescindível. Sabe-se que J. R.R Tolken, C. S. Lewis e outros companheiros se reuniam com frequência para discussões acadêmicas e literárias, algumas vezes acompanhadas de boa cerveja. Eram os Inklings, em cujo seio as obras memoráveis daqueles dois autores – já publicadas ou em preparo - eram discutidas naquele grupo com grande aproveitamento recíproco.

Mas se o que foi dito acima deu certo na literatura para os Inklings, a mesma situação não daria certo entre nós no campo do direito.

Portanto, voltando ao nosso tema, viva aos generalistas abertos para o mundo prático.

______

1ª Lei: Um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra algum mal. 2ª Lei: Um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que entrem em conflito com a Primeira Lei. 3ª Lei: Um robô deve proteger sua própria existência, desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira ou Segunda Leis. 4ª Lei: “Lei Zero”, acima de todas as outras: um robô não pode causar mal à humanidade ou, por omissão, permitir que a humanidade sofra algum mal.

2 Todos sabemos que, em todos os níveis, o que se paga para um professor em nossa terra é um verdadeiro acinte. Os proventos são insuficientes para poderem comprar os livros estritamente necessários para o seu aperfeiçoamento contínuo.

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Sócio de Duclerc Verçosa Advogados Associados. Professor Sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Coordenador geral do GIDE – Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial. Membro do Comitê de Ensino e Relações com Faculdades, do CESA.

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