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O dano moral presumido na cobrança abusiva

Os Tribunais vêm entendendo que as ofensas à honra subjetiva do indivíduo, praticadas através de cobranças abusivas - sejam elas, caracterizadas por excessividade onerosa, não prestação do serviço ou ilegitimidade da cobrança - se equipara ao tal "mero dissabor".

13/12/2021

I - INTRODUÇÃO

Estudo de casos: (1) um consumidor que sofre cobrança abusiva de uma concessionária de serviço público; ou (2) um terceiro que recebe uma fatura de cartão de crédito e verifica possuir um empréstimo consignado fraudulento de uma instituição financeira da qual ele não possui qualquer relação jurídica. Em ambos os casos, mesmo após a contestação dos débitos pelos canais de atendimento disponibilizados ao consumidor, as cobranças são mantidas e, por necessidade, ambos acabam tendo de ingressar com ação judicial contra a financeira para nulificar o débito, além de pleitearem danos morais.

Aqui vemos nitidamente uma prática abusiva, nos termos do art. 39, IV e V do Código de Defesa do Consumidor: no primeiro caso, temos uma cobrança excessiva (cobrança além do devido ou por serviço não prestado); já no segundo, temos uma cobrança ilegítima (cobrança sem que haja relação jurídica entre as partes), porém, ambas indiscutivelmente enquadradas como cobrança indevida, havendo, portanto, direito do consumidor à decretação de sua nulidade e à reparação moral pelos transtornos sofridos, nos termos dos arts. 6º, VI; 14; e, 20 do CDC.

Pois bem, mas, infelizmente, não é assim que vem entendendo o Poder Judiciário brasileiro, conferindo aos casos específicos de cobrança abusiva decisões brandas e que fogem à realidade social. O que vemos é que, em ambos os casos, nega-se o pleito à indenização, escusando os fornecedores através da idéia rasa do chamado "mero dissabor".

II - DA OFENSA AO LIAME NEGOCIAL NA COBRANÇA ABUSIVA

Muito importante pontuarmos que, de fato, o terceiro – ainda que não usuário direto dos serviços do fornecedor – é tido por lei como um consumidor por equiparação, consoante estabelece o art. 17 da lei 8.078/90. Entendemos que as decisões, tanto no tocante aos consumidores diretos, quanto aos consumidores por equiparação, merecem ser reformuladas (ou reformadas), no sentido de se entender a pertinência do dano in re ipsa para estas situações.

Vejam, é inegável que numa contratação, as partes o fazem, antes de tudo, em razão de uma relação de confiança (ainda que, à princípio, aparente ou efêmera), no qual os contratantes devem respeitar, além dos ditames legais que regem as relações negociais – isto é, a boa-fé objetiva, função social do contrato e equilíbrio das relações – ainda, também devem guardar postura de respeito, cooperação, transparência, informação, segurança, adequação, etc., ou seja, os deveres anexos advindos da exegese dos arts. 421 e 422 do Código Civil. Diante de tais obrigações legais e negociais, não se pode esperar que uma das partes se preste à fazer cobranças além do devido, em especial nas relações de consumo, no qual referidas regras possuem ainda maior caráter de relevância social e, assim, de efetividade. Uma vez assumido o vínculo negocial, as partes devem se comportar de modo a que o contrato se ultime, em obediência à sua função social, no sentido de cooperarem entre si para que este vínculo jurídico transcorra da forma mais harmoniosa possível, visando justamente o adimplemento de ambos os contratantes.

Com o advento do Código de Defesa do Consumidor, os princípios da boa-fé e da função social ganham nova preponderância sobre princípios contratuais outros, que hoje são, digamos, relativizados, como os princípios do pacta sunt servanda, da autonomia da vontade ou da exceptionon adimplenti contractus. Aqui, esclarecedores são os ensinamentos da eminente mestra CLÁUDIA LIMA MARQUES1:

"À procura do equilíbrio contratual, na sociedade de consumo moderna, o direito destacará o papel da lei como limitadora e como verdadeira legitimadora da autonomia da vontade. A lei passará a proteger determinados interesses sociais, valorizando a confiança depositada no vínculo, as expectativas e a boa-fé das partes contratantes. Conceitos tradicionais como os do negócio jurídico e da autonomia da vontade permanecerão, mas o espaço reservado para que os particulares auto-regulem suas relações será reduzido por normas imperativas, como as do próprio Código de Defesa do Consumidor". (destacamos)

E finaliza a insigne mestra:

"É uma nova concepção de contrato no Estado social, em que a vontade perde a condição de elemento nuclear, surgindo em seu lugar elemento estranho à partes, mas básico para a sociedade como um todo: o interesse social2"

As decisões judiciais, em que pese serem assertivas ao reconhecerem e declararem a nulidade do débito, pecam ao isentarem a responsabilidade objetiva dos fornecedores, adotando-se vários pretextos, como a teoria do "mero dissabor", a assertiva de que o "mero descumprimento contratual não dá ensejo à reparação moral" ou aduzindo que não houve suspensão do fornecimento do serviço ou falta de apontamento em demérito do consumidor, se afastando, assim, dos ditames das justiças social e comutativa, do princípio do risco do negócio do fornecedor, além da função social do contrato, da boa-fé objetiva e da equidade. Condiciona-se a condenação à ocorrência dos referidos fatores e quem sai fragilizado são duas partes: o consumidor e o ordenamento jurídico.

Uma vez estando a relação negocial devidamente protegida e regulamentada por um contrato, cria-se no contratante a legítima expectativa de que este será satisfatoriamente cumprido, ou seja, de que, num contrato de fornecimento de água ou de luz, por exemplo, este não será interrompido abruptamente, ou que o aparelho medidor se encontra dentro dos padrões de adequação, atualidade e segurança, ou que o usuário não será surpreendido com cobranças excessivas ou terá seu CPF apontado nos órgãos de proteção ao crédito. Nenhuma destas situações se enquadram no legitimamente esperado ou no fator "do cotidiano", mas sim, são fatos do serviço que merecem ser sumariamente corrigidos e o consumidor devidamente ressarcido, tanto em sua esfera patrimonial, quanto na moral.

Eximir o fornecedor da culpa através da escusa de que "mero descumprimento contratual" não gera direito à indenização é ferir de morte o princípio da função social do contrato, na medida em que acaba se admitindo que o inadimplemento de qualquer cláusula de contrato não gerará a devida sanção ao seu infrator, tornando o vínculo jurídico frágil, efêmero, desregrado, além de se compactuar para a insegurança jurídica. Ora, que segurança alguém teria em contratar um plano de saúde, por exemplo, sem que este tivesse o dever de informar o credenciamento ou descredenciamento de seus colaboradores, caso o consumidor necessite usar os serviços contratados? Qual sanção seria aplicada ao plano, de forma mais eficaz, célere e adequada, que não a condenação em danos morais, a fim de inibir e (re)educar o plano no sentido deste cumprir com as obrigações que lhe são impostas por lei ou pelo contrato?

Vejam que o E. Superior Tribunal de Justiça pacificou entendimento quanto à responsabilização de instituições financeiras, por exemplo, nos casos de apontamento indevido de consumidores em casos de fraudes praticadas por terceiros, culminando no tema 466 dos recursos repetitivos (REsp 1.197.929/PR). Neste, pontuamos entendimento do e. Ministro-Relator LUIS FELIPE SALOMÃO, para o qual "a responsabilidade do fornecedor decorre, evidentemente, de uma violação a um dever contratualmente assumido" (destacamos), evidenciando, assim, a preponderância de se cumprir adequadamente o contrato.

III - DO DANO PESSOAL E A COBRANÇA ABUSIVA

COMO PRESSUPOSTO DO DANO PRESUMIDO

Uma vez violado o direito ao correto e adequado cumprimento do contrato, este fato tem potencial lesivo não apenas na esfera patrimonial, mas igualmente, na pessoal e na social do contratante, na medida em que o descumprimento em si gera, de algum modo, abalo na confiança e na já mencionada legítima expectativa do consumidor.

Adotamos a célebre doutrina do e. jurista CARLOS ALBERTO BITTAR3, o qual nos esclarece, com objetivismo e clareza, as diferentes espécies de danos, a saber:

"a) são patrimoniais os prejuízos de ordem econômica causados por violações a bens materiais ou imateriais de seu acervo; b) pessoais, os danos relativos ao próprio ente em si, ou sem suas manifestações sociais, como, por exemplo, as lesões ao corpo, ou a parte do corpo (componentes físicos), ou ao psiquismo (componentes intrínsecos da personalidade), como a liberdade, a imagem, a intimidade; c) morais, o relativos a atributos valorativos, ou virtudes, da pessoa como ente sociais, ou seja, integrada à sociedade, vale dizer, dos elementos que a individualizam como ser, de que se destacam a honra, a reputação e as manifestações do intelecto" (destacamos)

Neste sentido, verificamos que para além dos já famigerados danos patrimoniais, existem ainda os danos pessoais (que atingem a chamada honra subjetiva) – ou seja, aqueles de foro íntimo da vítima, os personalíssimos, privados, que maculam sua percepção de si, sua auto-imagem – e os danos morais stricto sensu (atingem a honra objetiva), que são aqueles interpessoais, aqueles que se espraiam para a sociedade, para o grupamento no qual a vítima se encontra inserida. Um dano estético, por exemplo, se insere nestas últimas duas espécies de danos, podendo ser classificado tanto como dano pessoal (como o indivíduo se enxerga), quanto moral stricto sensu (como o indivíduo será enxergado no seio social). De todo modo, o que se percebe é que não apenas os danos que são socializados, ou seja, em que seus efeitos são levados à conhecimento de terceiros, refletindo para além da esfera íntima da pessoa, é que são os únicos capazes de infirmar a condenação em danos morais. Também os danos causados à honra subjetiva (os íntimos ou pessoais) são aptos à condenação em danos morais lato sensu. Neste mesmo sentido, conclui o e. mestre CARLO ALBERTO BITTAR4:

"Há, por fim, hipóteses em que se afeta a própria personalidade do lesado sob aspectos diferentes. Ora, é exatamente quando se ferem os componentes da subjetividade e da consideração pessoal e social do titular de direitos que os danos se apresentam como morais" (destacamos)

Trazemos à colação, ainda, ensinamentos da e. Ministra NANCY ANDRIGHY5 para a qual "múltiplos são os fundamentos da tese de reparabilidade do dano moral. Sob o aspecto pessoal, tem-se que a indenização é uma reação da personalidade do lesado, de sua própria natureza humana, às agressões e atentados causados pelo lesante. Ofensas dessa categoria repugnam a consciência humana do injusto e, assim, demandam a devida reparação" (destacamos).

No presente estudo, a violação de um dever contratual, como a cobrança abusiva gera um dano na medida em que o contratante sofre um abalo não apenas na relação de confiança que deposita na pessoa do contratado (esfera social), como também pela própria frustração em se ver cobrado por algo que não deve (esfera pessoal). O dano presumido advém justamente na situação de contestação da cobrança do débito, em que seu pleito de correção é ignorado ou negado. Uma vez oportunizada a correção da cobrança injusta ao fornecedor e este adota postura de indiferença ou de manutenção do débito, entendendo-o como válido, o dano, agora sim, deve ser enquadrado como presumido.

Nas palavras do e. ministro SIDNEI BENETI6, "para se presumir o dano moral pela simples comprovação do ato ilícito, esse ato deve ser objetivamente capaz de acarretar a dor, o sofrimento, a lesão aos sentimentos íntimos juridicamente protegidos".

Assim, em havendo ofensa ao liame contratual, em especial no tocante à cobrança abusiva, contestada e, ainda assim, mantida, entendemos que há, sim, a violação a bem jurídico de foro íntimo do contratante, que é resguardado pelo ordenamento jurídico pátrio, como a consideração pessoal que o indivíduo tem de si mesmo, o que possui papel preponderante na formação de sua personalidade, da criação do seu "eu" íntimo e social, da sua "persona", valores e crenças.

É inegável, por exemplo, que uma senhora idosa, com seus 70 anos ou mais, ao receber uma cobrança abusiva de sua companhia de luz, irá sofrer um abalo emocional, sentindo-se injustiçada, vilipendiada em seus valores, além de sofrer mais outros dois duros golpes em sequência, quais sejam: o primeiro, quando da negativa da contestação extrajudicial do débito que lhe é cobrado; e, o segundo, quando, ao socorrer-se ao Poder Judiciário, seu pleito de declaração de nulidade, apesar de acolhido, será igualmente tido como "mero dissabor".

Na própria esfera processual, uma vez reconhecido o dano moral presumido nestas situações, tal fator também contribuiria para que os fornecedores fossem mais diligentes na prestação do serviço e na apuração quando da alegação de cobrança indevida, no sentido justamente de evitarem serem processados e sucumbirem a eventuais condenações em danos morais.

IV - DA CONCLUSÃO

Em que pese algumas tímidas decisões favoráveis ao consumidor, é papel do Judiciário ser sensível a estas questões, no sentido de flexibilizar o rol de casos em que se configuram os danos morais presumidos também para a situação fático-jurídico da cobrança indevida, diante ao descaso com que são tratadas as contestações e reclamações dos consumidores na esfera pré-processual, fazendo surgir, assim, a necessidade de propositura de ações judiciais.

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MARQUES, Cláudia Lima. CONTRATOS NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR: O NOVO REGIME DAS RELAÇÕES CONTRATUAIS. 5ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, P. 210.

2 MARQUES, Ob. Citada, p. 211.

Reparação civil por danos morais. São Paulo: Saraiva, 4ª ed., 2015, p. 35.

4 BITTAR, Ob. Citada, p. 61.

5 REsp 1426710/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/10/2016.

6 AgRg no REsp 1346581/SP, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 23/10/2012.

Guilherme Dias Trindade
Advogado, formado desde 2008 pela Universidade Católica de Santos-SP, atuante nas áreas cível (com ênfase em contratos) e do consumidor e sócio do escritório PENCO E TRINDADE ADVOGADOS.

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