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A nova lei de improbidade administrativa: o compromisso constitucional como única alternativa

O Direito Administrativo Sancionador, que é integrado pela Lei de Improbidade Administrativa, submete-se à observância de uma série de garantias constitucionalmente previstas, como - sem a pretensão de ser exaustivo – o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa, a presunção de inocência e mesmo a retroatividade benéfica.

9/12/2021

1. INTRODUÇÃO

Aos 25 dias do mês de outubro do ano de 2021, foi publicada a lei 14.230, que altera a Lei de Improbidade Administrativa (lei 8.429/92), promovendo significativas alterações à legislação, dentre as quais a disposição geral do prazo prescricional de 8 (oito) anos e a expressa previsão da prescrição intercorrente em 4 (quatro) anos.

Com efeito, antes das alterações promovidas pela lei 14.230/21, o art. 23, da lei 8.429/92, trazia a previsão de prazos prescricionais distintos, variáveis em função do tipo de vínculo do agente público acusado de improbidade, quais sejam: a) cinco anos após o término do exercício de mandato, de cargo em comissão ou de função de confiança; b) dentro do prazo prescricional previsto em lei, nos casos de exercício de cargo efetivo ou emprego, e c) até cinco anos da data da apresentação à administração pública da prestação de contas final pelas entidades que recebam subvenção, benefício ou incentivo de órgão público, bem como aquelas para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido, ou concorra, com menos de cinquenta por cento do patrimônio ou da receita anual.

Trata-se de positiva alteração, não apenas por fixar, de maneira uniforme, o prazo prescricional de 8 (oito) anos para todos os atos de improbidade administrativa, independentemente da função do agente pretensamente ímprobo, mas, também, por equacionar valores essenciais, quais sejam, moralidade administrativa, dignidade da pessoa humana, devido processo legal e duração razoável do processo a ele intrínseco.

Ao Estado não se atribui um “qualquer” dever de investigar, acusar e julgar. Todas essas missões devem ser realizadas com compromisso constitucional, respeitando-se a força normativa a serviço da preservação dos valores constitucionais.

Na temática ora enfrentada, deve-se partir da premissa de que dois grandes bens jurídicos devem ser permanentemente ponderados, a saber, a dignidade da pessoa humana e o interesse público.

Evidente que cabe ao Estado (seja Juiz, seja Administração) a apuração, processamento e eventual imposição de sanção a quem, por exemplo, gere dano ao erário.

Todavia, esse avanço sobre a esfera de uma pessoa, como se dá nas ações de improbidade (marcadas por danos imediatos, graves e incontestes à sua honra) não pode se dar ao modo “custe o que custar”, sobretudo quando esse “custo” consistir no sacrifício de relevantes garantias conquistadas a duras penas, como é o caso da duração razoável do processo.

Assim, a solução legislativa, introduzida pela lei 14.230/21, parece acertada, uma vez que amplia, de modo geral, o prazo de prescrição em abstrato (que passa a ser, unificadamente, de oito anos), aumentando o tempo de que dispõe o Estado para ajuizar ação pública por ato de improbidade administrativa (desde que respeitado o prazo do § 3º, do art. 23, da lei 14.230/211), mas, ao mesmo tempo, estabelece prazo máximo de investigação (de um ano, prorrogável, uma vez, por igual período) e com a previsão da prescrição intercorrente em quatro anos, exigindo do Estado maior celeridade e eficiência na apuração, ajuizamento e processamento da conduta ímproba.

Dessa forma, a lei também resguarda valores fundamentais, como o devido processo legal e a sua razoável duração, preservando, ainda, a dignidade de quem se submete à inquérito ou ação de improbidade, cujos efeitos são reconhecidamente deletérios.

Feitas essas considerações iniciais, é de se notar que, em determinados casos, a aplicação da previsão legal anterior será mais benéfica ao agente pretensamente ímprobo, ao passo em que, noutros, será mais benéfica a nova redação legal, notadamente nos casos de prescrição intercorrente, que agora passa a se perfazer em 4 (quatro) anos.

À vista disso, o presente artigo se propõe a analisar a aplicação da garantia da retroatividade benéfica à Nova Lei de Improbidade Administrativa, abarcando, assim, as ações civis públicas por ato de improbidade administrativa em curso e os atos de improbidade administrativa ainda não processados, mas praticados antes da entrada em vigor da nova lei.

2. DO CARATÉR SANCIONATÓRIO DA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA e consequente submissão às garantias constitucionais

Por ter a previsão do art. 23, da lei 14.230/21, conteúdo material, e ser muitas vezes, mais benéfica, deve, em tais casos, alcançar fatos pretéritos, em observância à garantia fundamental da retroatividade da lei mais benéfica, insculpida em cláusula pétrea, precisamente no art. 5o, XL, da Constituição Federal2.

Preliminarmente, cumpre destacar, neste ponto, que, diferentemente das normas de conteúdo processual, que têm aplicabilidade imediata, a todo e qualquer processo em curso, o art. 23, da lei 14.230/21, por versar sobre prescrição, tem conteúdo material, devendo retroagir, portanto, quando benéfica.

Assim como o Direito Penal, o Direito Administrativo integra o Direito Sancionador do Estado, que visa a garantir a efetivação dos valores mais caros à sociedade, em prol da contenção do poder punitivo estatal.

Por tal razão, o Direito Administrativo Sancionador, que é integrado pela Lei de Improbidade Administrativa, submete-se à observância de uma série de garantias constitucionalmente previstas, como - sem a pretensão de ser exaustivo – o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa, a presunção de inocência e mesmo a retroatividade benéfica.

Até porque “o Direito Administrativo Sancionador tem como núcleo fundamental os princípios que garantem a contenção do poder punitivo estatal, independentemente de a sanção ser aplicada pelo Estado-Administração ou pelo Estado-Juiz.”3

Não por outro motivo, a lei 14.230/21 previu expressamente, em seus art. 1o, § 4º, e 17-D, que se aplicam, ao sistema de improbidade administrativa, os princípios constitucionais do Direito Administrativo Sancionador. Ex positis:

§ 4º Aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador.”

Art. 17-D. A ação por improbidade administrativa é repressiva, de caráter sancionatório, destinada à aplicação de sanções de caráter pessoal previstas nesta Lei, e não constitui ação civil, vedado seu ajuizamento para o controle de legalidade de políticas públicas e para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.

Notadamente, antes mesmo da entrada em vigor da Nova Lei de Improbidade Administrativa, o entendimento jurisprudencial pátrio já era consolidado no sentido de que o Direito Administrativo Sancionador deve submeter-se aos princípios do Direito Sancionatório e, especialmente, à garantia à retroatividade da lei mais benéfica. Eis o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ):

ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. PODER DE POLÍCIA. SUNAB. MULTA ADMINISTRATIVA. RETROATIVIDADE DA LEI MAIS BENÉFICA. POSSIBILIDADE. ART. 5º, XL, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. PRINCÍPIO DO DIREITO SANCIONATÓRIO. AFASTADA A APLICAÇÃO DA MULTA DO ART. 538, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CPC. I. O art. 5º, XL, da Constituição da República prevê a possibilidade de retroatividade da lei penal, sendo cabível extrair-se do dispositivo constitucional princípio implícito do Direito Sancionatório, segundo o qual a lei mais benéfica retroage. Precedente. II. Afastado o fundamento da aplicação analógica do art. 106 do Código Tributário Nacional, bem como a multa aplicada com base no art. 538, parágrafo único, do Código de Processo Civil. III. Recurso especial parcialmente provido. (STJ - REsp: 1153083 MT 2009/0159636-0, Relator: Ministro SÉRGIO KUKINA, Data de Julgamento: 06/11/2014, T1 - PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 19/11/2014)

Nesse mesmo rumo, destaca-se recente julgado do STJ, em que a Corte Superior declara que, por se tratar o processo administrativo disciplinar de espécie de Direito Sancionador, submete-se ao princípio da retroatividade mais benéfica:

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. ENUNCIADO ADMINISTRATIVO 3/STJ. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA. NÃO OCORRÊNCIA. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO. 1. A sindicância investigativa não interrompe prescrição administrativa, mas sim a instauração do processo administrativo. 2. O processo administrativo disciplinar é uma espécie de direito sancionador. Por essa razão, a Primeira Turma do STJ declarou que o princípio da retroatividade mais benéfica deve ser aplicado também no âmbito dos processos administrativos disciplinares. À luz desse entendimento da Primeira Turma, o recorrente defende a prescrição da pretensão punitiva administrativa. 3. Contudo, o processo administrativo foi instaurado em 11 de abril de 2013 pela Portaria n. 247/2013. Independente da modificação do termo inicial para a instauração do processo administrativo disciplinar advinda pela LCE n. 744/2013, a instauração do PAD ocorreu oportunamente. Ou seja, os autos não revelam a ocorrência da prescrição durante o regular processamento do PAD. 4. Agravo interno não provido. (STJ - AgInt no RMS: 65486 RO 2021/0012771-8, Relator: Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, Data de Julgamento: 17/08/2021, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 26/08/2021)

Ora, se, em relação ao processo administrativo disciplinar, reconhece o STJ a imperativa observância às garantias fundamentais, inclusive àquelas de natureza penal, com ainda mais razão devem a elas submeter-se as ações por ato de improbidade administrativa, eis que ensejam sanções de maior gravidade.

Nesse diapasão, transcreve-se, pela pertinência, as lições de Walber de Moura Agra4:

Inclusive, urge acentuar que o STJ reverbera entendimento no sentido da interpenetração dos institutos do Direito Penal com os do Direito Administrativo Sancionador, sob o arremate jurisprudencial de que "onde permanecem as mesmas razões, permanece a mesma compreensão" [7].

Mesmo que esse não fosse o posicionamento dominante, a nova diretriz normativa expungiu qualquer tipo de divagação, ao deixar claro que na sua utilização deve-se aplicar os princípios constitucionais do Direito Administrativo Sancionador (artigo 1º, §4º). Assim, depreendendo-se que a Lei de Improbidade Administrativa está circunscrita ao campo do Direito Sancionador, que a Constituição não proíbe a retroatividade de lei que beneficie o réu, tanto as normas penais, quanto as que ostentam conteúdo sancionatório, não há se falar em engendrar qualquer tipo de discussão quanto à possibilidade de aplicação da lei 14.230/21 aos processos em curso, seja em primeira instância ou em qualquer outra esfera recursal.

Além do que, se esse não fosse o escopo tencionado pela mens legis, haveria o impedimento de se colocar óbices ao alcance da retroatividade. Como facilmente se depreende, em nenhum momento a nova lei impediu a retroatividade, autorizando o cumprimento da retroatividade da norma mais benigna. Se assim não foi realizado, segue-se os ditames do Estado de Direito que comina que na ausência de obstáculo normativo, de modo a permitir a prática de um ato, mormente quando ele se sincroniza com as modificações operadas no grau de reprovação social. Nesse passo, o Superior Tribunal de Justiça perfilhou entendimento no sentido de que o princípio da retroatividade da lei mais benéfica alcança as leis que disciplinam o Direito Administrativo Sancionador.

Como se vê, em se tratando a Lei de Improbidade Administrativa de parte integrante do Direito Sancionatório, deve a sua aplicação observar as garantias constitucionais e os princípios gerais do Direito Sancionatório, dentre os quais está o princípio da retroatividade benéfica, constitucionalmente previsto, ao teor do art. 5o, XL, da Constituição Federal.

De tal modo, para aqueles casos em que a nova previsão legal for mais benéfica ao agente que responde por ato de improbidade administrativa, deve a lei 14.230/21 ser aplicada, ainda que em relação à atos preteritamente praticados.

 3. CONCLUSÃO

Desse modo, i) por integrar a improbidade administrativa o Direito Administrativo Sancionador, ii) por aplicarem-se, ao sistema de improbidade, os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador (art. 1o, § 4º, e art. 17-D, da lei 14.230/21) e iii) pelo entendimento consolidado do STJ, no sentido de que se aplicam, às ações de natureza administrativa sancionatória, a retroatividade benéfica (art. 5o, XL, da CF), conclui-se pela imposição constitucional de aplicação da nova lei 14.230/21 a fatos pretéritos, quando for essa benéfica.

Atuar com compromisso constitucional, em qualquer esfera da vida, e particularmente no agir estatal, sempre será a única alternativa disponível.

 _______________

1 § 3º Encerrado o prazo previsto no § 2º deste artigo, a ação deverá ser proposta no prazo de 30 (trinta) dias, se não for caso de arquivamento do inquérito civil.

2 XL - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;

3 AGRA, Walber de Moura. A possibilidade de retroação da nova Lei de Improbidade Administrativa.

 

4 AGRA, Walber de Moura. A possibilidade de retroação da nova Lei de Improbidade Administrativa.

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BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.

BRASIL. Lei 8.429, de 2 de junho de 1992. Rio de Janeiro, 2 de junho de 1992.

BRASIL. Lei no 14.230, de 25 de outubro de 2021. Brasília, 25 de outubro de 2021.

BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - STJ - REsp: 1153083 MT 2009/0159636-0, Relator: Ministro SÉRGIO KUKINA, Data de Julgamento: 06/11/2014, T1 - PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 19/11/2014.

BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – STJ - AgInt no RMS: 65486 RO 2021/0012771-8, Relator: Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, Data de Julgamento: 17/08/2021, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 26/08/2021.

OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.

AGRA, Walber de Moura. A possibilidade de retroação da nova Lei de Improbidade Administrativa.

MENEGAT, Fernando. A retroatividade das normas de improbidade mais benéficas.

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Tiago Ayres
Mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (ABRADEP).

Karina Calixto de Mattos
Especialista Em Ciências Criminais Pela Faculdade Baiana De Direito. Bacharel Em Direito Pela Universidade Salvador (UNIFACS). Professora e Advogada Criminalista.

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