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Análise dos projetos de lei - Também o PL 4.257/19 - Para a desjudicialização da execução fiscal: a execução administrativa sueca e a imparcialidade

A execução não necessariamente precisa ser efetivada pelo juiz, mas por um terceiro imparcial, independente e equidistante de ambas as partes, garantindo-se assim que os atos de constrição sejam realizados de forma justa, honesta e destacada de qualquer interesse ou influência. Não se vislumbra nos projetos de lei de desjudicialização da execução fiscal esse distanciamento ou afastamento dos Procuradores da Fazenda dos interesses da causa.

1/12/2021

Análise dos projetos de lei – também o PL nº 4.257/2019 – para a desjudicialização da execução fiscal: a execução administrativa sueca e a imparcialidade.(Imagem: Divulgação/Migalhas)

O relatório “Justiça em Números” do CNJ demonstra que o combate à morosidade judicial no Brasil deve envolver necessariamente o debate específico sobre a temática dos procedimentos de execução fiscal, já que o enfrentamento dessa questão tem potencial de solucionar um dos principais gargalos da justiça brasileira.

O cenário apresentado é alarmante, mas não é novo, razão pela qual desde o ano de 2005 tramitam perante a Câmara dos Deputados Federais projetos de lei com diferentes propostas visando o aperfeiçoamento das execuções fiscais, já que o poder público é, comprovadamente, o principal responsável pela sobrecarga de trabalho do Poder Judiciário.

Em 06/07/2005, o Deputado Federal Celso Russomanno (PP/SP) apresentou o PL 5.615/05, dispondo sobre “a cobrança administrativa do crédito da Fazenda Pública”. O primeiro projeto de desjudicialização da execução fiscal foi arquivado em 24/06/2010 a pedido do autor, justificado pelo fato de haver outras propostas legislativas sobre o mesmo tema tramitando na Casa.

Em 12/11/2007, o Deputado Federal Regis de Oliveira (PSC/SP) apresentou o PL 2.412/07, dispondo sobre “a execução administrativa da Dívida Ativa da União, dos Estados, Municípios, de suas respectivas autarquias e fundações públicas”. A justificativa propõe uma mudança de paradigmas e a atribuição de parcela do poder de império do Estado a outro e determinado órgão de sua estrutura, fazendo-se a translação da competência do agente público dele hoje encarregado – o juiz – para um titular do órgão da Fazenda Pública, designado especificamente para essa atribuição e sujeito a todas as responsabilidades dela decorrentes.

Referido projeto de lei implica na larga desjudicialização do poder de império, e essa opção legislativa está estampada na ementa, projeto e justificativa. O mencionado Projeto de Lei, no entanto, foi apensado ao PL 5.447/19. Outros projetos foram apresentados, mas sem revelar claramente tal opção. O PL 5.080/09 não informa claramente em sua justificativa que o agente administrativo estaria habilitado a realizar constrição de bens, mas a leitura dos artigos denota a ampla desjudicialização proposta.

No final de 2004, um anteprojeto de lei relativo à execução fiscal, de autoria de uma comissão formada no âmbito do Conselho da Justiça Federal, sob coordenação do Ministro Teori Albino Zavascki, foi encaminhado ao então Ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos. O anteprojeto contava com 18 artigos que em seu conjunto formava uma proposta interessantíssima, aplaudida por muitos juristas, destacando-se Humberto Theodoro JúniorI e Artur César de SouzaII.

Segundo aquele anteprojeto, haveria integração da fase administrativa de cobrança do crédito público com a subsequente fase judicial, reservando-se ao exame e atuação do Poder Judiciário apenas as demandas que, sem solução extrajudicial, tivessem alguma base patrimonial comprovada para a execução forçada. Na fase administrativa deveria haver notificação ao devedor acerca da inscrição da dívida, quando então ocorreria a interrupção da prescrição.

Desobrigados de ajuizar execuções fiscais destinadas apenas a obstar a consumação da prescrição, os órgãos fazendários deveriam desviar sua atenção para a identificação do patrimônio penhorável do devedor, de forma a viabilizar, se for o caso, a execução forçada. Diante da exigência de que da petição inicial constasse, necessariamente, a indicação dos bens a serem penhorados, a esfera judicial somente seria chamada a atuar se houvesse utilidade, ou seja, se houvesse efetiva chance de êxito no recobro da dívida.

No entanto, tal anteprojeto sofreu profundas alterações idealizadas por vários grupos de trabalho do Poder Executivo, conforme se denota da justificativa, alcançando-se a redação que foi, então, apresentada na Câmara Federal em 20/04/2009 – hoje PL 5.080/09. Nessa mesma data o Poder Executivo apresentou outros dois projetos de lei na mesma Casa, ambos relacionados à execução fiscal – PL 5.081/09 e PL 5.082/09.

Sobre o PL 5.080/09 é importante registrar que a sua redação legislativa também implica ampla desjudicialização da execução. Adicionalmente ao quanto já mencionado, o projeto propôs a realização de atos de constrição patrimonial e avaliação de bens diretamente pela Administração Tributária, inclusive de valores depositados em contas bancárias via Banco Central. O ajuizamento da execução fiscal por parte da Fazenda Pública passaria a ter o requisito da efetiva constrição patrimonial “preparatória”. Vale ressaltar ainda a previsão da apresentação, no âmbito administrativo, da impugnação de pré-executividade, a ser julgada pela Fazenda Pública.

Apensados, todos esses projetos estão em tramitação, mas sem qualquer andamento relevante há quase uma década – de todo modo, entendeu-se relevante fazer o registro histórico da trajetória da desjudicialização da execução fiscal. Em razão da improvável chance de obterem sucesso, surgiu espaço para um novo projeto de lei na mesma linha dos anteriores, mas em trâmite no Senado Federal.

O PL 4.257/19 foi apresentado ao Senado em 06/08/2019, pelo Senador Antônio Anastasia, cuja finalidade é modificar “a Lei 6.830, de 22 de setembro de 1980, para instituir a execução fiscal administrativa e a arbitragem tributária, nas hipóteses que especifica”. Desde 28/10/2021, o PL está na Secretaria de Apoio à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, após recebimento do relatório do Senador Tasso Jereissati, com voto pela aprovação do projeto e pelo acatamento parcial das emendas oferecidas, nos termos do substitutivo apresentado. O substitutivo só melhor desenvolve o texto normativo, sem modificar sua essência.

Referido projeto, basicamente, prevê a possibilidade de realização de penhora e venda administrativa de imóveis e veículos para a assegurar o recobro de IPTU, ITR e IPVA, além da arbitragem – o que parece não fazer qualquer sentido na seara fiscal. Uma análise bastante concreta do referido projeto está disponível no site Conjur, por José Henrique Mouta Araújo e Marcelo Veiga Franco, em artigo denominado “A desjudicialização da execução fiscal: reflexões sobre o PL 6.204/19”.III

Apesar da autora defender a possibilidade da delegação do poder de império para um diferente agente de execução – nos termos do PL 6.204/19/SF, para créditos civis –, o que se questiona nos mencionados projetos é a independência e a imparcialidade do funcionário do fisco para a realização dos atos de constrição.

Parece difícil confiar na imparcialidade se o mesmo órgão que faz a inscrição e a extração da competente Certidão de Dívida Ativa é aquele que se pretende habilitar para a realização da execução administrativa, em ato contínuo à notificação para pagar, parcelar ou oferecer garantia. Caso o devedor não tome providências, a Fazenda Pública iniciará atos de constrição, conforme projetos em trâmite perante a Câmara dos Deputados Federais e PL 4.257/19 em trâmite no Senado Federal.

Aquele que exerce imparcialmente a jurisdição – o juiz – deve ser, nas palavras de Cassio Scarpinella Bueno, “um terceiro, totalmente estranho, totalmente indiferente à sorte do julgamento e ao destino de todos aqueles que, direta ou indiretamente, estejam envolvidos nele”.IVA mesma neutralidade é exigida na realização executiva.

A execução, conforme se tem defendido, não necessariamente precisa ser efetivada pelo juiz, mas por um terceiro imparcial, independente e equidistante de ambas as partes, garantindo-se assim que os atos de constrição sejam realizados de forma justa, honesta e destacada de qualquer interesse ou influência. Não se vislumbra nos projetos de lei de desjudicialização da execução fiscal esse distanciamento ou afastamento dos Procuradores da Fazenda dos interesses da causa.V

Além disso, não se pode concordar que as medidas propostas sejam efetivas. A atual estrutura organizacional e administrativa dos órgãos fazendários não consegue atender sequer as atividades de sua competência originária, quanto mais aquelas que pretende assumir. A deficiência que se verifica no trâmite das execuções fiscais – processos “parados” por falta de indicação de bens para penhora – é da própria Fazenda Pública e não do Poder Judiciário. Simples medidas adotadas pela administração pública poderiam agilizar o processo executivo fiscal, especialmente aquelas relacionadas à gestão adequada do seu banco de dados.VI

Como um bom exemplo a ser observado, com vistas na imparcialidade do agente de execução, descreve-se a execução administrativa sueca, alertando-se para as grandes alterações havidas diante da exigência da sociedade civil para com a total isenção da autoridade administrativa da Agência Tributária, que acabou por separar suas competências.

A atividade executiva na Suécia faz parte da administração pública. Historicamente, o Riksskatteverket (Conselho Tributário Nacional) era o órgão competente para a execução forçada nos assuntos públicos e privados (recuperação de crédito), mas contava com uma operação descentralizada em 10 autoridades executivas regionais. O Estado continua responsável pela execução de todos os créditos naquele país, mas houve importantes mudanças estruturais desse órgão nos últimos anos.

Em 2004, o Conselho Tributário Nacional deu espaço para a Agência Tributária, de âmbito nacional; em 2006, foi criado o Serviço de Execução de Dívidas, também com abrangência nacional, cujo oficial sênior é o kronofogde – agente de execução. Na sequência, em 2007, foram oficialmente separadas as competências desses órgãos, com fim único e exclusivo de garantir a neutralidade dos agentes.

As razões políticas dessas alterações são as seguintes: os créditos públicos e privados não eram tratados exatamente da mesma forma, uma vez que o agente de execução, em certa medida, também representava o Estado em relação aos créditos públicos. Relativamente a esses créditos, o kronofogde podia, por exemplo, distribuir um pedido de falência contra um devedor de impostos e ao mesmo tempo representar o Estado durante a tramitação desse processo; do mesmo modo, podia fazer acordos com o devedor e aceitar garantias de pagamento como representante do Estado.

A sociedade sueca entendeu que o agente de execução estava em situação de conflito de interesses: por um lado, o kronofogde deveria agir com imparcialidade em relação aos trâmites executivos (recuperação de impostos e outras dívidas públicas), e por outro lado, o kronofogde representava o próprio credor, ou seja, o Estado. Essa combinação de diferentes papéis passou a ser criticada especialmente porque as autoridades policiais também podem atuar na atividade executiva, caso resistida.

Nesse passo, nas eleições de 2006 o partido de oposição prometeu a total separação das funções da Agência Tributária, liberando-se o agente de execução do seu papel de representante do Estado, caso assumisse o poder. Imediatamente após o novo governo – não socialista – assumir, um Projeto de Lei foi apresentado:

Projeto de lei do governo 2006/07:99. Propõe-se que o Serviço de Execução de Dívidas seja totalmente independente e, desta forma, não mais subordinado à Agência do Tesouro para direção administrativa e controle de questões estratégicas. O objetivo é fortalecer a confiança na capacidade do Serviço de Execuções de Dívidas de agir imparcialmente na execução de seu trabalho.VII

Referido PL deu origem a 2 decretos que separaram as atividades de caráter fiscal e administrativo, de um lado, e executivo, de outro. O primeiro deles – Decreto (2007:780VIII) – fixou a competência da Agência Fiscal Suéca, que desde 01.1.2008 passou a administrar o pagamento de impostos, notificando o devedor para cumprimento voluntário dentro do prazo prescrito.

O segundo deles – Decreto (2007:781IX)fixou a competência do Serviço de Execução de Dívidas, que desde 1/1/2008 deixou de representar o Estado como credor. Caso não haja pagamento voluntário da dívida pública, a execução é transferida ao kronofogde, que pode cobrá-la juntamente com créditos privados. Frisa-se que os diferentes tipos de créditos – públicos e privados – são tratados de forma similar pela administração pública.

Os oficiais seniores do Serviço de Execução de Dívidas – kronofogde – possuem diploma em direito, um estágio jurídico de pelo menos dois anos e são funcionários públicos, ligados à administração pública. Nesse passo, as regras relativas à organização, disciplina, remuneração e responsabilidade dos agentes de execução são as mesmas que se aplicam aos funcionários da administração pública.

Em conclusão registra-se que a atividade executiva pode ser realizada por agentes delegados pelo Estado – que não o juiz –, desde haja a garantia da imparcialidade, o que não se vê nos projetos em tramitação. Observar o movimento da sociedade sueca por uma execução fiscal – e civil – com a observância da autonomia, independência e equidistância do agente de execução é muito salutar para direcionar a tramitação dos projetos de lei que se pretende levar a cabo no Brasil.

___________

I THEODORO JÚNIOR, Humberto. O anteprojeto de nova lei de execução fiscal. Revista de Processo. v. 30, n. 126, ago. 2005. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p.22-39.

II SOUZA, Artur César de. Análise da problemática jurídica dos novos anteprojetos de lei de execução fiscal: aspectos inovadores e controvertidos. Revista de Processo. v. 33, n. 166, dez. 2008. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p.85-117.

III ARAÚJO, José Henrique Mouta; FRANCO, Marcelo Veiga. A desjudicialização da execução fiscal: reflexões sobre o PL nº 4.257/2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-abr-09/araujo-franco-reflexoes-projeto-lei-42572019. Acesso em: 8 de ago de 2021

IV BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: teoria geral do direito processual civil, v.1. São Paulo: Saraiva, 2008. p.118.

V Mas pelo contrário, o que se percebe é a total “ausência de confiança de que a Administração Pública no Brasil seja capaz de implantar um sistema de fiscalização e apuração de débitos fiscais dotado da necessária impessoalidade e capaz de assegurar aos contribuintes e responsáveis, perante ela própria, o contraditório e a ampla defesa”. GRECO, Leonardo. As garantias fundamentais do processo na execução fiscal. In: LOPES, João Batista; CUNHA, Leonardo José Carneiro (Coord.). Execução civil (aspectos polêmicos). São Paulo: Dialética, 2005. p.250.

VI MAIA JÚNIOR, Mairan Gonçalves. Considerações críticas sobre o anteprojeto da lei de execução fiscal administrativa. Revista CEJ. v. 11, n. 38, jul-set. 2007. Brasília: CEJ, 2007. p.18-21.

VII SUÉCIA. En fristående kronofogdemyndighet m.m. Proposition 2006/07:99. Disponível em: http://www.riksdagen.se/sv/Dokument-Lagar/Forslag/Propositioner-och-skrivelser/En-fristaende-kronofog demyndig_GU0399/. Acesso em: 13 abr. 2021.

VIII Referido Decreto foi revogado pelo SFS 2017:154, que não alterou a essência da Agência Fiscal Suéca, mas apenas melhor definiu e organizou suas competências.

IX Referido Decreto foi revogado pelo SFS 2016:1333, que não alterou a essência do Serviço de Execução de Dívidas, mas apenas melhor definiu e organizou suas competências.

 

Flávia Pereira Ribeiro
Pós-doutora pela Universidade Nova de Lisboa. Doutora e mestre em Processo Civil pela PUC/SP. Especialista em Direito Imobiliário Empresarial pela Universidade Secovi/SP. Membro do IBDP, do CEAPRO e do IASP. Diretora Jurídica da ELENA S/A. Sócia do escritório Flávia Ribeiro Advocacia.

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