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O crime de contratação direta indevida e o bem jurídico

A realidade demonstra a gestão de contratação é complexa, de modo que uma interpretação restritiva do tipo penal é o melhor instrumento para evitar um excesso punitivo.

1/12/2021

O crime de contratação direta indevida e o bem jurídico.(Imagem: Divulgação/Migalhas)

A lei 14.133/21 introduziu o art. 337-E no Código Penal para sancionar a conduta de “Admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei” com penas de 4 a 8 anos de prisão e multa.

Antes, esse fato era previsto no art. 89 da lei 8.666/93 de forma semelhante. Mas, a nova lei tem o mérito de excluir do tipo a conduta de “deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade”, tendo em vista esse fato pode ser tratado de forma menos agressiva com os institutos do direito administrativo.

Entretanto, ainda é notável que o tipo criado pelo art. 337-E cause diversas dificuldades interpretativas sobretudo quanto ao alcance das condutas puníveis.

A redação do tipo é demasiadamente aberta ao ponto de abarcar condutas que não representam qualquer conflito com o objetivo esperado na realização de um procedimento licitatório: a seleção da proposta que gere o melhor resultado para Administração Pública na consecução dos seus legítimos interesses.

Por se tratar de norma penal em branco, é preciso recorrer ao artigo 74 da lei 14.133/21 e aos arts. 29 e 30 da lei 13.303/16 para encontrar as hipóteses em que são permitidas as contratações sem o prévio procedimento licitatório.

Nota-se, entretanto, que a permissão para contratar sem licitação comporta termos vagos que necessitam de avaliação do contratador, como “serviço técnico especializado” e “notória especialização”, por exemplo. Sendo assim, caso outro órgão entenda não estar configurado o “serviço técnico especializado” e “notória especialização”, haveria, assim, de subsumir a conduta ao fato típico previsto no art. 337-E do Código Penal.

De fato, a punição apenas pela divergência de interpretações, se o caso seria ou não elegível para uma contratação direta, não é suficiente para habilitar uma ação penal para apurar uma responsabilidade criminal. O administrador público precisa tomar decisões e, muitas vezes, escolhe estratégias que podem fugir da burocracia do procedimento licitatório, mas que, no contexto em que tomou a decisão, parecia ser a melhor coisa a ser feita para atender o interesse público.

Nesse passo, é preciso ter a referência do bem jurídico tutelado “já que a moderna ciência penal não pode prescindir de uma base empírica nem de um vínculo com a realidade que lhe propicia a referida noção. Também não pode renunciar a um dos poucos conceitos que lhe permitem a crítica do direito positivo.”

Na prática, contudo, tem sido uma tarefa árdua identificar o bem jurídico que se pretende tutelar. A doutrina defende que somente os bens jurídicos fundamentais devem ser objeto de proteção. Contudo, a imprecisão permanece. Em avanço, aponta como referência que apenas os bens fundamentais consagrados pela Constituição poderiam ser eleitos para constar em tipos penais para sancionar condutas que os causem prejuízos.

A partir daí já se tem a dúvida se o procedimento licitatório seria um bem jurídico fundamental cujo prejuízo mereceria ser sancionado através de uma privação de liberdade.

Por outro lado, a doutrina reconhece que o legislador poderá eleger como objeto de sanção penal condutas que sejam apenas violações morais que considera importante no momento do contexto histórico de sua criação. O poder de punir pode ser exercido pelo legislador mesmo quando as condutas não causarem um prejuízo material, segundo essa parte da doutrina.

De todo modo, a Constituição elege o procedimento licitatório como meio necessário para as contratações da administração pública no art. 37, XXI. O legislador ordinário editou leis que estipulam as regras a serem seguidas para contratação e preveem as hipóteses excepcionais para contratação direta, como se nota, por exemplo, nas leis 8.666/93, 13.303/16 e 14.133/21.

Em que pese essa previsão constitucional, “há dificuldades em vislumbrar, no tipo aqui examinado (art. 337-E), uma relação de ofensividade com a administração pública tomada como bem jurídico-penal nas condições já expostas em todas as condutas por si abarcadas.”

Como se nota, a tese do bem jurídico tutelado não é suficiente para limitar o poder de punir do legislador, mas pode servir de referência para o julgador no momento de avaliar se a conduta causou algum prejuízo ao bem jurídico que justifique habilitar o poder de punir estatal.

Nesse contexto, cabe observar que a “licitação não é um fim em si mesmo, mas um instrumento apropriado para o atingimento de certas finalidades. O mero cumprimento das formalidades licitatórias não satisfaz, de modo automático, os interesses protegidos pelo Direito. Portanto, é incorreto transformar a licitação numa espécie de solenidade litúrgica, ignorando sua natureza teleológica.”

Isso porque as contratações se fundamentam na promoção do interesse público para garantir a liberdade, promover a igualdade, a dignidade entre outros bens e direitos guardados pela Constituição.

Por sua vez, o art. 11, I, da lei 14.133/21 estabelece os objetivos da licitação são selecionar a proposta que possa gerar o melhor resultado para Administração Pública, “assegurar tratamento isonômico entre os licitantes, bem como a justa competição” e evitar sobrepreço, superfaturamento e preço inexequível, assim como “incentivar a inovação e o desenvolvimento nacional sustentável”.

O objetivo “incentivar a inovação e o desenvolvimento nacional sustentável” é demasiado extenso e a experiência demonstra que sua execução sempre fica ao sabor da conjuntura política do momento de modo que essa insegurança não permite uma valoração a ponto de justificar a habilitação do poder de punir estatal.

Já evitar o sobrepreço, preço inexequível e o superfaturamento são aspectos objetivos apurados pelos Tribunais de Contas, sendo possível aferir com mais objetividade e, portanto, parece apto a permitir uma avaliação de ofensa ao bem jurídico.

Do mesmo modo, haverá uma ofensa ao bem jurídico quando a contratação direta fora das hipóteses legais deixar de atingir o objetivo de selecionar a proposta que possa gerar o melhor resultado para Administração Pública.

Dúvida permanece quanto à violação da isonomia quando o objetivo para a Administração Pública for atingido. Isso porque a licitação, nesse aspecto, visa evitar o direcionamento para alguns interessados, abrindo a possibilidade de contratação para todos. Contudo, a isonomia, também, não é um valor absoluto e deve ser avaliado se no caso o interesse da Administração Pública foi observado e a isonomia não foi afastada por mero interesse pessoal do administrador.

Uma vez avaliado que o bem jurídico sofreu prejuízo, passa-se a pesquisar se houve dolo na conduta imputado ao agente.

A jurisprudência consolidou o entendimento de que somente haverá crime de contratação direta indevida quando for praticado com dolo específico de causar dano ao erário e resultar prejuízo material.

Percorrer esse caminho é necessário porque a realidade demonstra a gestão de contratação é complexa, “ensejando erros e acertos por parte dos agentes públicos, inclusive pelos mais habilitados juridicamente”, de modo que uma interpretação restritiva do tipo penal é o melhor instrumento para evitar um excesso punitivo.

Uma vez presentes a violação ao bem jurídico, o dolo específico de causar dano e o efetivo prejuízo à Administração Pública estará habilitado o poder de punir Estatal.

Do contrário, estaria sendo punida um fato que poderia ser tratado pelos institutos do direito administrativo e da legislação trabalhista.

Assim, reserva-se a sanção penal apenas aos casos graves de contratação direta fora das hipóteses legais em homenagem ao princípio da última ratio.

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Anderson de Souza Reis
Anderson de Souza Reis é advogado da Petrobras. Pós-graduado em Direito e Administração Pública pela Universidade Gama Filho.

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