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Cultura paperless e as modalidades de assinatura eletrônica válidas no Brasil

A busca por agilidade e simplificação nas relações privadas, com a substituição do papel por alternativas mais dinâmicas e sustentáveis, levanta questionamentos quanto às modalidades de assinatura eletrônica válidas no Brasil.

30/11/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A popularização da tecnologia da informação e da comunicação eletrônica, que ocorreu nos últimos vinte anos em escala e velocidade nunca antes vista, tornou corriqueiro o acesso a computadores, smartphones, à internet e ao compartilhamento instantâneo de arquivos, seja nas relações pessoais, nas organizações privadas de todos os portes e até mesmo nos entes públicos.

Essa popularização faz parte da 4ª Revolução Industrial ou Indústria 4.0, em que as inovações tecnológicas evoluem da digitalização para a inteligência artificial, criando um mundo em que o virtual e o físico se entrelaçam e cooperam entre si, em que os domínios físicos, digitais e biológicos passam a se relacionar e se fundir1, criando a necessidade de novos diálogos e reflexões sobre essas novas interseções e seus desafios.

Além disso, a Indústria 4.0 gera novas possibilidades de arranjos organizacionais e reacende ideias e propostas que já existiam, mas que não puderam ser plenamente praticadas, seja por falta de evolução tecnológica ou dificuldade de assimilação cultural.

Uma dessas propostas é a de uma cultura organizacional paperless, que tem como objetivo a redução (ou a eliminação) da utilização de papel por meio da tecnologia com a finalidade de melhorar a qualidade e a acessibilidade a serviços, melhorar a experiência do cliente, reduzir custos e promover sustentabilidade ambiental2.

O paperless office, também conhecido em um contexto mais amplo como e-administration ou e-government, embora já tenha sido almejado e defendido no começo da era digital, nos anos 1970, e até mesmo no século XIX, quando foram inventados meios de comunicação como o fonógrafo e o telefone, ganha novos contornos e impulsos após a virada do milênio, com o aprimoramento de tecnologias que se aproximam cada vez mais da usabilidade do papel, com melhoria na acessibilidade, portabilidade e na capacidade da bateria dos aparelhos eletrônicos que buscam substituir os papeis3.

Nesse contexto, as contratações por meio eletrônico tornam-se cada vez mais comuns e já não podem ser consideradas uma novidade. A sua aceitação, pelo menos da modalidade digital (que exige senha criptográfica) já era defendida no Brasil desde o final dos anos 19904.

Contudo, conforme essas contratações se tornam cada vez mais comuns, a dúvida sobre a possibilidade de formalização de instrumentos contratuais mediante assinaturas digitais e eletrônicas percorre a rotina de um número cada vez maior de empresas e advogados.

Dentre os questionamentos, os que se sobressaem geralmente dizem respeito aos tipos de assinaturas existentes, às disposições legais quanto à validade e sobre a sua recepção pela jurisprudência dos nossos tribunais.

A assinatura eletrônica pode ocorrer em diferentes modalidades, sendo que o Regulamento 910/14 do Parlamento Europeu e do Conselho da União Europeia5, que buscou regular e fortalecer a confiança nas transações eletrônicas, classificou-as da seguinte forma: 

Todos os membros da União Europeia estão sujeitos ao Regulamento 910/14 e buscaram se adequar às disposições6, inclusive a Itália, pioneira na regulação da matéria, que já possuía, desde 1997, decreto que definia o conceito de assinatura digital como o resultado de um procedimento informático baseado em um sistema de chaves criptográficas que permite a manifestação de vontade e a sua conferência pelo destinatário com relação à origem e integridade7, e passou a utilizar8 a conceituação disponibilizada pela União Europeia.

Nos Estados Unidos, a legislação dispõe de forma bem ampla, desde o ano 2000, que o termo “assinatura eletrônica” significa qualquer símbolo, processo ou som anexado ou logicamente associado a um contrato ou registro, desde que adotado e/ou executado por uma pessoa com a intenção de assinar, de manifestar a sua vontade9.

No Brasil, a primeira norma que tratou expressamente do tema foi a Medida Provisória (MP) 2.200, de 24 de agosto de 2001, reconhecendo a assinatura digital, isto é, aquela produzida com a utilização de processo de certificação reconhecido e gerenciado pela Autoridade Certificadora Raiz, responsável pela emissão e gestão de certificados digitais e que foi instituída pela MP.

A MP, além de instituir presunção de veracidade da assinatura digital, equiparando-a à assinatura tradicional prevista no CC (art. 10, §1º, MP 2.200/01), reconheceu a possibilidade de utilização de outras modalidades de assinatura eletrônica, ao dispor, no seu art. 10, §2º, que a disposição acerca da assinatura digital com certificado “não obsta a utilização de outro meio de comprovação da autoria e integridade de documentos em forma eletrônica, inclusive os que utilizem certificados não emitidos pela ICP-Brasil, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento” (o que não poderia ser diferente, já que o art. 369, do CPC, reconhece o direito de se empregar todos os meios legais para provar a verdade dos fatos, o que vale para a comprovação da integridade e da autoria de qualquer modalidade de assinatura eletrônica).

A segunda norma brasileira que trata da matéria é a lei 14.603, de 23 de setembro de 2020, que conceitua assinatura eletrônica no seu art. 3º, inciso II, como “os dados em formato eletrônico que se ligam ou estão logicamente associados a outros dados em formato eletrônico e que são utilizados pelo signatário para assinar”.

A legislação foi claramente inspirada no Regulamento 910/2014 da União Europeia, utilizando, no art. 4º, exatamente os mesmos critérios de classificação das assinaturas eletrônicas utilizado pela norma europeia:

A lei designa no §3º do art. 4º a assinatura eletrônica qualificada como a que possui “nível mais elevado de confiabilidade”. Interpretamos que a intenção do legislador seria, na realidade, reafirmar o mesmo que dispõe o art. 10, §1º, da MP 2.200/01 acima mencionado (presunção de veracidade dos documentos assinados com assinatura digital/assinatura eletrônica qualificada), isto é, equipará-la à assinatura tradicional para efeitos de prova, nos termos do art. 219 e 221, do CC.

Embora as regras de uso das assinaturas eletrônicas contidas na lei 14.603/20 não se destinem às relações privadas (art. 2º, parágrafo único), a legislação é um importante marco porque define quais assinaturas serão aceitas em diversos tipos de interação com o poder público e porque a conceituação e classificação de assinaturas que ela empreende servirá para qualquer tipo de interação e contratação, inclusive as privadas.

Sua relevância está em trazer concretude à possibilidade de aceitação de contratos eletrônicos e das assinaturas eletrônicas como meio de prova, o que já se cogitava com fundamento no CC e no CPC.

Isso porque o CC brasileiro prestigia o princípio da liberdade das formas, ao dispor, em seu art. 107, que a validade da declaração de vontade não depende de forma especial, salvo quando a lei expressamente a exigir, enquanto o CPC prevê, no art. 369, o princípio da atipicidade das provas, permitindo que quaisquer meios de provas sejam utilizados, desde que sejam legais e moralmente legítimos,  o que é o caso de todas as modalidades de assinaturas eletrônicas, desde que não sejam modificáveis, possibilitem a identificação de autenticidade da autoria e a declaração de vontade do signatário.

O CC também já possuía previsão de que o negócio jurídico se prova mediante documento, que, uma vez assinado, presume-se verdadeiro em relação aos signatários (art. 212 e 219).

Com a MP 2.200/01 e principalmente com a lei 14.603/20, integram-se ao conceito de “documento assinado” as assinaturas eletrônicas em suas diferentes modalidades, desde que preservadas as características necessárias para que o documento tenha força probatória: autoria identificável (autenticidade) e impossibilidade de alteração (integridade)10.

Assim, seja pelos princípios da liberdade das formas e atipicidade das provas ou pela bem-vinda introdução das classificações promovida pela lei 14.603/20, é possível a utilização de assinatura eletrônica para celebração de contratos e para manifestações de vontade em geral no Brasil.

Na relação com entes públicos, deverão ser observados os critérios contidos na lei 14.603/20. Já nas relações privadas, poderá ser utilizada a modalidade de assinatura que melhor convier aos contratantes, sendo certo que a assinatura eletrônica qualificada (mediante certificado) e a assinatura eletrônica avançada conferem maior grau de segurança jurídica, já que possibilitam a verificação imediata da autenticidade e da integridade do documento, afastando eventual oposição pelos signatários.

O STJ já possui precedente a respeito da validade da assinatura eletrônica qualificada (com certificado digital), conferindo a qualidade de título executivo extrajudicial a contrato eletrônico de mútuo celebrado sem a assinatura de duas testemunhas, mas com assinatura digital. Trata-se do Recurso Especial 1.495.920/DF, cujo acórdão foi publicado em 7/6/18.

O ministro Paulo de Tarso Sanseverino afirmou a possibilidade de “reconhecimento da executividade de determinados títulos (contratos eletrônicos) quando atendidos especiais requisitos, em face da nova realidade comercial com o intenso intercâmbio de bens e serviços em sede virtual”, afirmando ainda que “nem o Código Civil, nem o Código de Processo Civil [...] mostraram-se permeáveis à realidade negocial vigente e, especialmente,  à  revolução  tecnológica que tem sido vivida no que toca aos modernos meios de celebração de negócios, que deixaram de se servir unicamente do papel, passando a se consubstanciar em meio eletrônico”.

O ministro reconheceu ainda que “a assinatura digital de contrato eletrônico tem a vocação de certificar, através de terceiro desinteressado (autoridade certificadora), que determinado usuário de certa assinatura a utilizara e, assim, está efetivamente a firmar o documento eletrônico e a garantir serem os mesmos os dados do documento assinado que estão a ser sigilosamente enviados. [...] Em face destes novos instrumentos de verificação de autenticidade e presencialidade do contratante, possível o reconhecimento da executividade dos contratos eletrônicos”.

Com relação às outras modalidades de assinaturas, ainda não se encontra, na jurisprudência do STJ, decisões a respeito da validade das assinaturas eletrônicas sem certificação digital, mas os tribunais estaduais já começam a enfrentar tais questões, seja quanto à assinatura eletrônica simples ou avançada.

O TJ/SP, em acórdão publicado no dia 25/10/21 nos autos do processo 1001028-98.2021.8.26.0438, considerou “irrelevante o fato do instrumento não conter a assinatura manual da recorrente, pois se trata de contrato virtual assinado digitalmente e validado após o envio pela autora de documentos e fotografia tirada no momento da contratação”, mantendo a sentença que reconheceu a validade de contrato eletrônico.

A decisão é importante, pois reconheceu a validade de assinatura eletrônica simples, que estava acompanhada de foto “selfie” da contratante, considerada como elemento de prova da autenticidade da assinatura, demonstrando, na prática, que assinatura eletrônica pode ser qualquer tipo de dado que permita identificar e vincular o seu signatário à declaração de vontade emitida.

No TJ/MG também já existem decisões a respeito do tema. Acórdãos publicados em 16/7/20 e 9/6/21, nos processos 5001963-67.2018.8.13.0687 e 5004100-95.2018.8.13.0016, respectivamente, assinalam:

“A contratação por meio eletrônico é realizada com a utilização de senha pessoal e, por vezes, também cartão pessoal, sendo certo que aquela, por ser pessoal e intransferível, substitui a assinatura de seu titular, exteriorizando sua manifestação de vontade, já que somente ele tem conhecimento dela. Por isso sua guarda é de tão relevante importância, cabendo-lhe por ela zelar, sob pena de assumir as decorrências de sua conduta negligente. A senha pessoal trata-se da identificação da parte autora no mundo virtual, fazendo, assim, às vezes da assinatura.”

“A autora jungiu contrato assinado no sistema pela internet, através de senha e login, pessoal e intransferível do aluno, cujo objeto seria a prestação de serviços educacionais. [...] Trata-se de sistema de renovação eletrônica no sistema do aluno que, a meu ver, é típica das contratações atuais e admissível como prova considerando, sobretudo, que inconteste a relação jurídica existente. [...]. A renovação do contrato de prestação de serviços educacionais de forma eletrônica por meio de aposição de assinatura eletrônica e senha no sistema do aluno revela-se hígida.”

Portanto, nota-se que a possibilidade de assinatura eletrônica, em todas as modalidades, que já era defensável com fundamento no CC e no CPC (e, na modalidade digital, conforme MP 2.200/01), é reforçada com a introdução da lei 14.603/20. Essa é uma realidade que também vem sendo reconhecida pela nossa jurisprudência e acredita-se que logo o STJ será instado a se pronunciar em relação às outras modalidades de assinatura eletrônica, como já tem ocorrido com os tribunais estaduais.

A cultura do paperless office, que, com o apoio da tecnologia, tem proporcionado relações comerciais e contratuais cada vez mais dinâmicas, simples, econômicas, virtuais e sustentáveis, passa a encontrar respaldo jurídico na legislação brasileira e na jurisprudência dos nossos tribunais, o que certamente impulsiona um ambiente de negócios favorável ao desenvolvimento econômico.

_________________

1 SCHWAB, Klaus. The Fourth Industrial Revolution. Switzerland: World Economic Forum, 2016.

2 ALAM, Shamsher, et al. Role of paperless office culture in the organisation. Cosmos – An International Journal of Management. Vol 9. Jul-Dez 2019.

3 HARPER, Richard; SELLEN, Abigail. The Myth of the Paperless Office. Cambrige: MIT Press, 2003. p. 08.

4 MARCACINI, Augusto Tavares Rosa. O documento eletrônico como meio de prova. Revista de Direito Imobiliário. Vol. 47/1999. p. 70-102.

5 Regulamento (UE) 910/2014 Do Parlamento Europeu e do Conselho. Jornal Oficial da União Europeia. Disponível aqui. Importante observar que a União Europeia já possuía diretiva de 1999 que assinatura eletrônica como qualquer método de assinatura de um documento eletrônico com o fim de identificar o autor e assinatura digital como conceito mais restrito como modalidade que usa criptografia de chave pública para acrescentar à transmissão de dados uma espécie de timbre, marca, permitindo ao receptor legitimar ao emissor e comprovar que está protegida a integridade dos dados enviados, conforme ressaltado por Agostinho Toffoli Tavolaro em: “Assinatura Digital – Medida Provisória 2.200, DE 28.06.2001”, Revista Tributária e de Finanças Públicas, vol. 41/2001, p. 229-234.

6 São exemplos: Espanha, Portugal e Itália, que possuem nos sites oficiais de seus governos instruções relativas à assinatura eletrônica e remetem ao Regulamento da União Europeia. Cf.: Disponíveis aqui 1 e 2

7 Art. 1.1, Decreto del Presidente della Repubblica 10 novembre 1997, n. 513. Disponível aqui.

8 Disponível aqui.

9 Electronic Signatures in Global And National Commerce Act. Public Law 106–229—June 30, 2000. Section 106, (5). Disponível aqui

10 MARCACINI, Augusto Tavares Rosa. O documento eletrônico como meio de prova. Revista de Direito Imobiliário. Vol. 47/1999. p. 533.

Iago Batista
Coordenador Jurídico na Unidas, Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais e LL.M. em Direito Empresarial pelo IBMEC.

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