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Solicitação de comprovação de vacinação pelo Empregador: Como conciliar liberdade individual e interesse coletivo?

O Poder Público vem adotando diversas restrições, medidas sanitárias e de saúde pública, visando combater e mitigar os riscos existentes diante da pandemia da covid-19.

25/11/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

As questões envolvendo a obrigatoriedade de vacinação contra a covid-19 suscitam  intensos debates em várias esferas, inclusive em âmbito legal, no que tange à liberdade individual versus interesse coletivo, bem como quanto às relações de trabalho. Um dos pontos questionados refere-se à legalidade de o Empregador exigir o comprovante de vacinação dos seus empregados, e, em sendo válida tal exigência, quais seriam os procedimentos cabíveis em relação aos empregados não vacinados. 

O Poder Público vem adotando diversas restrições, medidas sanitárias e de saúde pública, visando combater e mitigar os riscos existentes diante da pandemia da covid-19. Uma das providências adotadas contra a covid-19 é a realização de campanha pública de vacinação da população, em todo o território nacional, materializada na lei 13.979/201, que prevê expressamente a possibilidade de vacinação compulsória da população2.

Outra diretriz relevante sobre vacinação no ambiente de trabalho é a Nota Técnica do GT covid-19 05/21, de 04/11/20213, que recomenda aos Empregadores em geral e à administração pública, que:

"1. POR MEIO DE PROGRAMAS DE GESTÃO DE SAÚDE E SEGURANÇA DO TRABALHO, regulamento ou ordem de serviço em matéria de saúde e segurança do trabalho, procedam à exigência da comprovação de vacinação de seus trabalhadores e trabalhadoras (observados o esquema vacinal aplicável e o cronograma vigente) e de quaisquer outras pessoas (como prestadores de serviços, estagiários etc.), como condição para ingresso no meio ambiente laboral, ressalvados os casos em que a recusa do trabalhador seja devidamente justificada, mediante declaração médica fundamentada em contraindicação vacinal descrita na bula do imunizante.

(...)

6. RESGUARDEM o direito à saúde e a vida dos trabalhadores e trabalhadoras no local de trabalho, para que não sejam indevidamente expostos ao contágio por intermédio de pessoas não vacinadas, nos termos do artigo 483, "c", da CLT, o qual, em sua axiologia, exige que o empregador se abstenha de expor trabalhadores a "perigo manifesto de mal considerável". (grifou-se).

Por outro turno, recentemente foi editada a controversa Portaria 620, de 01/11/2021, do ministério do Trabalho e Previdência Social (MTPS), que, resumidamente:

  1. veda a exigência pelo Empregador, entre outros documentos, do comprovante de vacinação para a contratação e/ou manutenção de emprego;
  2. considera discriminatória a exigência de tal comprovante em processos seletivos, bem como demissões motivadas por recusa de apresentação do comprovante vacinal pelo empregado;
  3. estabelece que os Empregadores deverão orientar e estabelecer protocolos sobre as medidas necessárias à prevenção, controle e mitigação dos riscos de transmissão da covid-19 nos ambientes de trabalho, incluindo o respeito à política nacional de vacinação; e poderão estabelecer políticas de incentivo à vacinação de seus trabalhadores;
  4. em seu art. 3º, confere ao Empregador, visando preservar as condições sanitárias do ambiente de trabalho, a prerrogativa de oferecer aos trabalhadores a testagem periódica que comprove a não contaminação pela covid-19 – e, neste caso, o empregado ficaria obrigado a realizar a testagem ou a comprovar a vacinação:

Como se sabe, alguns pontos da Portaria MTPS 620/21 foram questionados através das Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs) 898, 900, 901 e 905, ajuizadas por partidos políticos. Dada a relevância e urgência da questão, logo veio o pronunciamento da Corte Constitucional, tendo o Ministro Relator Luis Roberto Barroso, em recente decisão4 proferida em sede de Medida Cautelar nos autos da ADPF 898, determinado a suspensão dos dispositivos impugnados (art. 1º, caput e §§ 1º e 2º, o art. 3, caput, e art. 4º, caput , incs. I e II, da referida Portaria MTPS 620/2021), ressalvando que a testagem periódica só deveria ser admitida, "quanto às pessoas que têm expressa contraindicação médica, fundada no Plano Nacional de Vacinação contra covid-19 ou em consenso científico".

Na fundamentação do decisum, o ministro Relator considerou que a Portaria não poderia imputar ao Empregador a obrigação de custear testagem compulsória para os empregados que optaram por não se vacinar; e nem poderia obrigar o Empregador a ter de criar estrutura para exercer controle sobre validade e regularidade de tal testagem – para o ministro, tais obrigações só poderiam ser criadas por Lei Formal e não por mera Portaria, o que contrariaria o art. 5º, II, da Constituição5.

Além disso, considerou o ministro Relator que a possibilidade de extinção imotivada do contrato de trabalho é direito potestativo do Empregador, desde que ele indenize o empregado nos termos da lei, e que a atividade empresarial se sujeita à livre iniciativa e liberdade de contratar, nos termos dos arts. 7º, II, e 170, ambos da Constituição, os quais não podem ser afastados por dispositivos de Portaria, que é ato infralegal.

Para o ministro, a exigência de vacinação contra a covid-19 não seria critério discriminatório ou desproporcional do Empregador, seja para contratação, seja para extinção de contratos de trabalho, pois isto interfere sobre o direito à saúde ou vida dos demais empregados do Empregador ou de terceiros. Lembrou ainda que o STF já havia reconhecido a legitimidade da vacinação compulsória por meio da adoção de medidas indutivas indiretas, como restrição de atividades e de acesso a estabelecimentos, (afastando apenas a possibilidade de vacinação com o uso da força), sob o entendimento que os direitos individuais deveriam ceder diante do interesse da coletividade como um todo no sentido da proteção ao direito à vida e à saúde.

Nesta medida, diante da decisão Cautelar proferida pelo ministro Luis Roberto Barroso na ADPF 898, até o momento6 infere-se, salvo melhor juízo, que:  (i) é possível a demissão sem justa causa – mas como última e excepcional medida a ser tomada pelo Empregador, que deve estimular a vacinação de seu corpo funcional contra a covid-19, como medida de proteção à saúde e à vida de seus trabalhadores; e (ii) a testagem periódica feita pelo Empregador quanto aos "não vacinados" só será possível "quanto às pessoas que têm expressa contraindicação médica, fundada no Plano Nacional de Vacinação contra covid-19 ou em consenso científico" – cabendo aos "não vacinados" demonstrar tal situação. 

Cumpre destacar que diversas Empresas, justamente em virtude da pandemia covid-19, vêm adotando regime de Teletrabalho (expressamente previsto na legislação trabalhista, a teor do art. 6º e § único c/c arts 75-A até 75-E da CLT) ou espécie de regime "híbrido", em que o trabalho é realizado parte em regime presencial e parte em teletrabalho.  Neste contexto, quando cabível diante da atividade exercida e em última medida antes de encerramento do contrato de trabalho, quanto aos empregados que se recusarem a vacinar ou a fornecer o comprovante de vacinação, o Empregador poderia solicitar, alternativamente: que passem a exercer suas atividades laborais em regime de teletrabalho ou, caso se enquadrem nas situações que autorizam a testagem periódica, nos termos fixados pelo STF, que realizem periodicamente o "exame de covid" para que continuem trabalhando presencialmente.

Na hipótese de o empregado se recusar a comprovar a vacinação e a realização periódica do "exame de covid" para ingresso e realização de trabalho presencial nas dependências do Empregador, este poderia proibir o seu ingresso, desde que isso seja feito de forma reservada e não vexatória, igualmente preservando a intimidade do empregado, e recomendando ao empregado nesta situação que exerça as suas atividades em regime de teletrabalho, desde que possível diante da atividade exercida. Demonstrado que o Empregador se cercou de tais cuidados, prestando previamente todos os esclarecimentos e alternativas aplicáveis, e mesmo assim houve recusa do empregado, considera-se, salvo melhor juízo, que não haveria impedimento para o exercício, pelo Empregador, do direito potestativo de rescisão do contrato de trabalho.

Em casos de conflitos entre os interesses individuais e coletivos, deve prevalecer este último, não sendo possível admitir a prevalência do interesse individual sobre o coletivo, fato este ratificado pela jurisprudência em julgados sobre diversos temas, mormente nas decisões envolvendo a pandemia da covid-19 emanadas pelo STF. Nesse sentido, qualquer medida que vise a proteção de interesses coletivos é legitimada, se devidamente fundamentada. Em suma, a liberdade individual não pode colocar em risco a saúde da coletividade.

Registre-se que as considerações ora apresentadas não pretendem esgotar o assunto, mas sim contribuir para o instigante debate que envolve as formas de mitigação da pandemia de covid-19 nas relações de emprego e os meios de conciliar as liberdades individuais e os interesses coletivos, ainda mais envolvendo questões de saúde pública e proteção ao trabalhador.

----------

1- Segue a transcrição ao art. 3º:

Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas:

(...)

III - determinação de realização compulsória de:

  1. exames médicos;
  2. testes laboratoriais;
  3. coleta de amostras clínicas;
  4. vacinação e outras medidas profiláticas;

(...)

§ 4º As pessoas deverão sujeitar-se ao cumprimento das medidas previstas neste artigo, e o descumprimento delas acarretará responsabilização, nos termos previstos em lei." (grifou-se)

2- O STF, em sede de Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIns 6586 e 6587), decidiu pela constitucionalidade da vacinação compulsória estabelecida pela lei 13.979/20, asseverando que tal compulsoriedade não significa vacinação forçada (sendo assim facultada a recusa do usuário), podendo, contudo, ser implementada por meio de medidas indiretas, como a restrição ao exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares, medidas estas que podem ser adotadas pela União, Estados, Municípios e Distrito Federal.

3- Disponível em aqui.

4- O decisum foi proferido em 12/11/2021 e publicado no primeiro dia útil seguinte, em 16/11/2021.

5- Dado que ninguém o obrigado a fazer o deixar de fazer nada senão em virtude de lei, como expresso em tal dispositivo constitucional.

6- Conforme consulta ao sistema de acompanhamento processual do STF, o julgamento virtual das ADPFs está previsto para 26/11/2021 a 03/12/2021.

Danielle Fernandes de Oliveira
Pós-graduada em Direito do Estado e da Regulação pela FGV e em Direito Processual Civil pela PUC-Rio, e advogada de Entidade Fechada de Previdência Complementar, estando, atualmente, no Serpros - Fundo Multipatrocinado.

Renata Lourenço F. Santos
Mestre em direito pela Uerj, pós-graduada em Direito Previdenciário pelo Ceped-Uerj, advogada de Entidade Fechada de Previdência Complementar, estando, atualmente, no Serpros - Fundo Multipatrocinado.

Pedro Linhares Della Nina
Pós-graduado em Direito Empresarial e em Litigation pela FGV, mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Autónoma de Lisboa–UAL, doutorando pela própria UAL e advogado de Entidade Fechada de Previdência Complementar, estando, atualmente, no Serpros – Fundo Multipatrocinado.

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