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Pagamento devido ao contratado nos contratos administrativos: o grande (ou o maior) retrocesso da Nova Lei de Licitações

Quando a Administração Pública efetua pagamentos inobservando esse limite, o equilíbrio econômico-financeiro da proposta que originou a contratação passa a ser afetado.

18/11/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A Nova Lei de Licitações e Contratos (NLLC) trouxe incontáveis evoluções nos processos de contratações públicas e, embora permita grandes flexibilizações em relação ao modelo tradicional da lei 8.666/93, incorreu em omissão inaceitável ao deixar de estabelecer o prazo máximo de vencimento da obrigação de efetuar os pagamentos devidos ao particular contratado.

A tão criticada lei 8.666/93 estabelece em seu art. 40, XIV, "a", que, o edital licitatório (e, portanto, o próprio contrato administrativo), deverá prever "prazo de pagamento não superior a trinta dias, contado a partir da data final do período de adimplemento de cada parcela". Destacado.

Para além de fixar o prazo máximo de vencimento da obrigação de pagamento (em até 30 dias), o dispositivo traduz a impossibilidade de computá-lo a partir da data da emissão ou do protocolo da fatura, da conclusão da medição, certificação, ou de qualquer outro evento que não seja o adimplemento propriamente dito da parcela devida pelo contratado (entrega do bem, execução do serviço ou da etapa da obra prevista no cronograma). 

Contudo, a despeito da clareza da lei 8.666/93, que estipula o vencimento da obrigação de pagamento a partir do adimplemento do contratado, observamos ao longo dos seus quase 30 anos de vigência, que corriqueiramente a Administração Pública efetua seus pagamentos com atrasos de 4, 5, 6 meses ou mais, sem qualquer espécie de atualização monetária. 

Para fundamentar esse alvedrio, alega-se que a contagem do prazo máximo de 30 dias, previsto em seu art. 40, XIV, "a", dá-se a partir da medição ou de eventos outros - muitos deles até definidos contratualmente - quando, nem pela interpretação gramatical, nem pela interpretação finalística, caberia tamanha incongruência.

A exigência do prazo de pagamento não superior a trinta dias do adimplemento do particular parte do pressuposto de que os ônus assumidos por este também ocorrem em igual periodicidade: despesas de aluguel, salários, luz, água, etc, possuem vencimento mensal, e, portanto, nunca superior a 30 dias. De modo que, quando a Administração Pública efetua pagamentos inobservando esse limite, o equilíbrio econômico-financeiro da proposta que originou a contratação passa a ser afetado. 

Nessa situação, as empresas que recorrem ao Poder Judiciário encontram amparo para obter o reconhecimento da nulidade de cláusulas contratuais que contrariam o citado dispositivo legal, e o direito à correção monetária e aos juros de mora sobre os pagamentos efetuados com prazo superior a 30 dias do efetivo adimplemento da parcela contratual.

ADMINISTRATIVO. PROCESSO CIVIL. CONTRATO. REALIZAÇÃO DE OBRA. DER/SC. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. INEXISTÊNCIA. TERMO INICIAL DA CORREÇÃO MONETÁRIA. PREVISÃO CONTRATUAL, OBSERVADO LIMITE DO ART.40 DA LEI 8.666/93. JUROS DE MORA. TERMO INICIAL. DATA DO INADIMPLEMENTO. ART. 397 DO CCB. PRECEDENTES DO STJ. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. REVISÃO. 1. Inexistente a alegada violação do art. 535 do CPC, pois a prestação jurisdicional foi dada na medida da pretensão deduzida, como se depreende da análise do acórdão recorrido. 2. O art. 40, inciso XIV, alínea "a", da lei 8.666/93 determina que o "prazo de pagamento não pode ser superior a trinta dias, contado a partir da data final do período de adimplemento de cada parcela". 3. O acórdão recorrido consignou que o prazo para pagamento dos serviços prestados se iniciaria a partir da apresentação das faturas. 4. Para fins de correção monetária, deve ser considerada não escrita a cláusula que estabelece prazo para pagamento a data da "apresentação das futuras" (REsp 1.079.522/SC, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 25/11/2008, DJe 17/12/2008). 5. (...) Recurso especial provido. (REsp 1466703/SC, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 12/02/2015, DJe 20/02/2015). Destacado.

APELAÇÕES CÍVEIS E REEXAME NECESSÁRIO. AÇÃO ANULATÓRIA DE CLÁUSULA CONTRATUAL. CONTRATO ADMINISTRATIVO FIRMADO COM O DEINFRA. PROCEDÊNCIA NA ORIGEM. INSURGÊNCIA DE AMBAS AS PARTES.  RECURSO DA RÉ. REPRODUÇÃO IPSIS VERBIS DA TESE LANÇADA NA CONTESTAÇÃO. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO ESPECÍFICA. OFENSA AO PRINCÍPIO DA DIALETICIDADE RECURSAL.  RECURSO NÃO CONHECIDO. RECURSO DA AUTORA. PRETENSÃO DE JUROS E CORREÇÃO MONETÁRIA - CONDENAÇÃO PELA APLICAÇÃO DO IPCA-E - TEMAS 810 DO STF E 905 DO STJ - DECISÃO DO STF SUSPENDENDO OS EFEITOS DA SUA PRÓPRIA DELIBERAÇÃO. APLICAÇÃO DA TR ENQUANTO NÃO JULGADO DEFINITIVAMENTE O TEMA. JUROS DE MORA INCIDEM DE ACORDO COM OS ÍNDICES DA CADERNETA DE POUPANÇA. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. REMESSA NECESSÁRIA. CLÁUSULA CONTRATUAL QUE VIOLA O PREVISTO NO ART. 40, XIV, "A" DA LEI DE LICITAÇÕES. PAGAMENTO DEVE OCORRER EM ATÉ TRINTA DIAS CONTADOS A PARTIR DA DATA FINAL DO PERÍODO DE ADIMPLEMENTO DE CADA PARCELA. SENTENÇA MANTIDA. PRECEDENTES NO STJ. REMESSA DESPROVIDO. (TJSC, Apelação / Remessa Necessária n. 0332887-61.2014.8.24.0023, da Capital, rel. Artur Jenichen Filho, Quinta Câmara de Direito Público, j. 11-07-2019). Destacado.

A fim de evitar o dissabor da discussão judicial, e, considerando a interpretação já assentada pelo STJ acerca da matéria, esperava-se que a NLLC fixasse os prazos máximos da obrigação de pagamento de forma ainda mais clara. Afinal, o adimplemento da remuneração devida ao particular, por ser determinante na equação econômico-financeira do contrato, interessa à própria Administração Pública para atrair o mercado nos certames licitatórios e, assim, satisfazer o primado da contratação mais vantajosa ao interesse público. 

Porém, diferente da lei 8.666/93, a NLLC não estipulou o prazo máximo em que o pagamento deve ser efetuado pela Administração Pública. Tampouco deixou explícito que o termo inicial do vencimento desta obrigação deve ser o adimplemento do contratado. Apenas consignou, em seus artigos 6º, XXIII, "g", 18, III, 25, caput e 92, V, VI, que toda a matéria pertinente às condições de pagamento devem ser fixadas no edital, no termo de referência e na minuta do contrato.

Cabe então indagar: se com os limites claros da lei 8.666/93, foram incontáveis os abusos praticados em relação aos pagamentos devidos ao particular contratado, como comportar-se-á a Administração Pública diante da omissão da nova legislação?

Por ora só temos as pressuposições das experiências passadas, porque embora vigente e com muitos dispositivos autoaplicáveis, a NLLC depende de diversas regulamentações para realizar o processo licitatório e a execução do contrato. O tempo ainda é de preparo e treinamento. Mas uma coisa é certa: o licitante deverá redobrar sua atenção ao edital e à minuta do futuro contrato para verificar as vinculações da data de pagamento com o cumprimento de providências que estejam a cargo exclusivo da Administração Pública.

Como exemplo, se o edital disser que o pagamento será efetuado em até 30 (trinta) dias da emissão da nota fiscal, porém, para que esta ocorra, impõe-se uma série de providências a cargo do órgão contratante, como a aprovação prévia do gestor ou do fiscal do contrato, a conferência de medições, a análise de documentos e, ainda, não se define os prazos que estas providências devem ser executadas, tem-se que o pagamento poderá ser efetuado com prazos bem superiores a 30 (trinta) dias da execução dos serviços, criando uma situação de verdadeiro desequilíbrio, já que os encargos assumidos pelo particular para cumprir o contrato, como regra, tem vencimento mensal (aluguel, salários, pagamento a fornecedores, etc). 

Essa análise também terá profundos reflexos para calcular o prazo que o particular terá o direito de rescindir o contrato em caso de atraso prolongado de pagamento. Isso porque o "comemorado"  art. 137, §2º, inciso IV da NLLC permite a rescisão do contrato quando houver atraso superior a 2 (dois) meses, contado da emissão da nota fiscal. Comemora-se os 2 (dois) meses porque a lei 8.666/93 fala em 90 dias, criando-se uma aparente redução do prazo que o contratado fica obrigado a suportar a inadimplência da Administração Pública. 

Ocorre que, se o contrato tiver por objeto a entrega de bens (produtos, mercadorias, equipamentos), existem motivos para se comemorar, já que a circulação dos bens vem (ou deve vir) acompanhada de nota fiscal. Contudo, nos contratos de prestação de serviços ou de execução de obras, onde o edital condicionou a emissão da fatura à realização de providências a cargo do órgão contratante (como por exemplo, o aceite ou medição), o prazo de 2 (dois) meses, contados da emissão da nota fiscal, pode equivaler a período de 3, 4 ou 5 meses da data de adimplemento da parcela executada pelo particular, hipótese em que a situação da NLLC fica mais gravosa em relação à lei 8.666/93.

É louvável que a Nova Lei de Licitações tenha abordado temáticas de planejamento, governança, fiscalização, gestão de riscos, e ainda sujeitou as contratações públicas ao controle social e às três linhas de defesa. Foi bem sucedida quando trouxe um Capítulo específico sobre os pagamentos, impondo observância à ordem cronológica e exigência de sua divulgação na internet, além da necessidade de comunicação ao órgão de controle e ao tribunal de contas quando esta ordem tiver que ser alterada em situações excepcionais. Também merece louvor quando admite a antecipação de pagamentos, em circunstâncias excepcionais, o que não era admitido no art. 65, II, "c" da lei 8.666/93. 

É espantoso, porém, que tenha incorrido em tamanho retrocesso no que se considera um dos maiores pilares, senão a base de sucesso das contratações, que é justamente uma política de justiça contratual, prestigiando prazos razoáveis e bem definidos no cumprimento da obrigação de pagamento, após a entrega da prestação contratual, visando atrair o mercado e, assim, obter propostas efetivamente vantajosas para satisfazer o interesse público. 

Não se ignora que a prática insana de pagamentos impontuais nas compras governamentais cria o ciclo vicioso de computar, nas próximas propostas, os riscos que o contratado teme suportar pela demora dos pagamentos que lhe são devidos.

De modo que não existe sistema de contratações públicas eficiente e eficaz que não leve a sério o pontual pagamento devido pela Administração Pública. E nesse aspecto, a questão não é apenas prever o prazo de pagamento no edital ou no contrato, ou mesmo assegurar o pagamento de correção monetária em caso de atraso na sua efetivação, mas estabelecer condições tais, que inviabilizam a sua ocorrência com prazo superior a 30 dias do adimplemento da prestação entregue pelo contratado, assim como já previa a tão criticada lei 8.666/93.  

A conclusão a que se chega é que o particular deverá estar muito atento a cada edital, solicitar esclarecimentos ao órgão licitante em caso de dúvidas, ou até mesmo impugnar os termos do edital em caso de omissão ou abuso, sabendo que no ordenamento jurídico existem princípios que garantem o equilíbrio econômico-financeiro da proposta e regras, como a do artigo 122 do Código Civil, que vedam a existência de condições potestativas como, por exemplo, as que estipulam a obrigação de pagamento ao arbítrio exclusivo da entidade contratante.

A Administração Pública, por sua vez, deverá dar concretude aos princípios da eficiência, planejamento, transparência, eficácia, segurança jurídica, razoabilidade, competitividade e economicidade, definindo um adequado regramento, em cada edital, quiçá em regulamentos infralegais, acerca dos prazos e condições de pagamento devido ao particular, levando em consideração o adimplemento das parcelas contratuais, a fim de não afetar o equilíbrio da proposta adjudicada ou trazer, a médio e longo prazo, prejuízos ao próprio erário.

Flávia de Araújo B. Bispo
Advogada inscrita na OAB/SC 19.110-B, Sócia e Coordenadora da área de Licitações e Contratos Administrativos do escritório Farah, Gomes e Advogados Associados, em Florianópolis/SC, empresa que é o associada para todo o Estado de Santa Catarina da ALAE – Aliança de Advocacia Empresarial.

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