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A cessão fiduciária sobre crédito não constituído/performado e a sua eficácia na recuperação judicial

A legislação é clara quanto às exceções à regra de sujeição de créditos na recuperação judicial, mas a prática indica controvérsia, com entendimentos jurisprudenciais que flexibilizam a lei.

18/11/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Como alternativa às sociedades que buscam a reestruturação de suas dívidas, o processo de recuperação judicial se mostra como uma via segura para a renegociação do passivo e, inclusive, para auxiliar na reestruturação da atividade empresarial.

Referida reestruturação da empresa, por intermédio da recuperação judicial, exige da sociedade empresária uma série de requisitos para que o seu pedido seja deferido pelo juízo em que tramitar o processo, especialmente os que estão previstos nos artigos 48 e 51, ambos da lei 11.101/05.

Dentre estes requisitos está o da apresentação da relação nominal dos credores, inclusive com a obrigação de classificação dos créditos por classes. A recente alteração da legislação, pelo advento da lei 14.112/20, impôs ao devedor a necessidade de declarar inclusive os créditos não sujeitos à recuperação judicial.

Nesta temática da classificação dos créditos, especialmente quando se discute a sujeição ou não de créditos à recuperação judicial, surge a controvérsia quando o texto de lei é confrontado com a realidade fática dos negócios firmados entre credores e devedores, de modo a flexibilizar o regramento contido na norma.

Isso porque o crédito sujeito à recuperação judicial somente poderá ser recebido pelo credor nos termos do plano, o que certamente implicará em um pagamento de longo prazo, provavelmente com aplicação de deságio e correção em patamares inferiores aos praticados no mercado. Já o crédito não sujeito à recuperação judicial, também chamado de crédito extraconcursal, será exigido em sua integralidade e com todos os acréscimos previstos em contrato ou legalmente exigíveis em caso de inadimplemento, independentemente da proposta ofertada para quitação dos créditos sujeitos à recuperação judicial.

O crédito estará sujeito à recuperação judicial quando existente até a data do pedido formulado pelo devedor. Não estará sujeito o crédito cujo fato gerador é posterior ao pedido de recuperação judicial, bem como créditos decorrentes de operações que a própria lei classifica como extraconcursais. Uma dessas hipóteses é a exceção trazida pelo §3º do art. 49 da lei 11.101/051.

Trata-se da hipótese usualmente notada em operações de crédito bancário, quando empresas buscam empréstimos junto às instituições financeiras, mas, em contrapartida, exige-se a concessão de uma "garantia", que muitas vezes consiste na cessão fiduciária de créditos que o devedor tem a receber dos seus clientes. A previsão legal é no sentido de que a cessão fiduciária de recebíveis em garantia altera a classificação do crédito do credor no processo de recuperação judicial, que passa a ser considerado "extraconcursal".

Apesar da clareza da lei, ainda há controvérsia quanto à classificação dos créditos garantidos por cessão fiduciária de recebíveis performados (operações já realizadas), ou recebíveis a performar (prestação de serviços ou vendas a serem realizadas no futuro). Tal controvérsia também está presente quanto ao momento em que haverá a constituição da cessão fiduciária em garantia de instrumentos de crédito ainda não constituídos, o que ocorre, inclusive, por razões alheias à vontade das partes.

A jurisprudência é dividida entre a ideia da validade e efetiva constituição da garantia mesmo sem a individualização dos instrumentos de créditos cedidos (cessão de créditos futuros)2-3, e a ideia da necessidade de individualização do crédito para sua regular constituição4-5-6.

O STJ já decidiu que a constituição da propriedade fiduciária, oriunda de cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis e de títulos de crédito, dá-se a partir da própria contratação, sendo, desde então, plenamente válida e eficaz entre as partes7.

Apesar da existência de posicionamentos favoráveis à eficácia da garantia de cessão fiduciária de recebíveis não individualizados ou não performados na data do pedido de recuperação judicial,  o que  torna o crédito garantido, em tese, não sujeito aos efeitos da recuperação judicial, atualmente a ideia já parece sofrer resistência, especialmente no âmbito das Câmaras Reservadas de Direito Empresarial do E. TJSP, que, em inúmeros e recentíssimos julgados, entende pela ineficácia da garantia não individualizada no âmbito da recuperação judicial, submetendo o crédito garantido aos efeitos da recuperação judicial.

Recente julgado da 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do E. TJSP8 é bastante claro e didático sobre o tema, inclusive indicando o marco temporal a ser observado quanto à constituição dos créditos futuros que são cedidos fiduciariamente ao credor:

"(...). Cessão fiduciária em garantia de créditos futuros - Créditos performados (constituídos) até a data de ajuizamento do pedido de recuperação judicial, que são de titularidade do credor fiduciário e podem, ante o inadimplemento da obrigação principal, ter seu produto por ele apropriado - Crédito de recebíveis que constitui bem incorpóreo e fungível, não se enquadrando no conceito de bem de capital, nem comportando, por sua própria natureza, o mesmo tratamento - Jurisprudência do C. STJ - Créditos não performados (não constituídos) na data do ajuizamento do pedido de recuperação judicial, em relação aos quais a garantia é ineficaz - Propriedade fiduciária não constituída na data de ajuizamento do pedido de recuperacional, não se podendo constituir posteriormente, ante o que dispõe o art. 49, caput, da lei 11.101/05 - À luz do que dispõe o art. 49, § 3°, do mesmo diploma legal, a existência da propriedade fiduciária deve ser aferida na data do pedido de recuperação - Retenções relativas aos créditos a performar, ou seja, aos recebíveis constituídos posteriormente à distribuição da recuperação que devem ser integralmente liberados à devedora - Precedentes desta C. 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial - Decisão agravada reformada em parte. Recurso provido em parte, com observação e aplicação de multa por litigância de má-fé".

Há sentido no entendimento de que a cessão fiduciária de créditos inexistentes na data do pedido de recuperação judicial não tem eficácia para os fins de exclusão do crédito do rol de débitos listados pelo devedor em recuperação judicial, não sendo aplicável, assim, a disposição do §3º do art. 49 da lei 11.101/05.

Imagine a hipótese, sem pretensão de exaurir o tema, de uma operação de mútuo com garantia de cessão fiduciária de recebíveis futuros de um cliente/contrato específico do devedor, sendo que, na data do pedido de recuperação judicial, a relação comercial entre eles, da qual se formariam os recebíveis cedidos, já estivesse encerrada, sem que fosse ofertada outra garantia em substituição. Neste caso, os bens cedidos em garantia jamais poderão ser performados, posto que inexistente a relação comercial que os constituiria. Trata-se de hipótese em que, por ser impossível a individualização dos bens cedidos em garantia, já que não haverá a constituição dos créditos, há o perecimento da própria garantia, que dependia da manutenção de uma relação comercial.

Dessa forma, se a específica relação jurídica da qual os direitos de crédito futuros foram cedidos em garantia deixa de existir, tem-se o esvaziamento do objeto da garantia, o que poderá ser determinante para classificar o crédito inicialmente garantido por ela no bojo da recuperação judicial.

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1- Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos. (...)

§ 3º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.

2- (TJSP;  Agravo de Instrumento 2106227-48.2021.8.26.0000; Relator (a): AZUMA NISHI; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Limeira - 5ª Vara Cível; Data do Julgamento: 29/09/2021; Data de Registro: 29/09/2021)

3- (TJSP;  Agravo de Instrumento 2185642-51.2019.8.26.0000; Relator (a): AZUMA NISHI; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Garça - 2ª Vara; Data do Julgamento: 05/08/2020; Data de Registro: 08/10/2020)

4- (TJSP;  Agravo de Instrumento 2056712-44.2021.8.26.0000; Relator (a): Fortes Barbosa; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Itapira - 1ª Vara; Data do Julgamento: 30/09/2021; Data de Registro: 01/10/2021)

5- (TJSP;  Agravo de Instrumento 2018331-64.2021.8.26.0000; Relator (a): Araldo Telles; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Mogi das Cruzes - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 30/08/2021; Data de Registro: 31/08/2021)

6- (TJSP;  Agravo de Instrumento 2223641-04.2020.8.26.0000; Relator (a): Araldo Telles; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de São José do Rio Preto - 7ª Vara Cível; Data do Julgamento: 26/03/2021; Data de Registro: 24/03/2021)

7- (STJ; REsp 1797196/SP; Relator (a): Ministro Aurélio Bellizze – 3ª Turma, Data do Julgamento: 12/09/2019).

8- (TJSP;  Agravo de Instrumento 2193469-45.2021.8.26.0000; Relator (a): Grava Brazil; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível - 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento: 22/10/2021; Data de Registro: 25/10/2021).

Fernando Luiz Tegge Sartori
Especialista em Direito e Processo do trabalho e Direito Empresarial, sócio do escritório Sartori Sociedade de Advogados.

Rubens Sampaio Carnelós
Doutorando, Mestre e Especialista em Processo Civil pela PUC-SP. Advogado.

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