Migalhas de Peso

É a persecução criminal uma busca pela verdade?

Não raras vezes, a acusação oficial conta apenas com testemunhas policiais, responsáveis pela prisão em flagrante.

18/11/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A expressão busca da verdade é comumente utilizada na persecução criminal por ambos os lados: o do órgão da acusação oficial e o da defesa técnica. Na prática, cada um está buscando certo tipo de verdade, e se possível ocultando – de modo ético e lícito –, um a verdade do outro. O papel da defesa e da acusação nos casos criminais é, diz Alan Dershowitz, má compreendida pelo público, uma ação penal é qualquer coisa menos a busca pura da verdade1. Aqui, a busca da verdade e o senso de justiça são colaterais, acidentais. A questão motriz em um processo penal é o interesse profissional em vencer (dentro da ética).2

Um exemplo. É o Ministério Público o órgão da acusação oficial, a quem compete a promoção da ação penal pública. Geralmente traz como lastro probatório os elementos de informação produzidos pela imprescindível atividade policial. A probabilidade de a Denúncia firmar-se em um depoimento mentiroso ou parcialmente verdadeiro – no intento de alcançar uma condenação (verdade acusatória) – é muito mais comum do que parece (basta rememorar a questão do reconhecimento de pessoas, fotográfico etc.). A defesa técnica encontrará um terreno rochoso, cuja resistência quase é levada a zero, especialmente quando do depoimento de um agente da lei, como são os casos dos policiais responsáveis pela prisão em flagrante ou participantes da abordagem antecedente.

Não raras vezes, a acusação oficial conta apenas com testemunhas policiais, responsáveis pela prisão em flagrante. Nessa situação, o juízo de imputação penal assenta-se exclusivamente na narrativa dos agentes da repressão criminal. É inaceitável que o juízo criminal profira sentença condenatória com fundamento único em testemunhos de policiais, sem a correspondente composição probatória, decorrente da instrução criminal. Não basta a confirmação cartesiana da narrativa policial.

Alto e bom som: não há falar-se em boa-fé na palavra da polícia, como critério condenatório. Trata-se de retórica de opressão que colide frontalmente com a Constituição da República, representando concreta lesão ao Estado Democrático Social de Direito. O policial ostenta boa-fé para a prática de atos administrativos (na aplicação de uma multa de trânsito, por exemplo, há presunção de que o policial não estaria mentindo: por que o policial inventaria multa contra as pessoas?). Tal não ocorre no regime do processo penal. Na verdade, renova-se o alto e bom som, existe apenas uma versão que ostenta privilégio, qual seja, a versão da pessoa humana submetida ao processo penal oficial.

Em palavras outras, não há dúvidas sobre a incompatibilidade, no moderno processo penal, entre a boa-fé da palavra do policial e o estado jurídico de inocência, ainda que o critério aqui seja a de mera presunção. Não. A presunção de verdade é da pessoa humana submetida ao processo penal oficial, exatamente por isso é que sobre os ombros do órgão da acusação oficial recai a obrigação da demonstração do contrário (ônus da prova); à defesa técnica, basta apenas a criação de uma dúvida razoável.

Definitivamente, é inaceitável a atribuição de especial ou superlativo valor à palavra da polícia, porque incondizente com a gramática emancipatória dos direitos humanos e fundamentais que assiste a todos os povos que aceitaram a democracia, em repúdio à tirania. A questão, avança-se, é de atribuir menos valor à palavra da polícia. Há aqui um respeito aos modelos de constatação ou standards probatórios. O sistema é de garantia do indivíduo, da pessoa humana sujeita ao processo penal oficial.

Esse vício acima sugestionado nem demandaria incursão maior, já que é o próprio Código de Processo Penal quem diz, expressamente, que do fato que ensejou a prisão em flagrante da pessoa humana deve existir duas testemunhas (CPP, art. 304, §1º). É evidente que os policiais, responsáveis pela prisão, não podem ser essas ditas testemunhas. Ora, qualquer narrativa que passe ao largo do "entrei com mandado", "entrei com o consentimento do suspeito", "a droga não estava na residência do suspeito", estarão, estas testemunhas, confessando de forma circunstanciada o crime de abuso de autoridade (lei 13.869/19). É como pedir a jogadores de tênis em Wimbledon assinalem suas próprias faltas, ainda que isso custe a vitória na partida.

Policiais valem-se de costumeiras mentiras porque sabem que juiz nenhum irá desacreditá-las. É a palavra dos policiais contra a da pessoa humana sujeita ao processo penal oficial, simples assim – "faz parte" do Sistema de Justiça Criminal.3

Dessa forma, apesar do princípio do estado jurídico de inocência representar, ainda que em tese, que o Estado deverá nadar contra uma corrente mais forte, em termos práticos, nesta situação de testemunhas policiais, a defesa técnica encontrará dificuldades processuais para modificar o convencimento do órgão julgador – ainda que o depoimento da testemunha policial seja falso –, pois é extremamente raro, apesar de várias circunstâncias, o magistrado como destinatário da prova, reconhecer como falso os depoimentos de policiais, pois não conta com o ceticismo da defesa quanto a esses agentes de repressão.

Outro ponto que merece destaque e reflexão é o fato de que culturalmente, o órgão da acusação oficial goza de presunção de virtude, de defensores da lei e da ordem, da verdade, atuam como representantes da vítima etc. Dentro dessa perspectiva, órgão da acusação oficial seria a personificação de que o interesse público vem sempre em primeiro lugar. Entretanto, não é raro o fato que, a depender da ação penal e de quem está sentado no banco dos réus, pode-se obscurecer a verdade e contar com a conivência do Poder Judiciário, determinando de antemão o desfecho do julgamento, se afastando dos rigores necessários do devido processo legal (due process of law)4. Há de se considerar o seguinte: em determinados casos é impossível condenar pessoas sabidamente culpadas sem violar direitos.5

Essa situação de verdades parciais, alternativas, inatingíveis, é intrínseca ao sistema acusatório (accusatorial system), quer alguns concordem outros não. Aliás, qualquer Sistema de Justiça Criminal é falho. Nele ocorrerão prisões cautelares, buscas e apreensões e até mesmo condenações de possíveis inocentes. Por essas e outras que existem institutos de importância republicana e de garantia constitucional como as ações de habeas corpus, mandado de segurança e a revisão criminal, imprescindíveis mecanismos de controle da legitimidade dos atos dos agentes estatais investidos na função de julgar.

Por essa razão é que no Direito, principalmente no Criminal, a expressão buscar a verdade vem carregada de valores e presta-se às significações variadas. Para se ter uma melhor compreensão do que essa busca da verdade dentro de um processo criminal realmente significa, é necessário discernir a multiplicidade de sentidos, por exemplo, de uma busca da verdade genuinamente científica, isto é, fora da metodologia do Direito.

Pesquisadores e cientistas têm por meta o desvendar e descobrir a verdade por meio do comprometimento de escolhas metodológicas, procedimentos técnicos e instrumentos adequados à pesquisa cientifica como, por exemplo, experimentos, pesquisa de campo, análises de amostras, documentos. Isso permitiria o descobrimento de algo novo ou ainda, possibilitaria apontar erros ou acertos de pesquisas anteriores (legitimando-as ou as colocando em dúvida). Trata-se, portanto, de teorização prévia e colocação do problema e sua(s) hipótese(s) lógica(s) de solução por meio de testes e posterior confirmação da teoria (caso seja possível). Tais parâmetros, dentro de limites éticos e de neutralidade, constituem o chamado método científico.

No método científico não existe inutilização e o desentranhamento da prova considerada ilícita ou outros elementos considerados ilícitos por derivação, como dispõem o art. 5º, LVI, da Constituição da República e o art. 157, do Código de Processo Penal. Do cientista não se espera outra coisa senão a neutralidade. A verdade científica não é política ou ideologicamente correta; é alheia a essas questões idiossincráticas. Além do mais, as verdades ou descobertas científicas sempre estarão sujeitas à contestação por meio de novas descobertas.

No Direito (mais propriamente uma técnica do que ciência) a ótica metodológica é diferente. Em uma persecução criminal, a verdade pode ser um propósito a ser alcançado, mas não o único dentro do processo penal. Assim não fosse, não haveria absolvição por insuficiência de provas (art. 386, VII) arrimada em uma dúvida razoável, ainda que se trate de um caso em que a pessoa humana submetida ao processo penal oficial seja provavelmente culpada. A premissa de absolvição em casos de estado de dúvida decorre da máxima de que é melhor absolver um culpado do que condenar um inocente. E veja-se: não se cuida unicamente de evitar a punição de um inocente, como podem supor alguns, de estrabismo evidente, mas, sim e propriamente, de deixar de responsabilizar criminalmente o verdadeiro culpado.

É dizer, o Sistema de Justiça Criminal não é uma busca desesperada, desequilibrada ou ilimitada da verdade. Diferentemente, além de não ter como único propósito a busca pela verdade, ele possui barreiras deliberadamente construídas que compõe o devido processo legal, para que somente se admita um decreto condenatório não apenas com juízo de mera probabilidade da autoria delitiva, mas para além da dúvida razoável.

A lógica de freios de contrapesos na busca da verdade se funda – ainda que em tese – no afastamento, ou ao menos na atenuação, do erro judiciário que resultem em condenações de inocentes. Outra questão diferencial seria a permissão da busca da verdade por meio de condutas violadoras dos mais comezinhos direitos fundamentais individuais, a exemplo do reconhecimento de pessoas e coisas em descordo com as regras processuais vigentes, fator que é facilitador de condenações injustas, sobretudo diante da aceitação da denominada psicologia da memória.

Naturalmente, não fossem observados os critérios e as regras processuais de limitação do poder, a busca dessa verdade seria facilitada. Suspeitos poderiam ser torturados, suas famílias ameaçadas, buscas e apreensões sem mandado poderiam ser feitas sem qualquer critério, ingressos em domicílio sem permissão expressa do morador etc. Quaisquer ferramentas seriam empregadas para que a polícia pudesse arrancar uma confissão ou produzir um indício que levasse ao encontro da verdade, ainda que claramente inconstitucionais6.

"Se esses métodos [inconstitucionais] – comuns em países totalitários – são rejeitados por serem reconhecidos por produzirem, muitas vezes, falsas acusações, essas objeções podem ser superadas exigindo que todas as confissões induzidas por tortura ou ameaças sejam corroboradas de forma independente. Ainda assim nunca toleraríamos tal busca obstinada pela verdade, nem o faria nossa constituição, porque acreditamos que os fins - mesmo e o fim nobre como é a verdade - não justificaria todos os meios possíveis. Nosso sistema de justiça, portanto, reflete um equilíbrio entre objetivos muitas vezes inconsistentes, que incluem verdade, paridade, finalidade e igualdade".7

Dada a sua fisiologia, à defesa criminal não deve ser entregue a missão de buscar a justiça na perspectiva da verdade, quando relevada a conflituosidade com os interesses da pessoa humana sujeita ao processo penal oficial (constituinte). A relação é de pura aritmética. A defesa criminal zelosa, preocupada com as garantias fundamentais, sempre encontrará e servirá à Justiça – ao menos a longo prazo – pois contribuirá para preservação do Sistema de Justiça Criminal e seu aprimoramento, evitando condenações de pessoas inocentes.8 Seguirá, acima de tudo, ao lado de seu constituinte.

A busca da verdade no processo criminal decorre da obediência de direitos e garantias humanas fundamentais, valores consagrados expressamente no texto constitucional. Essa busca encontra limites igualmente literais, ou seja, o encontro ilegal da verdade, autoritário, não republicano, como critério para a condenação. A defesa deve valer-se da busca da verdade, naturalmente, desde que seja com ética e dentro dos quadrantes da legalidade, de sorte a criar uma situação de dúvida razoável, suficiente para determinar a absolvição em uma ação penal.

Em relação ao ponto de vista da ética do Judiciário e dos juízes, há também diversidades de agendas, muitas delas são, infelizmente, estendidas aos interesses da atividade policial e acusação9. Assim, muitos juízes vão contribuir pela via da desonestidade intelectual e distorções para a obscuridade da verdade ao utilizar determinada ação penal para garantir que a pessoa sujeita ao Sistema de Justiça Criminal seja devidamente condenada, evitando a criação de precedentes favoráveis à defesa, ainda que a lei e as garantias processuais determinem uma absolvição10. A questão ganha esses contornos quando o juiz está, de algum modo, interessado na eficiência do Sistema, na segurança pública, no mantra da criminalidade, na adversidade ideológica, em não ver sua decisão reformada ou anulada ou na própria convicção de ser o acusado realmente culpado.

A problemática apontada não é exclusiva do Brasil, nos Estados Unidos da América do Norte, no memorável caso de 1963 Brady vs Maryland, a Suprema Corte daquele país decidiu que os promotores de justiça são obrigados a compartilhar qualquer informação exculpatória em relação a pessoa humana submetida ao processo penal oficial, todavia, a obrigação de revelar à defesa vale apenas para as provas ditas materiais11, o que ainda assim demonstra-se insuficiente para assegurar solidamente o devido processo legal à pessoa humana submetida ao processo penal oficial.

Apesar das críticas da falta de aplicabilidade na busca de toda a verdade, o modelo acusatório é, pela experiência histórica, o modelo mais apropriado. A reconstrução histórica dos fatos nos estreitos limites do moderno processo penal encontra limite nos direitos fundamentais da pessoa humana, razão pela qual o Estado deve garantir a absoluta isenção da busca da verdade, aquela possível dentro da lógica democrática. Às vezes só é possível colocar um band-aid e torcer.

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1- DERSHOWITZ, Alan M. Reasonable doubts: The O.J. Simpson case and the criminal justice system. Simon & Schuster. New York, 1996, p. 166.

2- DERSHOWITZ, Alan M. The best defenseVintage Books, New York, 1983, p. 17.

3- Nesse sentido: DERSHOWITZ, Alan M. Reasonable doubts: ob. cit., p. 50-51 e 66.

4- BUTING, Jerome F. Ilusão de justiça: os bastidores do julgamento que deu origem à série Making a Murderer. Tradução Patrícia Azeredo. 1. ed. Rio de Janeiro. BestSeller, 2018, p. 19-20.

5- DERSHOWITZ, Alan M. Reasonable doubts: ob. cit., p. 59.

6- DERSHOWITZ, Alan M. Reasonable doubts: ob. cit., p. 42 e 46.

7- DERSHOWITZ, Alan M. Reasonable doubts: ob. cit., p. 42.

8- DERSHOWITZ, Alan M. Reasonable doubts: ob. cit., p. 181.

9- Nesse sentido: DERSHOWITZ, Alan M. The best defense. ob. cit., p. 16.

10- DERSHOWITZ, Alan M. The best defense. ob. cit., p. 16.

11- BUTING, Jerome F. Ilusão de justiça, ob. cit., p. 321.

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BUTING, Jerome F. Ilusão de justiça: os bastidores do julgamento que deu origem à série Making a Murderer. Tradução Patrícia Azeredo. 1. ed. Rio de Janeiro. BestSeller, 2018.

DERSHOWITZ, Alan M. The best defense. Vintage Books, New York, 1983.

DERSHOWITZ, Alan, M. Reasonable doubts: The O.J. Simpson case and the criminal justice system. Simon & Schuster. New York, 1996.

Diego Renoldi Quaresma de Oliveira
Advogado, especialista e mestrando em Direito Penal.

Fernando Cesar de Oliveira Faria
Advogado (UFMT). Especialista em Direito Penal (FMP). Mestrando em Direito Penal (UBA).

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