Migalhas de Peso

O alinhamento na história do Direito Urbanístico

Quem lê na atual lei paulistana de parcelamento uso e ocupação do solo, de 2016 (LPUOS, Lei 16.402, anexo de conceitos), a definição singela de alinhamento (“linha divisória entre o lote e o logradouro público”), precisa saber que esta instituição urbanística fundamental percorreu mais de quatro séculos até hoje, com sentido praticamente intacto de ordenação e preservação dos espaços públicos em face do desenho urbano e da fricção da via com o lote.

17/11/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Instituição destinada a separar a propriedade privada do espaço público garantindo a regularidade das vias públicas, o alinhamento é uma das primeiras instituições urbanísticas a aparecer na História Moderna. Constitui-se em limitação do aproveitamento do solo - especificamente no que toca à ocupação dele, que não poderá avançar sobre a linha imaginária que separa o lote do logradouro público num contexto, como é o do espaço urbano, marcado pela proximidade entre público e privado, entre cheios e vazios, entre espaços com funções diferenciadas. Nasceu, como técnica, no início do século XVII e hoje se integra ao plano local de urbanismo ou plano diretor, podendo ser deslocado em havendo interesse público. 

No ano de 1607, a chamada “Ordonnance de Sully”, um edito de Henrique IV, impõe aos construtores de Paris o respeito ao alinhamento das vias públicas para combater o caótico desenho da cidade medieval que cresceu apertada, dentro da cintura das muralhas só derrubadas ao tempo de Luís XIV. O edito se diz “perpétuo e irrevogável”. Lembre-se que também a Pont Neuf – primeira ponte de Paris onde não havia nem comércio e nem casas (mesmo tendo ela 28m de largura e 270m de comprimento) - foi inaugurada em 1607 por Henrique de Navarra (1553-1610), que teria dito: “On dit que je suis chiche mais je fais trois choses bien éloignées de l'avarice, car je fais la guerre, l'amour et je bâtis”. Na “grande história” ele promulgou o Edito de Nantes em 1598, garantindo a liberdade religiosa aos protestantes – e talvez tenha sido morto por isso. 

Seu poderoso ministro Maximilien de Béthune, Duque de Sully (1559-1641) nomeado, naquele ato, “Grand Voyer de France” (função que Eros Grau compara à do antigo Ministro da Viação, no Brasil), inaugurou os serviços de pontes e estradas e, em Paris, a fiscalização e retificação do traçado das vias - o que deu origem ao nascimento de um novo tipo de funcionário do Estado que foram os “engenheiros topógrafos”, fiscalizando o respeito à regularidade das vias diante das construções lindeiras, novas e antigas. Datado de 16 de dezembro, aquele edito real tinha por objeto exatamente a “voirie” (sistema viário): era um “code de la voirie”, ou seja, expressão de uma “police des rues et chemins”. 

Foi por causa justamente da irregularidade e estreiteza das vias, provocando congestionamento de veículos de tração animal, que o próprio Henrique IV foi atacado e morto por François Ravaillac: o rei estava com sua carruagem parado num congestionamento da “rue de la Ferronnerie” que tinha, na época, cerca de 4m de largura e se estreitava mais porque não fora ainda alinhada (o que só ocorreria sob Luís XIV, neto de Henrique, em 1669) - e, além disso, houvera um choque entre carroças próximas ao grande mercado, que atrapalhava o trânsito1. As duas facadas do fanático católico, que avançou pela janela da carruagem no dia 14 de maio de 1610, foram fatais para o rei, que acabara de sair do Louvre e ia visitar Sully que estava gripado: na rua há hoje uma placa indicando o local exato do ataque2. 

Como traçado e massas urbanas perduram no tempo (“Paris ne s’est pas bâti en un jour”), resquícios da enorme irregularidade das antigas vias parisienses ainda podem ser vistos nas magníficas fotografias de Charles Marville tiradas antes dos trabalhos de renovação do prefeito Haussmann, que o nomeou fotógrafo municipal em 1858 para documentar a velha cidade que desaparecia. “A forma da cidade muda mais rápido que o coração de um mortal”, diz o verso famoso de Charles Baudelaire, que via as transformações da cidade. 

No Rio de Janeiro, a primeira postura determinando o alinhamento das construções data de 1625 (segundo governo Martim de Sá), depois reiterada várias vezes haja vista a fragilidade da distinção que se fazia entre o público e o privado. A Lei Imperial de 1º de outubro de 1828, que “enquadrou” os Municípios brasileiros, limitando a ampla autonomia que tiveram durante a Colônia, estabeleceu o alinhamento como a primeira das “posturas policiais“ (art. 66/§ 1º) de competência local. Disto derivou, no Recife (tal como ocorrera na França), a necessidade da nomeação pela Câmara de um “Encarregado da Architectura da Cidade”, em 1830. 

A deliberação da Câmara Municipal do Recife, de 12 de agosto de 1830, considera que não poderá desempenhar as atribuições conferidas pelo referido art. 66/§ 1º “sem a intervenção de hum Empregado entendido, que inspecione, e se incumba zelloso da Architectura da Cidade, geral, e particularmente, levantando as Plantas necessárias, alinhando as ruas, e edifícios, e estabelecendo a sua regularidade externa, máxime dos novos arruamentos; sem o que não só persistirão as deformidades presentes, mas accrescerão infinitas de futuro”. No Rio, o Código de Posturas de 1860 atribuía ao arruador, funcionário da Câmara, a competência de “alinhar e perfilar o edifício, e regular sua frente, conforme o plano adotado pela Câmara” (Título Primeiro, “Sobre o alinhamento de ruas e edificações”).  

O alinhamento constitui, pois, ato material de Direito Urbanístico, de competência própria e indelegável do Poder Público local, que fixa uma linha imaginária, divisória entre o logradouro público e os lotes lindeiros. O Plano Agache para o Rio de Janeiro procurava ser preciso e minucioso na definição: “é a linha reta, poligonal ou curva, projetada e localizada pelas autoridades municipais, para marcar o limite entre o lote de terreno e o logradouro público” (Anexo B, “legislação e regulamentos”3). Complementado pelo nivelamento (fixação do nível ou cota da via), o tradicional instituto tem a função principal de estremar o domínio público e, dessa forma, por consequência, acaba por estabelecer o desenho da própria via, definido no arruamento. 

Assim, conforme o plano urbanístico, ele pode ser deslocado, em havendo necessidade, pelo Poder Público - notadamente para o alargamento da via pública medida que hoje é rara, ao contrário do que ocorria no passado quando ainda era considerada eficaz para garantir a fluidez do trânsito. Daí terem sido alargadas muitas vias de São Paulo como a rua da Consolação, a Líbero Badaró e, por força da Lei 7048/67, a avenida Paulista, que passou a ter 48m de largura. Quem se dispuser a consultar a coleção de Leis e Atos do Município de São Paulo, editados pela Casa Vanorden no começo do século passado, irá verificar que eles tratam quase que exclusivamente de alargamento, alinhamento, nivelamento e calçamento de vias, incluindo o “aceite” público, posterior à execução, de trechos e prolongamentos de vias feitas por particulares, etc (v. ano de 1919, por exemplo). 

Se o alinhamento tem a ver com toda a extensão da via, alcançando todos os lotes lindeiros a ela, a testada, diferentemente, tem a ver apenas com o lote específico, do que se conclui que não se deve tomar ambos os termos como sinônimos, que não o são. Pode-se dizer que a divisa dos lotes com a via - ou a testada - é definida ou determinada pelo ato público de alinhamento, que tem, pois, o atributo essencial da generalidade. Um é causa e o outro é consequência; um é geral e o outro é particular. Em termos impróprios, a testada seria algo como um “alinhamento individual”. Assim, alinhamento é da via, testada é do lote. Neste sentido, o Código de Obras e Edificações simplificado do Rio de Janeiro define, corretamente, no glossário que o acompanha: “Testada do lote - é a linha que separa o logradouro público do lote e coincide com o alinhamento existente ou projetado” (Lei complementar municipal nº 198/19). 

Portanto, todos os elementos da edificação – das fundações até as lixeiras – devem ficar aquém, sempre aquém, da testada do lote, não podendo nunca avançar sobre o passeio, destinado à circulação. O Decreto paulistano nº 58.611/19 (sobre padronização das calçadas) define passeio ou calçada da seguinte forma: “calçada é a parte da via normalmente segregada e em nível diferente, reservada à mobilidade e permanência de pedestres, não destinada à circulação de veículos e disponibilizada à implantação de mobiliário urbano, equipamentos de infraestrutura urbana, sinalização, vegetação, iluminação pública e outros fins” (art. 2º). Portanto, a calçada serve à cidade e não ao lote, especificamente. 

No entanto, em algumas cidades a legislação permitia ou mesmo obrigava o avanço de pisos superiores, em balanço ou não (ou seja, constituindo “galerias de passagem”), respeitados certos critérios e especificações, visando proporcionar abrigo ao pedestre no passeio. Vê-se isso, por exemplo, na cortina de edifícios de idêntico gabarito da avenida Presidente Vargas, no centro do Rio (aberta entre 1941 e 1944), haja vista a permissão do Código de Obras de 1937. Estabelecia ele que tais galerias de passagem para pedestres “serão cobertas pelos pavimentos elevados, a partir do segundo, dos edifícios”. Mas, diferentemente, as sobrelojas não poderiam se estender sobre as passagens (art. 14/§ 9º). Em todo caso, mesmo que em balanço, isto é uma modalidade clara de privatização do espaço público, que não pode ser aceita. 

Os avanços sobre o alinhamento eram e são ainda frequentes. Além das lixeiras, outras extensões materiais da casa, aceitas na Antiguidade (vestibulum), foram proibidas na via. Na defesa do espaço público urbano, existe na história do urbanismo brasileiro uma curiosa “vereação” de 26 de junho de 1759 da Câmara Municipal de Salvador que, adaptando comando das Ordenações Filipinas (I, LXVIII, 314), proíbe e manda demolir os “poiares” (= poiais, banquetas e assentos, de pedra ou madeira) que eram construídos na frente das casas pelos moradores – e a norma explicita os motivos da proibição: “por servirem muitas vezes de meios para alguns roubos e escandalosos encontros de pretos com as pretas nas noites de escuro, e outros muitos prejuízos além da grave disformidade que causão às ruas da cidade”. Em função do enorme desleixo do poder local – que estava longe de impor alguma racionalidade no desenho urbano -, as ruas da cidade colonial eram estreitas e tortuosas, enlaçando-se com a paisagem do sítio natural, para lembrar a conhecida expressão de Sérgio Buarque de Holanda. No referido Código de Posturas do Rio, de 1860, há norma determinando que “nenhuma casa poderá construir-se com rótulas, postigos, cancelas, balcões, portas e janelas de abrir para a parte de fora”, o que ainda hoje ocorre com frequencia.  

Portanto, quem lê na atual lei paulistana de parcelamento uso e ocupação do solo, de 2016 (LPUOS, Lei nº 16.402, anexo de conceitos), a definição singela de alinhamento (“linha divisória entre o lote e o logradouro público”), precisa saber que esta instituição urbanística fundamental percorreu mais de quatro séculos até hoje, com sentido praticamente intacto de ordenação e preservação dos espaços públicos em face do desenho urbano e da fricção da via com o lote. No urbanismo de nossos dias, como reconhece Fernando Alves Correia, tal técnica continua a desempenhar um “papel insubstituível” em promover a ordenação da cidade, agora com base naquilo que determina o plano urbanístico local.

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1 Compare-se: datada do século XVI, a rua do Ouvidor, no centro do Rio, tem 6,80m e desenho igualmente irregular.

2 Depois de um processo sumário que durou 10 dias, Ravaillac foi morto no mesmo mês de maio em razão de atroz tortura praticada pelo Estado, culminando com o desmembramento a cavalo. Era como se executava a pena de morte aos regicidas no Antigo Regime. Até hoje se discute se ele agiu sozinho – tal como ele jurou - ou se foi um complô.

3 Trata-se do “plano de extensão, remodelação e embelezamento da cidade do Rio de Janeiro”, elaborado pelo urbanista francês Donat Alfred Agache entre 1927 e 1930 e que contém longo apenso de “legislação e regulamentos”. O Anexo B denomina-se “projeto de regulamento regional para construções, reconstruções, acréscimos, modificações de prédios, logradouros e loteamentos no Distrito Federal”.

4 O texto é este: “E não se poderá fazer na rua escada, nem ramada, nem alpendre, nem outra coisa alguma, que faça impedimento à serventia da dita rua. E se o fizerem, não lhe será consentido: e os Almotacés lho mandarão derrubar”. A palavra “almotacé” ou “almotacel” deriva do árabe e identifica um fiscal do concelho municipal.

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BABELON, Jean-Pierre. Henri IV. Paris: Fayard, 2009

CASTILHO, José Roberto Fernandes. Convite ao Direito Urbanístico. São Paulo: Pillares, 2021 (e bibliografia fundamental do Direito Urbanístico nele indicado)

CORREIA, Fernando Alves. Manual de Direito do Urbanismo, vol. I. 4ª ed. Coimbra: Almedina, 2012

KALFLÈCHE, Grégory. Droit de l’urbanisme. 2ª ed. Paris: PUF, 2018

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José Roberto Fernandes Castilho
Professor de Direito Urbanístico e de Direito da Arquitetura da FCT/Unesp.

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