Migalhas de Peso

Elevação das Custas Judiciais no Estado de São Paulo – um desserviço à Sociedade e à Advocacia

"Não se fazem os povos para os governos, mas os governos para os povos."

16/11/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A comunidade jurídica bandeirante foi surpreendida, na data de ontem, 11 de novembro de 20211, com o fato de que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo2 pretende elevar as custas para a distribuição de feitos a 1,5% (um vírgula cinco por cento) do valor da causa, de Agravo de Instrumento a 15UFESP's e, a cereja no bolo, de 2% para que se inicie o processo de cumprimento de julgado.

Apenas para tornar clara a situação, as custas para a interposição de um recurso de agravo de instrumento saltarão de R$ 290,09 (duzentos e noventa reais e nove centavos) para R$ 436,05 (quatrocentos e trinta e seis reais e cinco centavos).

Essa elevação das custas em 50% (cinquenta por cento), mormente num momento de recessão econômica mundial em decorrência da pandemia, é totalmente inapropriada. Mais que isso, data máxima vênia, com todo o respeito que devemos dispensar ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (bem como a outras Cortes do país) é de uma inconstitucionalidade que tangencia a indecência.

Expliquemos:

Da Leitura Direta do Código Tributário Nacional e da Constituição da República

Em primeiro lugar, temos que a cobrança de custas judiciais não pode ter a mesma base de cálculo do demais impostos. Por outra, o tributo (gênero) taxa (espécie) não pode ter a mesma base de cálculo de um imposto. Isso nos é dito pelo Código Tributário Nacional3 em seu artigo 774 e pela Constituição Federal de 1988 em seu artigo 1455.

A Constituição, tão bela e tão desprezada!

Alguém poderia dizer que temos um sistema consolidado há mais de 20 (vinte) anos, prevendo a cobrança de custas processuais em percentual sobre o valor da causa.

De fato, quando começamos a Advogar, há mais de 25 anos, as custas iniciais eram de 1% sobre o valor da causa, as de apelação mais 1% e não se pagava custas para a interposição de Recursos de Agravo de Instrumento.

Com sucessivas reformas em legislação estadual, as custas de apelação subiram (primeiro para 2% e, ao fim, para 4% sobre o valor da causa/condenação). Já o Agravo de Instrumento pulou da isenção de custas para o montante, razoavelmente alto, de 10UFESP's; ou seja, R$ 290,09 (duzentos e noventa reais e nove centavos) para os parâmetros do ano de 2021.

A cobrança de custas em percentual sobre o valor da causa não é novidade na Justiça Estadual Bandeirante. Todavia, não custa lembrarmos que não é porque estamos cometendo um erro há muito tempo, que aquele erro passa a ser um paradigma comportamental e/ou legislativo.

A escravidão já foi uma lei, queimar pessoas acusadas de bruxaria também o foi e, num tempo não muito distante, exterminar povos inteiros em razão de sua etnia/religião já fez parte do arcabouço jurídico de nações extremamente desenvolvidas.

Então, posto isto, como Pensadores/Operadores do Direito não podemos tolerar a injustiça (consubstanciada no desrespeito à norma constitucional) pelo simples argumento do "mas sempre foi assim".

Para além do que diz a lei, é fácil inferirmos porque é imoral, além de ser inconstitucional, a cobrança de custas judiciais em percentual sobre o valor da causa. Alguém em sã consciência acharia razoável que uma determinada Concessionária de Rodovia cobrasse R$ 1,00 de um veículo popular e R$ 100,00 de um veículo de alto luxo.

Com efeito, cada um desses veículos tem o peso similar, cada um desses veículos tem dois eixos, por qual razão então a, hipotética, concessionária deveria ser sócia do proprietário do veículo que ali transitará?

O mesmo se diz para as custas judiciais. Por acaso quem paga custas de valor mais alto tem direito a uma sala VIP nas dependências da Justiça? Por acaso o papel com o qual e feito o processo (e sabemos que os processos são digitais, ok) tem uma gramatura de melhor qualidade que um processo que pague custas menores?

Não, nada disso ocorre. Sequer se pode falar que o processo de maior  valor tende a durar mais tempo. Essa afirmação também o é imprecisa.

Quem advoga no Direito Empresarial/Comercial sabe que muitas vezes, poder-se-ia dizer quase sempre, é de interesse das partes (tanto pelo crescimento da dívida em razão de juros legais, quanto em razão da imagem comercial de dada empresa), que os demandas ligadas às suas relações comerciais-contratuais horizontais sejam resolvidas com a maior brevidade possível.

A pergunta que se faz então é, quando partimos do pressuposto que o processo de maior valor de causa não gera mais despesa ao Estado, por qual razão o Estado tem que ser nosso sócio? A resposta é simples: ele não tem!

O impressionante que os mesmos magistrados que, muitas vezes, ágeis para classificar o Dano Moral como Enriquecimento sem Causa, não enxergam o enriquecimento sem causa que o Estado tenta praticar às custas/expensas do jurisdicionado6.

Da questão – constitucional – do acesso à Justiça

"Art. 5º

(...)

XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;"

A Constituição, tão bela e tão desprezada... Nosso texto constitucional erigiu como um dos Direitos Fundamentais a ser protegido pela Lei o acesso à Justiça. Ocorre que para que esse Direito seja realizável, materializável, necessário se faz que as partes tenham condições de aceder à Justiça.

E é exatamente essa a colocação. Ainda que considerássemos a gravíssima inconstitucionalidade de se usar a base de cálculo de um imposto para a cobrança de uma taxa, temos que falar também do acesso à Justiça.

O Brasil, com efeito, é um país pobre (ou país rico com povo empobrecido, como preferem alguns); nossa renda per capita é de US$ 6.796,00 anuais7. É inegável, também, que desde o ano de 2013 o Brasil passa por uma profunda recessão econômica, agravada pela pandemia de COVID-198.

A pergunta é. As pessoas mal e mal têm recursos financeiros para suas necessidades básicas. Será que elas terão recursos para efetuar o pagamento de taxas judiciais que, além de inconstitucionais, são escorchantes? Certamente que não!

Em suma, a elevação das custas judiciais, tal como proposto pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, principalmente neste, inapropriadíssimo momento, terá como efeito prático a inviabilidade do exercício da jurisdição, que em última análise leva a sociedade à autotutela, e, por conseguinte, o aumento das tensões sociais e agravamento da crise (principalmente pelo fato de estarmos falando do Estado mais rico da Federação).

Nossa intenção com este ensaio é chamar a atenção, tanto da Comunidade Jurídica, quanto dos destinatários finais dos nossos serviços sobre esta aberração legislativa proposta pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Urge a mobilização da sociedade civil ante a gravidade da medida proposta e suas, nefastas, consequências.

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1- Artigos disponíveis aqui e aqui.

2- Disponível aqui.

3- Uma Lei Complementar à Constituição.

4- Art. 77. As taxas cobradas pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal ou pelos Municípios, no âmbito de suas respectivas atribuições, têm como fato gerador o exercício regular do poder de polícia, ou a utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição. Parágrafo único. A taxa não pode ter base de cálculo ou fato gerador idênticos aos que correspondam a impôsto nem ser calculada em função do capital das emprêsas

5- Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos: II - taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição; § 2º As taxas não poderão ter base de cálculo própria de impostos.

6- "(...)tira primeiro a trave do teu olho, e então cuidarás em tirar o argueiro do olho do teu irmão. Mateus 7:3-5"

7- Com toda a crise que nossos vizinhos enfrentam, a renda per capita do brasileiro ainda é menor que a do argentino, que fica é da ordem de US$ 8.400,00 anuais.

8- Disponível aqui.

Paulo Antonio Papini
Advogado em São Paulo. Mestre e Doutorando pela Universidade Autónoma de Lisboa. Pós-graduado em Processo Civil. Especialista em Direito Imobiliário. Professor na ESA/UNIARARAS e ESD-Campinas.

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