A aviação é um dos transportes mais importantes do mundo, que anualmente conecta milhões de pessoas aos quatro cantos do planeta. No Brasil, em 2019, foram transportados 119,4 milhões de passageiros, segundo o Anuário do Transporte Aéreo. E essa conexão internacional que a aviação proporciona, claramente precisa ser regulada, tanto no plano nacional quanto no plano internacional.
Assim, em 28 de maio de 1999 foi realizada em Montreal uma Convenção para regular Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional, atinentes ao transporte aéreo de passageiros, bagagens e cargas. O Brasil, como signatário pelo decreto 5.910/06, ainda enfrenta dificuldades internas em sua aplicação.
Essas dificuldades internas referem-se a aparentes antinomias entre a Convenção e outras legislações infraconstitucionais, mas apenas entre estas, vez que a Constituição Federal reconhece a incorporação de tratados e convenções internacionais ao ordenamento jurídico do Brasil. Ou seja, o aparente conflito não se sustenta, mas já que ele existe na prática, ele precisa ser superado.
Para superar esse conflito, há a necessidade de coordenação entre leis no mesmo ordenamento, o que se pode chamar de “diálogo das fontes”, conceito este criado por Erik Jayme em seu Curso de Haia (Jayme, Recueil des Cours, 251, p. 259) e relembrado por Cláudia Lima Marques em seu livro “Manual de Direito do Consumidor”, que significa “a atual aplicação simultânea, coerente e coordenada das plúrimas fontes legislativas, leis especiais e gerais, com campos de aplicação convergentes, mas não mais iguais”1.
Ao continuar a explicação, a professora expressa que esse diálogo entre as fontes é uma tentativa de expressar a necessidade de uma aplicação coerente das leis de direito privado coexistentes no sistema. Trata-se da denominada “coerência derivada ou restaurada”, que procura uma eficiência, não só hierárquica, mas funcional do sistema plural e complexo de nosso direito contemporâneo, a evitar a “incompatibilidade” ou a “não coerência”2
Esse “diálogo das fontes” é aplicado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e “utilizado fortemente nos Tribunais Estaduais e Juizados especiais para indicar a aplicação simultânea do Código de Defesa do Consumidor com mais de uma lei Geral ou Especial, de forma ordenada e coerente com o valor constitucional de proteção do consumidor3.”
A jurista Cláudia Lima Marques continua discorrendo que a jurisprudência foi pródiga em determinar esses diálogos de coerência, sendo que, com relação ao transporte aéreo, o Superior Tribunal de Justiça aplica o Código Consumerista em casos de transporte nacional, prevalente em relação ao Código Brasileiro de Aeronáutica e aplica, em casos de transporte internacional aéreo, o sistema especial previsto na Convenção de Montreal para determinar a responsabilidade (limitada) aos danos materiais, mas aplica simultaneamente o CDC para a danos morais.
Contudo, a Constituição Federal, em seu artigo 178 determina que: “A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto a ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade”. Diante disso, o Supremo Tribunal Federal reconheceu no Tema 210, a aplicação e prevalência das Convenções Internacionais em relação à Legislação Consumerista Brasileira, ou seja, reconhece-se que as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente a conversão de Varsóvia e Montreal, tem prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor4.
Tal decisão vem causando um rebuliço dentro do Judiciário, pois, embora houvesse o reconhecimento da prevalência da Convenção em relação ao CDC, em sede de Repercussão Geral, que deveria vincular os demais Tribunais, ao silenciar sobre os danos morais, acabou abrindo brechas para uma aplicação híbrida, ou seja, aplicação da Convenção nos danos materiais e a aplicação do CDC no que se refere aos Danos Morais, e por isso, é rara sua aplicação. Porém, como o próprio texto constitucional determina, as Convenções devem ser integralmente aplicadas a todos os casos de transporte aéreo internacional, se sobrepondo, não somente ao Código de Defesa do Consumidor, mas a qualquer norma infraconstitucional, sob pena de ferir o princípio da isonomia e da segurança jurídica.
Hoje, embora ainda pairem muitas dúvidas sobre a aplicação desse entendimento nos tribunais brasileiros, que faz com que alguns juízes não o utilizem em suas decisões, há uma crescente preocupação na uniformização da aplicação dos entendimentos nas instâncias superiores nas instâncias inferiores, vez que as sentenças são elaboradas sem a devida observação à Legislação, ou seja, à Convenção, que não é aplicada, ou quando o é, não é feita de maneira correta.
Essa preocupação foi recentemente levantada no Webinar “Juizados Especiais Cíveis”5 promovido pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, que reuniu diversos juristas do Brasil, onde mencionaram que alguns juízes ainda “buscam uma saída” para o entendimento firmado, principalmente no que tange aos danos morais. A análise ainda observou que a falta de uniformidade causa impactos tanto no Judiciário (aumento das ações) quanto aos consumidores, pois estes altos custos dispendidos com indenizações judiciais encarecem a aviação civil e impactam os serviços prestados.
Percebe-se um longo caminho a ser percorrido para que o entendimento se firme, devendo, tanto o Judiciário estar aberto a mudanças, principalmente relação à condução do processo, quanto os advogados devem estar empenhados a fazer valer o entendimento dos Tribunais. No mais, o primeiro passo, que é a consciência de que o entendimento deva ser aplicado em todas as cortes do país.
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1 Marques, Cláudia Lima, “Manual de Direito do Consumidor”, pag 117
2 Marques, Cláudia Lima, “Manual de Direito do Consumidor”, pag 117.
3 Marques, Cláudia Lima, “Manual de Direito do Consumidor”, pag 119
4 E-book, Direito Aeronáutico. Organizadores: Solano de Camargo e Jayme Barbosa Lima Netto.
5 Disponível aqui.