É certo que o Poder Judiciário, ao longo dos anos, tem sido provocado a se manifestar e a resolver casos que envolvem cada vez mais dilemas morais, questões de política pública e controvérsias políticas. Esse fenômeno é chamado, por Rodrigo Brandão, de judicialização da política ou expansão global do Poder Judiciário e é definido como "o processo pelo qual as Cortes e os juízes passam a dominar progressivamente a produção de políticas públicas e de normas que antes vinham sendo decididas por outros departamentos estatais, especialmente o Legislativo e o Executivo" 1.
As teorias que explicam esse fenômeno apontam alguns fatores que impulsionam a expansão da atuação do Poder Judiciário como: a positivação de direitos fundamentais e de tratados internacionais nas constituições, o respeito aos direitos das minorias, o federalismo e separação de poderes, entre outros.
No Brasil, o fenômeno da expansão do Poder Judiciário é sentido desde a promulgação da Constituição Federal de 1988. Entretanto, durante a pandemia mundial da covid-19, que tem apresentado grandes desafios para os Poderes da República e para a população, a judicialização da política pode ser percebida com mais nitidez.
Uma pesquisa simples com os termos correlatos à covid-19 no site de pesquisa jurisprudência unificada do Conselho da Justiça Federal2 traz a informação de que há mais de 8.000 decisões relacionadas a esse tema.
Na semana passada, mais uma vez, o STF foi provocado a se manifestar. Foram interpostas três Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental, n. 898, 900 e 901 pela Rede Sustentabilidade, pelo Partido Socialista Brasileiro – PSB e pelo Partido dos Trabalhadores – PT, que buscam a suspensão dos art. 1º, caput, e §§ 1º, 2º; art. 3º, caput e art. 4º, caput e incisos I e II da Portaria n. 620 Portaria MTP n. 620, de 1º de novembro de 2021.3
Os requerentes sustentam que a portaria apresenta inconstitucionalidade formal e material, bem como "ponderam que o STF já reconheceu a legitimidade da obrigatoriedade de vacinação, mediante medidas indiretas, tais como a restrição a certas atividades e à frequência a determinados lugares."4
Não é a primeira vez que o STF é provocado a manifestar-se acerca da vacinação durante a pandemia. Em janeiro de 2021, o Ministério da Saúde distribuiu as primeiras doses da vacina contra covid-19. Naquele momento, o Tribunal foi provocado, por meio da ADPF n. 7545, a se manifestar acerca da omissão do Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a covid-19 acerca da ordem de imunização dos grupos prioritários. A decisão da Corte determinou que o Governo Federal divulgasse, em até 5 dias, critérios para a ordem de preferência entre os grupos prioritários. A decisão fundamentou-se nos princípios da proteção da vida e da saúde e no direito à informação e o princípio da publicidade da administração pública.
Em outubro de 2020, foi julgada a ADI n. 65866, ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista – PDT, que buscava a interpretação conforme a Constituição do art. 3º, III, d, da lei 13.979/20, que prevê a possibilidade de vacinação compulsória. Na ocasião, foi firmada a tese de que
I - A vacinação compulsória não significa vacinação forçada, porquanto facultada sempre a recusa do usuário, podendo, contudo, ser implementada por meio de medidas indiretas, as quais compreendem, dentre outras, a restrição ao exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares, desde que previstas em lei, ou dela decorrentes, e (i) tenham como base evidências científicas e análises estratégicas pertinentes, (ii) venham acompanhadas de ampla informação sobre a eficácia, segurança e contraindicações dos imunizantes, (iii) respeitem a dignidade humana e os direitos fundamentais das pessoas, (iv) atendam aos critérios de razoabilidade e proporcionalidade e (v) sejam as vacinas distribuídas universal e gratuitamente; II - Tais medidas, com as limitações acima expostas, podem ser implementadas tanto pela União como pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, respeitadas as respectivas esferas de competência. em que o STF foi o tribunal firmou a tese
Já no julgamento da ADPF n. 742, ajuizada em 10/9/2020 e julgada em 24/2/2021, o Tribunal posicionou-se quanto à necessidade de o "Governo Federal adotar providências e protocolos sanitários que assegurem a vacinação dos quilombolas na fase prioritária."7
Ainda no contexto da pandemia da covid-19, foi julgada a ADPF n. 7708, em que o Plenário do STF referendou medida cautelar para:
"assentar que os Estados, Distrito Federal e Municípios (i) no caso de descumprimento do Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19, recentemente tornado público pela União, ou na hipótese de que este não proveja cobertura imunológica tempestiva e suficiente contra a doença, poderão dispensar às respectivas populações as vacinas das quais disponham, previamente aprovadas pela Anvisa, ou (ii) se esta agência governamental não expedir a autorização competente, no prazo de 72 horas, poderão importar e distribuir vacinas registradas por pelo menos uma das autoridades sanitárias estrangeiras e liberadas para distribuição comercial nos respectivos países, conforme o art. 3°, VIII, a, e § 7°-A, da lei 13.979/20, ou, ainda, quaisquer outras que vierem a ser aprovadas, em caráter emergencial, nos termos da Resolução DC/ANVISA 444, de 10/12/2020."
Durante o período da pandemia, mas em uma situação fática não relacionada a ela, o STF reconheceu a repercussão geral para julgar processo em que que pais veganos buscavam o direito de não imunizar filho conforme Plano Nacional de Imunização – PNI, em virtude de suas convicções filosóficas.
A repercussão foi reconhecida por se entender que "constitui questão constitucional saber se os pais podem deixar de vacinar os seus filhos, tendo como fundamento convicções filosóficas, religiosas, morais ou existenciais."9
No julgamento, a tese foi fixada no sentido de que "é constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, (i) tenha sido incluída no Programa Nacional de Imunizações ou (ii) tenha sua aplicação obrigatória determinada em lei ou (iii) seja objeto de determinação da União, Estado, Distrito Federal ou Município com base em consenso médico-científico. Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar."
Embora não se trate de situação fática similar à discutida nas ADPFs, é importante apresentar a fundamentação divulgada na ementa:
Ementa: Direito constitucional. Recurso extraordinário. Repercussão geral. Vacinação obrigatória de crianças e adolescentes. Ilegitimidade da recusa dos pais em vacinarem os filhos por motivo de convicção filosófica. 1. Recurso contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) que determinou que pais veganos submetessem o filho menor às vacinações definidas como obrigatórias pelo Ministério da Saúde, a despeito de suas convicções filosóficas. 2. A luta contra epidemias é um capítulo antigo da história. Não obstante o Brasil e o mundo estejam vivendo neste momento a maior pandemia dos últimos cem anos, a da Covid-19, outras doenças altamente contagiosas já haviam desafiado a ciência e as autoridades públicas. Em inúmeros cenários, a vacinação revelou-se um método preventivo eficaz. E, em determinados casos, foi a responsável pela erradicação da moléstia (como a varíola e a poliomielite). As vacinas comprovaram ser uma grande invenção da medicina em prol da humanidade. 3. A liberdade de consciência é protegida constitucionalmente (art. 5º, VI e VIII) e se expressa no direito que toda pessoa tem de fazer suas escolhas existenciais e de viver o seu próprio ideal de vida boa. É senso comum, porém, que nenhum direito é absoluto, encontrando seus limites em outros direitos e valores constitucionais. No caso em exame, a liberdade de consciência precisa ser ponderada com a defesa da vida e da saúde de todos (arts. 5º e 196), bem como com a proteção prioritária da criança e do adolescente (art. 227). 4. De longa data, o Direito brasileiro prevê a obrigatoriedade da vacinação. Atualmente, ela está prevista em diversas leis vigentes, como, por exemplo, a lei 6.259/75 (Programa Nacional de Imunizações) e a lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Tal previsão jamais foi reputada inconstitucional. Mais recentemente, a lei 13.979/20 (referente às medidas de enfrentamento da pandemia da Covid-19), de iniciativa do Poder Executivo, instituiu comando na mesma linha. 5. É legítimo impor o caráter compulsório de vacinas que tenha registro em órgão de vigilância sanitária e em relação à qual exista consenso médico-científico. Diversos fundamentos justificam a medida, entre os quais: a) o Estado pode, em situações excepcionais, proteger as pessoas mesmo contra a sua vontade (dignidade como valor comunitário); b) a vacinação é importante para a proteção de toda a sociedade, não sendo legítimas escolhas individuais que afetem gravemente direitos de terceiros (necessidade de imunização coletiva); e c) o poder familiar não autoriza que os pais, invocando convicção filosófica, coloquem em risco a saúde dos filhos (CF/1988, arts. 196, 227 e 229) (melhor interesse da criança). 6. Desprovimento do recurso extraordinário, com a fixação da seguinte tese: "É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, (i) tenha sido incluída no Programa Nacional de Imunizações, ou (ii) tenha sua aplicação obrigatória determinada em lei ou (iii) seja objeto de determinação da União, Estado, Distrito Federal ou Município, com base em consenso médico-científico. Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar".
A análise das decisões do STF demonstra que a Corte, nos julgamentos apresentados, tem se posicionado favorável à previsão de vacinação obrigatória, excluída a imposição de vacinação forçada. Agora, é acompanhar atentamente o andamento das ADPFs em curso para verificar como o STF se posicionará em mais essa demanda cuja decisão impactará uma grande parte da população.
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1- Brandão, R. (2013). A Judicialização da Política: teorias, condições e o caso brasileiro. Revista De Direito Administrativo, 263, 251–290. Disponível aqui. Acesso em 31 out. 2021.
2- Conselho da Justiça Federal, Jurisprudência Unificada. Disponível aqui. Acesso em 6 nov. 2021.
3- Portaria MTP n. 620, de 1º de novembro de 2021;
4- STF, ADPF n. 898/DF, relator Ministro Roberto Barroso, despacho publicado no DJe de 8/11/2021.
5- ADPF n. 754, Tribunal Pleno, relator Ministro Ricardo Lewandowski, DJe 11/3/2021.
6- ADI n. 6.586/DF, Tribunal Pleno, relator Ministro Ricardo Lewandowski, Dje 7/4/2021.
7- ADPF n. 742/DF, Tribunal Pleno, relator Ministro Marco Aurélio, redator do acórdão Ministro Edson Fachin, Dje 29/4/2021.
8- ADPF 770/DF, Tribunal Pleno, relator Ministro Ricardo Lewandowski, DJe 10/3/2021.
9- ARE n. 1.267.879/SP, Tribunal Pleno, relator Ministro Roberto Barroso, DJe 27/8/2020.