Migalhas de Peso

Um estímulo ao mercado de crédito de descarbonização brasileiro

No Brasil, por se tratar de um país em desenvolvimento, somente o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) é aplicável, permitindo a implementação de um projeto para redução de emissões.

12/11/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Desde a segunda metade do século XVIII, com o surgimento da Revolução Industrial, o mundo vem passando por significativas mudanças, principalmente nos cenários social e econômico. Dentre essas mudanças, a escalada na emissão de gases poluentes na atmosfera vem causando severos impactos no meio ambiente, intensificando os efeitos das mudanças climáticas.

Com o crescimento nos níveis de gases de efeito estufa (GEE) lançados na atmosfera, ligados principalmente à queima de combustíveis fósseis e ao desmatamento, é perceptível o aumento da temperatura terrestre. Segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas - IPCC, em relatório publicado no ano de 2021, a temperatura média do Planeta Terra já subiu 1.1 ºC, podendo atingir 1,5° C até o ano de 20401.

Para alguns pode parecer pouco, mas o referido aumento é suficiente para ocasionar uma desordem ambiental, com estiagens mais longas, descongelamento das calotas polares, aumento do nível do mar, chuvas mais severas, enchentes, temperaturas desreguladas, além de aumentar os surtos de doenças para as quais a humanidade ainda não dispõe de conhecimento científico, fome e desabrigo domiciliar para os países e populações, especialmente, as mais vulneráveis.

Por conta desse cenário, que se tornou ainda mais caótico nos últimos 50 anos ao nos aproximarmos do "ponto de não retorno" é essencial que os países adotem e concretizem medidas que visem reduzir a emissão de gases poluentes. Dentre essas medidas, as Reduções Certificadas de Emissões (RCE’s) – popularmente conhecidas pela alcunha de "Créditos de Carbono" ou "crédito de descarbonização" (CBIO) merecem especial atenção.

Com o advento do protocolo de Kyoto, vigente desde o ano de 2005, foram definidas metas para redução de dióxido de carbono e outros cinco GEE, sendo previstos três modelos para que as nações desenvolvidas (ou em desenvolvimento) consigam cumprir suas metas de reduções, sendo estas: a) Comércio de Emissões; b) Implementação Conjunta; e o c) Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL).

No Brasil, por se tratar de um país em desenvolvimento, somente o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) é aplicável, permitindo a implementação de um projeto para redução de emissões, cuja iniciativa pode ser (I) das empresas sediadas nesses países em desenvolvimento, mediante recursos próprios, ou (II) de empresas sediadas em países desenvolvidos, que optam por investir em projetos de redução de GEE em países em desenvolvimento.

A implementação desses projetos prevê uma série de exigências, sendo essencial, dentre outras formalidades, a comprovação de que efetivamente houve redução da difusão de certa quantidade de dióxido de carbono na atmosfera, cujo preenchimento dos requisitos autoriza o acesso dessas companhias às Reduções Certificadas de Emissões (RCE’s), também conhecidos como créditos de carbono, podendo tais ativos serem negociados nas bolsas de valores e mercados de carbono ou utilizados para cumprimento de metas de redução.

É nesse ambiente que são comercializados os "créditos de carbono", conceituados como unidades de medida utilizadas para padronizar o cálculo de redução dos gases do efeito estufa em âmbito global, sendo que um crédito de descarbonização corresponde a uma tonelada de dióxido de carbono não lançada na atmosfera.

No Brasil, a matéria está regulada na lei 13.576/17, que dispõe sobre a Política Nacional de BioCombustíveis (RenovaBio), cujas finalidades, estatuídas no art. 1º, deixam transparecer a busca pela eficientização da matriz energética brasileira, ao contribuir com a cadeia produtiva do  mercado de biocombustíveis.

Apesar dos reconhecidos avanços contidos na referida legislação, grandes distúrbios foram provocados no sistema tributário ao se estabelecer um regime de tributação lacunoso e dubitável, diante da incoerência compartilhada pela lei, em contraposição à natureza jurídica das operações com os créditos de descarbonização.

Regulado pelo art. 15-A da lei 13.576/17, as receitas advindas das negociações com o CBIO estarão sujeitas à incidência do Imposto de Renda sobre as Pessoas Jurídicas, retido na fonte, à alíquota de 15%. Embora as deduções com despesas administrativas ou financeiras necessárias à emissão, ao registro e à negociação dos créditos incidam no cálculo, reduzindo os custos da operação, não há que se falar, sequer, na materialização do fato gerador apto a deflagrar a aplicação do IRPJ.

É consabido que o âmbito constitucional do Imposto de Renda é a disponibilidade econômica ou jurídica de quaisquer acréscimos patrimoniais2, estando sedimentado na jurisprudência3 do Supremo Tribunal Federal a impossibilidade de tributação de indenizações, porquanto constituem-se em mera recomposição patrimonial. Não apenas o STF, mas a própria Receita Federal nas Soluções de Consulta 76/2019 e 21/2018 reconheceu, como hipótese de não incidência do Imposto de Renda, as indenizações destinadas aos contribuintes.

Ao tratarmos das operações de venda dos créditos de descarbonização, pelo emissor primário, constatamos que o  produto tem a fiel finalidade de restituir a companhia pelas condutas adotadas que objetivaram evitar a emissão de gases poluentes na atmosfera, possuindo, por consequência disso, natureza indenizatória, logo, não se sujeitando à regra matriz de incidência do Imposto de Renda sobre as Pessoas Jurídicas.

Constitui-se em verdadeira amortização de gastos oriundos das alterações realizadas na cadeia de produção do contribuinte pessoa jurídica, para que se criasse uma estrutura capaz de atender a demanda de redução nas emissões de gases poluentes na atmosfera.

O mesmo efeito atinge a incidência do CSLL sobre as operações em comento, não obstante identifiquemos a existência do Projeto de Lei 528/21 que, em seu artigo 8°, prevê a isenção de pagamento de PIS, COFINS e CSLL nas transações nacionais que ocorrerem no mercado voluntário de créditos de carbono, fortalecendo ainda mais o incentivo a este setor, malgrado seja possível nos depararmos com posição divergente adotada por alguns Tribunais4.

Em um cenário global que confere cada vez mais destaque às discussões cuja substância argumentativa toca lições ligadas à economia circular, logística reversa e critérios de ESG (Environmental, Social and Governance), é crucial que o Brasil não fique alijado desses debates, se tornando, em decorrência dessa complacência, como um pária internacional em questões ambientais e econômicas. Empresas que ocupam papel de destaque no mundo, como, por exemplo, a Tesla- gigante do setor automobilístico-, ao anunciar seus resultados do segundo trimestre de 2020, revelou ter gerado US$ 428 milhões com a comercialização de créditos de carbono5.

Sob a ótica econômica, em um mundo de recursos cada vez mais escassos, é fundamental empregarmos maior eficiência na gestão destes recursos, de tal sorte que seja possível alcançarmos o ponto ótimo de equilíbrio entre crescimento econômico e preservação ambiental.

Para isso, é necessário considerarmos que toda atividade econômica produz custos sociais suportados tanto pelo o empresário quanto pela sociedade, custos estes que podem ser compensados pelos efeitos positivos que o desenvolvimento da atividade empresarial propicia ao conjunto social, ou não. Também conhecidas como "externalidades", é "produzida quando uma pessoa, enquanto presta um serviço a uma contraparte, o estende a terceiros, ou faz com que o serviço imponha custos aos terceiros de maneira que não se possa cobrá-los dos beneficiários ou deles obter uma indenização em proveito das vítimas"6.

Para o economista Arthur Cecil Pigou, as externalidades derivam de falhas dos mercados e, em alguns casos, diante da multiplicidade de agentes afetados, há um impedimento para que se recorra à composição privada7, sendo necessário a intervenção estatal na órbita econômica destes segmentos mercadológicos. Essa intervenção ocorreria pelo manuseamento do sistema tributário, com a implementação de incentivos econômicos8.

O sistema tributário, portanto, serviria, a partir da extrafiscalidade dos tributos, como equalizador da balança do sistema concorrencial, de tal modo que, na majoração do custo marginal social (CMS) em comparação ao benefício marginal e custos individuais, a taxa pigouviana reestabeleceria o equilíbrio de mercado, com a internalização das externalidades negativas no preço praticado pelo agente econômico poluidor, ou buscaria a concessão de incentivos fiscais à atividade do contribuinte que apresentar menor degradabilidade ambiental.

A instituição do crédito de descarbonização como "moeda verde" no mercado brasileiro exige estímulo e proteção. Muito embora o advento da Política Nacional de Biocombustiveis (RenovaBio) tenha representado um avanço na matéria, há ainda muita névoa a ser dissipada9, e até que essa insegurança jurídica seja resolvida, o encarecimento das operações com o CBIO obstará a própria efetividade e implementação do RenovaBio, e o alcance das finalidades estanques no caput do art. 1º da lei 13.576/17.

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1- Painel Governamental sobre Mudanças Climáticas - IPCC. Climate Change 2021. The Physical Science Basis. IPCC.m Disponível aqui. Acesso em: 07 de novembro de 2021.

2- MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Constitucional Tributário, 1ª edição. São Paulo. Editora Malheiros, Janeiro/2015. p. 318.

3- AI 637269 Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI Julgamento: 24/08/2010 Publicação: 08/11/2010 Decisão decisão que não admitiu recurso extraordinário assentado em contrariedade ao artigo 7º, inciso I, da Constituição Federal e ao artigo 10º, inciso I, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Insurge-se, no apelo extremo, contra acórdão da Sexta Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, assim ementado: "CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA NA FONTE. RESCISÃO DO CONTRATO DE TRABALHO. INDENIZAÇÃO ESPECIAL. INCIDENTE DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. SÚMULA 215 do STJ E N. 12 DO TRF/3ª REGIÃO. FÉRIAS VENCIDAS CONVERTIDAS EM PECÚNIA. NÃO INCIDÊNCIA. FÉRIAS PROPORCIONAIS. INCIDÊNCIA. 1. Toda e qualquer indenização que visa recomposição patrimonial pela perda de direitos, não configura aquisição de riqueza nova. Assim, não há que se falar em regra isentiva, mas sim em hipótese de não incidência do imposto de renda na fonte. 2. A 'quaestio iuris' encontra-se pacificada nos termos do entendimento assente perante a 2ª Seção do E. Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por ocasião do julgamento do Incidente de Uniformização de Jurisprudência suscitado em sede de apelação em Mandado de Segurança, reg. sob n. 95.03.095720-6, relator Desembargadora Federal Marli Outras ocorrências Decisão (4)

4- TRF-4 - AC: 001076 PR 2008.70.09.001076-1, Relator: JOEL ILAN PACIORNIK, Data de Julgamento: 29/02/2012, PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: D.E. 07/03/2012. Disponível aqui. Acessado em: 07 de novembro de 2021.

5- PRADO Matheus. Tesla fatura milhões: por que os créditos de carbono ainda não decolaram aqui. CNN Brasil Business. São Paulo. 01 de julho de 2021. Disponível aqui. Acessado em: 07 de novembro de 2021.

6- PIGOU, Arthur C., The Economics of Welfare, 4 ed., London, Macmillan, 1932, Disponível aqui, apud MACKAAY, Ejan. Análise Econômica do direito / Ejan Mackaay, Stéphane Rousseau; tradução Rachel Sztajn.- 2 ed.- [2 reimpr.] - São Paulo: atlas, 2020. p. 201-202.

7- Muito embora haja fiel crítica de alguns economistas (Ronald Coase) aos meios de se atingir o referido ponto de eficiência- através da visão dos neoclássicos-, argumentando a proteção do livre mercado, é necessário que consideremos a vastidão de agentes econômicos poluidores, os danos permanentes provocados pela suas atividades, bem como a urgente necessidade de obtermos uma virada econômica, de uma economia carbonizada para uma economia verde.MACKAAY, Ejan. Análise Econômica do direito / Ejan Mackaay, Stéphane Rousseau; tradução Rachel Sztajn.- 2 ed.- [2 reimpr.] - São Paulo: atlas, 2020. p. 201-202.

8- SILVEIRA, Stefano José Caetano. As externalidades negativas: as abordagens neoclássicas e institucionalistas. Revista FAE, Curitiba, v.9, nº 2, p. 39-43, jul/dez.2006, p. 43. Disponível aqui. Acesso em: 07 de novembro de 2021.

9- TORRES, Heleno Taveira. Proposta para tributação dos créditos de descarbonização. Conjur. 06 de maio de 2021. Disponível aqui. Acessado em: 07 de novembro de 2021..

Alexandre Tannus Martfeld Reis de Pinho
Advogado no Costa Oliveira Advogados, e cursa pós-graduação em Direito Público pela PUC/RS.

Matheus Regueira
Formado em direito pela Universidade Salvador - UNIFACS, pós graduando em direito corporativo pelo IBMEC.

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