Na quadra atual, a compreensão exata de cada um dos conceitos aqui versados mostra-se indispensável à atuação de qualquer operador do Direito.
A partir da noção de precedente, abordam-se as funções interna e externa da ratio decidendi, bem assim a diferenciação em relação ao conceito, elaborado de forma negativa, de obiter dictum.
Assentadas tais premissas, expõe-se o real significado de efeito vinculante, confrontando precedente e coisa julgada, considerados os limites subjetivos de cada qual.
Emergem, a seguir, os instrumentos de controle do precedente e os instrumentos de controle de sua aplicação, contrapondo-se, de um lado, overrulling, overriding e sinaling e, de outro, distinguishing, intervenção de amicus curiae, dever de publicidade, realização de audiência pública, embargos de declaração, agravo interno e, ainda que, por vezes, ostente função integrativa, a reclamação. O tema merece estudo atento.
1. Precedente e ratio decidendi: função interna e externa
Precedente, nas palavras de Didier, "é a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto1, cujo elemento normativo pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos"2.
Na mesma direção colhem-se as lições de Araken de Assis, destacando já aqui que nem todo precedente é vinculante:
"Precedente é, portanto, a decisão judicial sobre questão de direito, assentada em determinado esquema de fato, que fornece e a regula iuris para outros julgamentos. Nem todo precedente vincula necessariamente (binding precedent). Tampouco incorpora-se inelutavelmente à súmula da jurisprudência dominante. Em geral, o precedente tem caráter persuasivo (persuasive precedent): o acatamento da tese jurídica prende-se mais à consciência do magistrado, persuadido em seguir a linha jurisprudencial do tribunal em proveito da segurança jurídica, isonomia, confiança e – dado nada desprezível – da intrínseca facilidade de julgar mediante sua aplicação"3.
Ainda nesse sentido, a título de reforço, Marinoni aduz que "é possível dizer que o precedente é a primeira decisão que elabora a tese jurídica ou é a decisão que definitivamente a delineia, deixando-a cristalina"4.
Com orientação um pouco diversa, mas por se tratar de conhecido autor, cita-se, ainda, a definição de Daniel Assumpção, para quem "precedente é qualquer julgamento que venha a ser utilizado como fundamento de um outro julgamento que venha a ser posteriormente proferido"5.
Ainda sobre o conceito de precedente, deve-se notar que, como já parece claro, nem toda decisão judicial consubstancia um precedente6. Marinoni aponta que:
"Portanto, uma decisão pode não ter os caracteres necessários à configuração de precedente, por não tratar questão de direito ou se limitar a afirmar a letra da lei, como pode estar apenas reafirmando o precedente. Outrossim, um precedente requer a análise dos principais argumentos pertinentes à questão de direito, além de poder necessitar de inúmeras decisões para ser definitivamente delineado"7.
Demais disso, Fredie Didier disseca o precedente, indicando que é composto pelas: a) circunstâncias de fato que embasam a controvérsia; b) tese ou o princípio jurídico assentado na motivação (ratio decidendi) do provimento decisório; c) argumentação jurídica em torno da questão.
Assim, segundo o autor, "embora comumente se faça referência à eficácia obrigatória ou persuasiva do precedente, deve-se entender que o que pode ter caráter obrigatório ou persuasivo é a sua ratio decidendi"8, que constitui tão somente um dos elementos que compõem o precedente.
Em verdade, para Didier, o precedente, em sentido estrito, pode ser definido como sendo a própria ratio decidendi9.
E prossegue o renomado processualista, assentando que:
"A ratio decidendi – ou, para os norte-americanos, a holding – são os fundamentos jurídicos que sustentam a decisão10; a opção hermenêutica adotada na sentença, sem a qual a decisão não teria sido proferida como foi"11.
Nesse ponto, deve-se observar que o julgador, ao analisar o caso concreto, cria ou reconstrói necessariamente duas normas jurídicas. A primeira, de caráter geral, é fruto da sua interpretação/compreensão dos fatos envolvidos na causa e da sua conformação ao Direito positivo. A segunda, de caráter individual, constitui a sua decisão para aquela situação específica que se lhe põe para a análise12.
Em outros termos, "a ratio decidendi constitui a essência da tese jurídica suficiente para decidir o caso concreto (rule of law)"13 e a norma jurídica geral, que construída por um órgão jurisdicional, a partir de um caso concreto, pode servir como diretriz no julgamento de demandas semelhantes.
De sorte a ilustrar o que aqui se destaca, Didier fornece o seguinte exemplo:
"O art. 700 do CPC permite o ajuizamento de ação monitória a quem disponha de 'prova escrita' que não tenha eficácia de título executivo. 'Prova escrita' é termo vago. O STJ decidiu que 'cheque prescrito' (n. 299 da súmula do STJ) e 'contrato de abertura de conta-corrente acompanhado de extrato bancário' (n. 247 da súmula do STJ) são exemplos de prova escrita. A partir de casos concretos, criou 'duas normas gerais' à luz do Direito positivo, que podem ser aplicadas em diversas outras situações, tanto que se transformaram em enunciado da súmula daquele Tribunal Superior. Note que a formulação desses enunciados sumulados não possui qualquer conceito vago, não dando margem a muitas dúvidas quanto à sua incidência. Como se percebe, à luz de uma situação concreta, o julgador termina por criar uma norma que consubstancia a tese jurídica a ser adotada naquele caso –por exemplo, 'cheque prescrito' se enquadra no conceito de 'prova escrita' de que fala o art. 700 do CPC. Essa tese jurídica é o que chamamos de ratio decidendi. Ela decorre da fundamentação do julgado, porque é com base nela que o juiz chegará, no dispositivo, a uma conclusão acerca da questão em juízo. Trata-se de norma geral, malgrado construída, mediante raciocínio indutivo, a partir de uma situação concreta. Geral porque a tese jurídica (ratio decidendi) se desprende do caso específico e pode ser aplicada em outras situações concretas que se assemelhem àquela em que foi originalmente construída"14.
Desse conceito de ratio decidendi decorre a dupla função por ela exercida: a primeira é interna, e a segunda, externa.
A função interna da ratio decidendi se revela na medida em que a norma jurídica geral, localizada principalmente na fundamentação da decisão, serve de fio condutor à norma jurídica individual, constante de seu dispositivo, que rege determinado caso.
Já a função externa da ratio decidendi se prende à potencialidade de a norma jurídica geral se desprender do caso específico no âmbito do qual foi construída e ser aplicada em outras situações concretas que se assemelham àquela em que foi originariamente formulada. A ratio decidendi, considerada em sua função externa, é o elemento do precedente judicial que tem aptidão para ser universalizado, razão pela qual pode operar vinculação15.
Afora a noção de ratio decidendi, outro conceito se revela igualmente importante na delimitação do precedente: o obiter dictum (obiter dicta, no plural), ou simplesmente dictum16, que é o argumento jurídico, consideração, comentário exposto apenas de passagem na motivação da decisão, que se convola em juízo normativo acessório, provisório, secundário, impressão ou qualquer outro elemento jurídico-hermenêutico que não tenha influência relevante e substancial para a decisão, ou seja, prescindível para o deslinde da controvérsia17.
Trata-se de colocação ou opinião jurídica adicional, paralela e dispensável para a fundamentação e conclusão da decisão. É mencionada pelo juiz "incidentalmente" ou "a propósito" ("by the way"), mas pode representar um suporte ainda que não essencial e prescindível para a construção da motivação e do raciocínio ali exposto18.
Normalmente é definido de forma negativa: é obiter dictum a proposição ou regra jurídica que não compuser a ratio decidendi19. Assim:
"o exemplo mais visível de utilização de um dictum é quando o tribunal de forma gratuita sugere como resolveria uma questão conexa ou relacionada com a questão dos autos, mas que no momento não está resolvendo"20.
Confira aqui a íntegra do artigo.
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1- Enunciado FPPC nº 166. (art. 926) A aplicação dos enunciados das súmulas deve ser realizada a partir dos precedentes que os formaram e dos que os aplicaram posteriormente.
2- DIDIER, Fredie. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016, p. 529.
3- ASSIS, Araken de. Manual dos Recursos. 9ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 341.
4- MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 214.
5- NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil Comentado. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 1485.
6- Enunciado FPPC nº 315. (art. 927). Nem todas as decisões formam precedentes vinculantes.
7- MARINONI, loc. cit.
8- DIDIER, Ibidem, p. 455.
9- DIDIER, loc. cit.
10- Enunciado FPPC nº 173. (art. 927) Cada fundamento determinante adotado na decisão capaz de resolver de forma suficiente a questão jurídica induz os efeitos de precedente vinculante, nos termos do Código de Processo Civil.
11- DIDIER, Ibidem, p. 455-456.
12- DIDIER, loc. cit.
13- TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: RT, 2004 p. 175.
14- DIDIER, Ibidem, p. 456.
15- TUCCI, Ibidem, p. 175-176.
16- Enunciado FPPC nº 318 (art. 927). Os fundamentos prescindíveis para o alcance do resultado fixado no dispositivo da decisão (obiter dicta), ainda que nela presentes, não possuem efeito de precedente vinculante.
17- DIDIER, Ibidem, p. 458.
18- DIDIER, loc. cit.
19- DIDIER, loc. cit.
20- SILVA, Celso de Albuquerque. Do efeito vinculante: sua legitimação e aplicação. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 185.