Migalhas de Peso

Precedente, efeito vinculante e coisa julgada

Ainda sobre o conceito de precedente, deve-se notar que, como já parece claro, nem toda decisão judicial consubstancia um precedente.

12/11/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Na quadra atual, a compreensão exata de cada um dos conceitos aqui versados mostra-se indispensável à atuação de qualquer operador do Direito.

A partir da noção de precedente, abordam-se as funções interna e externa da ratio decidendi, bem assim a diferenciação em relação ao conceito, elaborado de forma negativa, de obiter dictum.

Assentadas tais premissas, expõe-se o real significado de efeito vinculante, confrontando precedente e coisa julgada, considerados os limites subjetivos de cada qual.

Emergem, a seguir, os instrumentos de controle do precedente e os instrumentos de controle de sua aplicação, contrapondo-se, de um lado, overrulling, overriding e sinaling e, de outro, distinguishing, intervenção de amicus curiae, dever de publicidade, realização de audiência pública, embargos de declaração, agravo interno e, ainda que, por vezes, ostente função integrativa, a reclamação. O tema merece estudo atento.

1. Precedente e ratio decidendi: função interna e externa

Precedente, nas palavras de Didier, "é a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto1, cujo elemento normativo pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos"2.

Na mesma direção colhem-se as lições de Araken de Assis, destacando já aqui que nem todo precedente é vinculante:

"Precedente é, portanto, a decisão judicial sobre questão de direito, assentada em determinado esquema de fato, que fornece e a regula iuris para outros julgamentos. Nem todo precedente vincula necessariamente (binding precedent). Tampouco incorpora-se inelutavelmente à súmula da jurisprudência dominante. Em geral, o precedente tem caráter persuasivo (persuasive precedent): o acatamento da tese jurídica prende-se mais à consciência do magistrado, persuadido em seguir a linha jurisprudencial do tribunal em proveito da segurança jurídica, isonomia, confiança e – dado nada desprezível – da intrínseca facilidade de julgar mediante sua aplicação"3.

Ainda nesse sentido, a título de reforço, Marinoni aduz que "é possível dizer que o precedente é a primeira decisão que elabora a tese jurídica ou é a decisão que definitivamente a delineia, deixando-a cristalina"4.

Com orientação um pouco diversa, mas por se tratar de conhecido autor, cita-se, ainda, a definição de Daniel Assumpção, para quem "precedente é qualquer julgamento que venha a ser utilizado como fundamento de um outro julgamento que venha a ser posteriormente proferido"5.

Ainda sobre o conceito de precedente, deve-se notar que, como já parece claro, nem toda decisão judicial consubstancia um precedente6. Marinoni aponta que:

"Portanto, uma decisão pode não ter os caracteres necessários à configuração de precedente, por não tratar questão de direito ou se limitar a afirmar a letra da lei, como pode estar apenas reafirmando o precedente. Outrossim, um precedente requer a análise dos principais argumentos pertinentes à questão de direito, além de poder necessitar de inúmeras decisões para ser definitivamente delineado"7.

Demais disso, Fredie Didier disseca o precedente, indicando que é composto pelas: a) circunstâncias de fato que embasam a controvérsia; b) tese ou o princípio jurídico assentado na motivação (ratio decidendi) do provimento decisório; c) argumentação jurídica em torno da questão.

Assim, segundo o autor, "embora comumente se faça referência à eficácia obrigatória ou persuasiva do precedente, deve-se entender que o que pode ter caráter obrigatório ou persuasivo é a sua ratio decidendi"8, que constitui tão somente um dos elementos que compõem o precedente.

Em verdade, para Didier, o precedente, em sentido estrito, pode ser definido como sendo a própria ratio decidendi9.

E prossegue o renomado processualista, assentando que:

"A ratio decidendi – ou, para os norte-americanos, a holding – são os fundamentos jurídicos que sustentam a decisão10; a opção hermenêutica adotada na sentença, sem a qual a decisão não teria sido proferida como foi"11.

Nesse ponto, deve-se observar que o julgador, ao analisar o caso concreto, cria ou reconstrói necessariamente duas normas jurídicas. A primeira, de caráter geral, é fruto da sua interpretação/compreensão dos fatos envolvidos na causa e da sua conformação ao Direito positivo. A segunda, de caráter individual, constitui a sua decisão para aquela situação específica que se lhe põe para a análise12.

Em outros termos, "a ratio decidendi constitui a essência da tese jurídica suficiente para decidir o caso concreto (rule of law)"13 e a norma jurídica geral, que construída por um órgão jurisdicional, a partir de um caso concreto, pode servir como diretriz no julgamento de demandas semelhantes.

De sorte a ilustrar o que aqui se destaca, Didier fornece o seguinte exemplo:

"O art. 700 do CPC permite o ajuizamento de ação monitória a quem disponha de 'prova escrita' que não tenha eficácia de título executivo. 'Prova escrita' é termo vago. O STJ decidiu que 'cheque prescrito' (n. 299 da súmula do STJ) e 'contrato de abertura de conta-corrente acompanhado de extrato bancário' (n. 247 da súmula do STJ) são exemplos de prova escrita. A partir de casos concretos, criou 'duas normas gerais' à luz do Direito positivo, que podem ser aplicadas em diversas outras situações, tanto que se transformaram em enunciado da súmula daquele Tribunal Superior. Note que a formulação desses enunciados sumulados não possui qualquer conceito vago, não dando margem a muitas dúvidas quanto à sua incidência. Como se percebe, à luz de uma situação concreta, o julgador termina por criar uma norma que consubstancia a tese jurídica a ser adotada naquele caso –por exemplo, 'cheque prescrito' se enquadra no conceito de 'prova escrita' de que fala o art. 700 do CPC. Essa tese jurídica é o que chamamos de ratio decidendi. Ela decorre da fundamentação do julgado, porque é com base nela que o juiz chegará, no dispositivo, a uma conclusão acerca da questão em juízo. Trata-se de norma geral, malgrado construída, mediante raciocínio indutivo, a partir de uma situação concreta. Geral porque a tese jurídica (ratio decidendi) se desprende do caso específico e pode ser aplicada em outras situações concretas que se assemelhem àquela em que foi originalmente construída"14.

Desse conceito de ratio decidendi decorre a dupla função por ela exercida: a primeira é interna, e a segunda, externa.

A função interna da ratio decidendi se revela na medida em que a norma jurídica geral, localizada principalmente na fundamentação da decisão, serve de fio condutor à norma jurídica individual, constante de seu dispositivo, que rege determinado caso.

Já a função externa da ratio decidendi se prende à potencialidade de a norma jurídica geral se desprender do caso específico no âmbito do qual foi construída e ser aplicada em outras situações concretas que se assemelham àquela em que foi originariamente formulada. A ratio decidendi, considerada em sua função externa, é o elemento do precedente judicial que tem aptidão para ser universalizado, razão pela qual pode operar vinculação15.

Afora a noção de ratio decidendi, outro conceito se revela igualmente importante na delimitação do precedente: o obiter dictum (obiter dicta, no plural), ou simplesmente dictum16, que é o argumento jurídico, consideração, comentário exposto apenas de passagem na motivação da decisão, que se convola em juízo normativo acessório, provisório, secundário, impressão ou qualquer outro elemento jurídico-hermenêutico que não tenha influência relevante e substancial para a decisão, ou seja, prescindível para o deslinde da controvérsia17.

Trata-se de colocação ou opinião jurídica adicional, paralela e dispensável para a fundamentação e conclusão da decisão. É mencionada pelo juiz "incidentalmente" ou "a propósito" ("by the way"), mas pode representar um suporte ainda que não essencial e prescindível para a construção da motivação e do raciocínio ali exposto18.

Normalmente é definido de forma negativa: é obiter dictum a proposição ou regra jurídica que não compuser a ratio decidendi19. Assim:

"o exemplo mais visível de utilização de um dictum é quando o tribunal de forma gratuita sugere como resolveria uma questão conexa ou relacionada com a questão dos autos, mas que no momento não está resolvendo"20.

Confira aqui a íntegra do artigo.

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1- Enunciado FPPC nº 166. (art. 926) A aplicação dos enunciados das súmulas deve ser realizada a partir dos precedentes que os formaram e dos que os aplicaram posteriormente.

2- DIDIER, Fredie. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016, p. 529.

3- ASSIS, Araken de. Manual dos Recursos. 9ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 341.

4- MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 214.

5- NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil Comentado. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 1485.

6- Enunciado FPPC nº 315. (art. 927). Nem todas as decisões formam precedentes vinculantes. 

7- MARINONI, loc. cit.

8- DIDIER, Ibidem, p. 455.

9- DIDIER, loc. cit.

10- Enunciado FPPC nº 173. (art. 927) Cada fundamento determinante adotado na decisão capaz de resolver de forma suficiente a questão jurídica induz os efeitos de precedente vinculante, nos termos do Código de Processo Civil.

11- DIDIER, Ibidem, p. 455-456.

12- DIDIER, loc. cit.

13- TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: RT, 2004 p. 175.

14- DIDIER, Ibidem, p. 456.

15- TUCCI, Ibidem, p. 175-176.

16- Enunciado FPPC nº 318 (art. 927). Os fundamentos prescindíveis para o alcance do resultado fixado no dispositivo da decisão (obiter dicta), ainda que nela presentes, não possuem efeito de precedente vinculante.

17- DIDIER, Ibidem, p. 458.

18- DIDIER, loc. cit.

19- DIDIER, loc. cit.

20- SILVA, Celso de Albuquerque. Do efeito vinculante: sua legitimação e aplicação. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 185.

William Akerman
Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro (DPE/RJ). Assessor de Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e de Ministro Membro Substituto do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ex-Procurador do Estado do Paraná (PGE/PR). Membro do Grupo de Trabalho sobre Reconhecimento de Pessoas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Priscila Machado
Advogada com atuação em Tribunais Superiores. Sócia do escritório PM Advocacia. Consultora Jurídica Empresarial. CEO do Curso Sobredireito e da Editora Sobredireito. Ex-Assessora de Gabinete no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Membro da Junta Eleitoral perante o Tribunal Regional Eleitoral do Estado do Rio de Janeiro. Colaboradora no livro “Mandado de Segurança e Mandado de Injunção no Supremo Tribunal Federal” da Editora Juspodivm.

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