Migalhas de Peso

Pode o réu foragido ser ouvido em interrogatório por meio de audiência virtual?

Questionamento relevante que se impõe, diante deste cenário, é se seria possível a oitiva do acusado em audiência virtual.

11/11/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Com a pandemia do convid-19, as relações humanas sofreram mudança brusca e as instituições, que antes funcionavam sob o requisito do comparecimento pessoal de seus representantes e de quem dela precisava, tiveram de rever esta exigência, na intenção de se adequarem às normas que buscavam diminuir ou evitar o contágio pelo novo coronavírus.

Portanto, os tribunais de justiça do país, para não paralisarem o andamento dos processos, admitiram, como regra, a modalidade virtual para realização de audiências¹, que outrora eram sempre presenciais, à exceção do interrogatório do réu no processo penal, que poderia se dar por videoconferência (§2º, art. 185, CPP), mas em caráter excepcional.

A realização deste tipo de audiência, em geral, se dá da seguinte forma: a secretaria judicial envia às partes e aos advogados, via whatsapp ou e-mail, um link de acesso à sala virtual. Possuindo qualquer aparelho com acesso à internet, câmera e microfone, é possível participar do ato. Logo, estando as partes e testemunhas com o equipamento correto, poderão fazer-se presentes e serem ouvidas, estejam onde estejam.

Questionamento relevante que se impõe, diante deste cenário, é se seria possível a oitiva do acusado em audiência virtual, mesmo estando com mandado de prisão em aberto contra si.

Recentemente, no HC. 640.770/SP, o STJ decidiu que o réu foragido não poderia ser ouvido na audiência virtual, pois isto significaria a premiação da astúcia. A defesa, no caso concreto, pretendia a aplicação, por interpretação analógica/analogia in bonam partem, do art. 220 do CPP², a fim de que o réu fosse ouvido onde estivesse, por meio virtual, ainda que não se tratasse de pessoa impedida de comparecer por velhice ou enfermidade.

Veja-se a transcrição do que decidiu o TJ-SP, cuja decisão foi objurgada, via HC, junto ao STJ, o qual confirmou o entendimento do tribunal de base:

Também não é caso de aplicação do artigo 220 do Código de Processo Penal, já que o paciente não se enquadra nas hipóteses de incidência (enfermidade ou velhice). Além disso, é evidente que o paciente furtar-se à aplicação da lei penal já que, desde a decretação de sua prisão preventiva (junto com o recebimento da denúncia), não foi mais localizado pelo Poder Público, constando como procurado em consulta ao sistema VEC. Assim, não é caso de aplicação do artigo 220 do Código de Processo Penal, ainda que realizada uma interpretação in bonam partem, sob pena de premiar a astúcia do acusado em escapar da decisão que decretou sua prisão preventiva.

Para que se compreenda melhor a possibilidade aventada, necessário que, de saída, defina-se a natureza do interrogatório, compreendido modernamente como meio de defesa, ainda que ostente valor probatório, pois no contexto do modelo acusatório vertido na atual Constituição da República, o ato está inserido no espectro da ampla defesa, conforme aduz PACELLI.³

Em outras palavras, o interrogatório, ao ser tido como essencialmente direito de defesa (na espécie autodefesa, pois realizada pelo próprio acusado), somente por via reflexa servirá de prova, já que esta, de regra, pode ser requerida pelas partes, ao passo que o interrogatório é ato cuja disposição é do réu e somente dele, mesmo que pleiteado pelo Ministério Público ou pela defesa técnica. Não poderá o réu sequer ser obrigado a comparecer em juízo, conforme decisão do STF nas ADPF’s 395 e 444, que proíbe a condução coercitiva de investigados/processados.

Considerando estas premissas, não há como concordar com o posicionamento segundo o qual o interrogatório de pessoa foragida seria um louvor à esperteza.

Primeiro, porque o interrogatório não muda sua natureza pelo fato de haver mandado de prisão em aberto contra o acusado. Imagine-se o réu ser ouvido virtualmente, trazendo sua versão dos fatos, apontando provas, indicando testemunhas, confessando delitos ou delatando etc. Deixaria de ser ato essencialmente de defesa apenas porque há uma ordem de prisão que, inclusive, pode se revelar ilegal posteriormente e, às vezes, até em razão mesmo do conteúdo do interrogatório? Com certeza, não. Continuaria sendo, evidentemente, meio de defesa.

Segundo, porque se é ato de defesa, não é o fato de estar foragido que lhe retirará este direito, que advém da lei e do próprio texto constitucional, os quais não preveem a prisão como condição. Aliás, somente poderia lhe tolher se a audiência fosse presencial, já que ao estar no local da audiência ocorreria o cumprimento do mandado pelos policiais ali presentes. Tal fato, porém, nada tem de ver com a natureza do ato em si, mas com as possibilidades fáticas, as quais foram modificadas substancialmente com a adoção da audiência por videoconferência.

Advirta-se mais uma vez que, nem a lei, nem o texto constitucional, exigem como condição do exercício da autodefesa mediante interrogatório o recolhimento do acusado à prisão. Tal hipótese faz-nos lembrar do revogado art. 593 do CPP, extirpado por completo pela lei 11.719/08, que exigia o recolhimento do réu à prisão para que pudesse apelar.

Em apertada síntese, se é possível o interrogatório com o réu foragido, não há impedimento legal a fazê-lo e entendimentos de ordem moral não podem sacrificá-lo. E se é possível exercer o direito ao recurso sem recolher-se à prisão, igualmente se deve entender em relação à autodefesa por meio de interrogatório.

Consta da Convenção Americana dos Direitos Humanos que toda pessoa terá pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, bem como o direito de defender-se pessoalmente (art. 8º, 1 e 2-d).

Evidentemente, o direito de ser ouvido e a defesa pessoal a que se referem as normas da convenção citada, são aqueles exercidos por meio do interrogatório, prestigiado e concedido sem qualquer condição ab initio, inclusive prisão do réu.

O que fica a parecer é que o judiciário, ao adotar como regra as audiências virtuais, mesmo depois da diminuição dos efeitos da pandemia, deseja usufruir das benesses desta escolha (juízes, promotores e servidores podendo realizar os atos em homeoffice), mas pretende rejeitar consequências naturais de referida adoção, sendo uma delas a possibilidade fática do réu foragido manifestar-se em seu interrogatório virtual.

Terceiro, porque o interrogatório, seja em razão de sua realização mesma ou de seu conteúdo, não prejudicará a persecução criminal, pois é o último ato da instrução, após terem sido ouvidas todas as testemunhas e produzidas as demais as provas.

Aliás, ao ouvir o réu, o juízo poderá se convencer da ausência de periculosidade quanto à prisão preventiva decretada (periculum libertatis), impondo-lhe outras medidas cautelares suficientes, como o monitoramento eletrônico. Caso contrário, poderá manter o decreto prisional, seguindo o processo em curso normal, sem alterações.

Quando o Judiciário esteve disposto a modificar a estrutura de realização da audiência, tornando-a virtual, modificou também uma série de consectários e um deles foi em relação à presença das partes. Todos os atos processuais previstos em lei que antes dependiam da presença física dos envolvidos para sua realização, assim, foram reestruturados, não mais necessitando deste requisito para sua feitura.

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1- As resoluções nº 341/2020 e 354/2020 do CNJ, preveem e disciplinam a realização de audiência por videoconferência e telepresencial, ambas modalidades da audiência virtual.

2- Art. 220.  As pessoas impossibilitadas, por enfermidade ou por velhice, de comparecer para depor, serão inquiridas onde estiverem.

3- PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 25 ed. São Paulo: Atlas, 2021, p. 297.

Jimmy Deyglisson
Especialista em ciências penais, vice-presidente da ABRACRIM-MA, membro associado do ICP - Instituto de Ciências Penais, ex-policial civil, professor de Direito Penal e Processual Penal e advogado criminalista.

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