Migalhas de Peso

Cirurgia reparadora pós bariátrica e o dever de cobertura seguradora de saúde

Apesar do rol de procedimentos da ANS não dispor sobre o tratamento em questão, a jurisprudência pátria vem excepcionando tal regramento e impondo aos planos de saúde dever de cobertura da cirurgia quando não for meramente estética.

11/11/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

O presente trabalho visa discutir o dever de cobertura de cirurgias reparadoras pós a realização de cirurgia bariátrica pelas seguradoras de saúde e a sua obrigação de reparação em caso de negativa de cobertura.

A fim de investigar o tema, o artigo explora a incidência do diploma consumerista na relação entre o segurador e o segurado demonstrando quais são suas implicações aos consumidores e aos prestadores de serviços.

É, contudo, necessário se ter em mente que há outras normas aplicáveis ao caso concreto e que essas não se excluem, mas são aplicadas complementarmente1. Isso significa dizer que para além da aplicação do Código de Defesa do Consumidor, aplica-se também aos planos de saúde a lei 9.656/1998 e outras normas que, por ventura, comportem ao caso concreto, a título de exemplo, as resoluções da Agência Nacional de Saúde – ANS2.

Dessa forma, a cirurgia reformadora deve se atentar especificamente a seguinte questão: o tratamento que se visa a cobertura é meramente estético ou é necessário para salvaguardar a saúde do paciente?

Isso porque o dever de cobertura da seguradora de saúde irá depender, invariavelmente, da resposta a questão anteriormente exposta. Afinal, apesar do rol de procedimentos da ANS não dispor sobre o tratamento em questão, a jurisprudência pátria vem excepcionando tal regramento e impondo aos planos de saúde dever de cobertura da cirurgia quando não for meramente estética.

Assim, faz-se necessário se atentar também a questão atinente ao dever de indenizar do plano de saúde quando da negativa de cobertura da cirurgia reformadora, o qual é entendido como presumido.

Todavia, esse entendimento poderá ser alterado quando do resultado do julgamento do ERESP 1.886.929/SP e ERESP 1.889.704/SP que discutem a taxatividade do rol de procedimento da ANS.

A doutrina nacional dispõe, há muito tempo, quanto à natureza da relação jurídica existentes entre as partes, a qualificando como típica relação de consumo, sobre a qual incidem as regras e os princípios do CDC, com supremacia à lei 9.656/19883.

De igual forma, a jurisprudência nacional entende pela aplicação do Código de Defesa do Consumidor nas relações entre segurados e seguradores de saúde. Não por outra razão, o Superior Tribunal de Justiça sumulou tal entendimento por meio do Enunciado 469, segundo o qual “aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde”.

Dessa constatação, emergem aos segurados uma série de garantias, notadamente pelo reconhecimento de sua vulnerabilidade, e são impostos aos seguradores de saúde uma série de deveres. A título de exemplo, são garantidos aos consumidores que lhes seja(m) garantida(s) informações adequadas sobre o produto e/ou serviço contratado, proteção contra publicidade enganosa, proteção contratual e outros.

No sentido oposto, é dever dos seguradores de saúde prestar informações claras e necessárias aos seus clientes, não prestar publicidade que possa conduzir o consumidor em erro, bem como, zelar pela boa-fé contratual tendo em mente a vulnerabilidade dos consumidores.

É certo, portanto, que a aplicação do Código de Defesa do Consumidor influi na relação contratual entre as partes ante o reconhecimento desses deveres e garantias. Todavia, em razão a aplicação da teoria do diálogo das fontes, é certo que há outras normas aplicáveis ao caso concreto e que essas não se excluem, mas são aplicadas complementarmente.

Como anteriormente antecipado, a lei dos Planos de Saúde (lei 9.656/1988) também incide na hipótese, a qual estabelece que compete à Agência Nacional de Saúde (ANS) estabelecer o rol de procedimentos e eventos de saúde de garantia mínima pelas seguradoras de saúde, bem como suas excepcionalidades.

É importante, no entanto, constatar que não são todas as cirurgias reparadoras que constam do rol de procedimentos elegidos pela ANS, de forma que o dever de cobertura das cirurgias reparadoras importa precisamente na discussão acerca da taxatividade do referido rol.

Isso porque, caso o rol seja entendido como taxativo, o procedimento não deve ser coberto pelos planos de saúde, uma vez que não consta no rol de procedimentos e eventos de saúde da ANS que entende se tratar de procedimento estético.

No entanto, caso seja considerado meramente exemplificativo, o dever de cobertura será devido, tendo em vista que a jurisprudência nacional entende que o procedimento é de recomendação médica e visa a integralidade da recuperação do indivíduo.

A ausência de previsão desses procedimentos no rol de procedimentos da ANS faz com que os beneficiários dos planos de saúde, por muitas vezes, se socorram ao poder judiciário, pleiteando a realização de procedimentos reparadores pós bariátricos, bem como indenização por danos morais nos casos de negativa.

Ao decidir sobre tais demandas, os Tribunais Pátrios têm entendido pela obrigatoriedade da cobertura de tais procedimentos. Isso porque, no seu entender, tais cirurgias não possuem fins estéticos, mas sim reparadores quando houver indicação de médico devidamente habilitado para sua prescrição.

Veja-se, por exemplo, as Súmulas 2584 do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, as Súmulas 975 e 1026 do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e a Súmula 30 do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco7.

Esse também é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça que dispõe:

RECURSO ESPECIAL.  CIVIL.  PLANO DE SAÚDE.  PACIENTE PÓS-CIRURGIA BARIÁTRICA.  DOBRAS DE PELE.  CIRURGIAS PLÁSTICAS.  NECESSIDADE. CARÁTER   FUNCIONAL   E   REPARADOR.  EVENTOS COBERTOS.  FINALIDADE EXCLUSIVAMENTE ESTÉTICA.  AFASTAMENTO. RESTABELECIMENTO INTEGRAL DA SAÚDE.  DANOS MORAIS. CONFIGURAÇÃO. VALOR INDENIZATÓRIO. MANUTENÇÃO. RAZOABILIDADE. SÚMULA Nº 7/STJ.

(...)

5. Há situações em que a cirurgia plástica não se limita a rejuvenescer ou a aperfeiçoar a beleza corporal, mas se destina primordialmente a reparar ou a reconstruir parte do organismo humano ou, ainda, prevenir males de saúde. 6.  Não  basta a operadora do plano de assistência médica se limitar ao  custeio  da  cirurgia  bariátrica  para  suplantar  a  obesidade mórbida,  mas  as resultantes dobras de pele ocasionadas pelo rápido emagrecimento também devem receber atenção terapêutica, já que podem provocar  diversas complicações de saúde, a exemplo da candidíase de repetição,  infecções bacterianas devido às escoriações pelo atrito, odores  e  hérnias,  não  qualificando,  na  hipótese, a retirada do excesso   de  tecido  epitelial  procedimento  unicamente  estético, ressaindo sobremaneira o seu caráter funcional e reparador. Precedentes. 7.  Apesar de a ANS ter apenas incluído a dermolipectomia no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde para o tratamento dos males pós-cirurgia bariátrica, devem ser custeados todos os procedimentos cirúrgicos de natureza reparadora, para assim ocorrer a integralidade de ações na recuperação do paciente, em obediência ao art. 35-F da lei 9.656/1998.8

É possível, assim, perceber que há uma clara dicotomia entre o entendimento da Agência Nacional de Saúde e do Poder Judiciário quanto ao tema. A dissonância desses entendimentos esbarra, como antecipado, na discussão acerca da taxatividade do rol de procedimentos da ANS. 

Isso porque, caso seja entendido como taxativo, irá necessariamente conduzir ao entendimento de que as seguradoras de saúde podem recursar-se legitimamente a cobrir o procedimento, sem ter que indenizar o segurado.

O julgamento do ERESP 1.886.929/SP e ERESP 1.889.704/SP tende a pôr fim na discussão acerca da taxatividade do rol de procedimentos. Os referidos embargos de divergência foram opostos em razão de entendimento dissonantes das turmas de Direito Privado do E. Superior Tribunal de Justiça no que tange a restrição de coberturas do plano de saúde pautadas no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS.

De forma específica, a Terceira Turma entende ser abusiva a cláusula que restringe a cobertura do plano de saúde ao Rol de Procedimentos da ANS por esse ser meramente exemplificativo, enquanto a Quarta Turma entende que a prestação de serviços é restrita ao referido rol e demais previstos em contrato, uma vez que a observância à lei 9.656/98 é obrigatória pelas operadoras de planos de saúde.

Iniciado o julgamento dos referidos embargos de divergência, o Min. Luis Felipe Salomão, relator do caso na 2ª Seção, manteve o entendimento da 4ª Turma, entendendo que o rol é taxativo, mas com algumas excepcionalidades.

O seu voto foi calcado no entendimento de que o rol constitui como garantia do consumidor assegurar seu direito à saúde com preços acessíveis comtemplando boa camada da sociedade, haja vista que quanto maior o número de procedimentos cobertos, maior será o valor de seu prémio.

Por outro lado, estabelecer que o rol é meramente exemplificativo teria o condão de igualar todos os planos de saúde os obrigando tacitamente a garantir todo e qualquer tratamento prescrito para garantir à saúde do segurado.

Ademais, entendeu que tal fato poderia restringir a livre concorrência e aumentar os custos dos planos de sáude, uma vez que as seguradoras estariam obrigadas a garantir todo e qualquer tratamento prescrito aos seus segurados.

Além disso, registrou uma visão consequencialista de quais os prejuízos que uma decisão que reconheça que o rol seja exemplificativo possa trazer, de tal sorte que a decisão poderia: (i) elevar significativamente o custo dos planos; ou (ii) inviabilizar a atividade dos operadores de saúde.

Todavia, aduziu que há excepcionalidade no rol, a saber, que há procedimentos não previstos nele, mas que devem ter cobertura, tais como: (i) medicamentos para tratamento de câncer no uso ambulatorial hospitalar; (ii) medicamentos administrados durante a internação hospitalar; e (iii) procedimentos off label.

O julgamento, contudo, foi suspenso após o pedido de vista da Min. Nancy Andrighi. No entanto, caso a tese do Ministro relator se consagre vencedora, a discussão sobre o dever de cobertura de procedimentos pós bariátricos será impactado, fazendo com que os Tribunais revisitem necessariamente o seu entendimento.  

Assim, considerando a possibilidade de se estabelecer que o rol de procedimentos da ANS é taxativo, a fim de salvaguardar a segurança jurídica quanto ao dever de cobertura dos planos de saúde em garantir os procedimentos pós bariátricos aos segurados, recomenda-se a inclusão dessas cirurgias no referido rol.

Essa solução irá proteger tanto o interesse dos consumidores de que o procedimento seja assegurado, bem como dos segurados de que o rol de procedimentos seja interpretado como taxativo.

__________

1 TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: Volume único I. 6. Ed. Rev., atual. Eampl. - Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2016. p. 65

2 MARQUES, Cláudia Lima e SCHMITT, Cristiano Heineck; Visões sobre os planos de saúde privada e o Código de Defesa do Consumidor. p. 46.

3 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 4. ed. São Paulo: RT, 2002, p. 548- 551; GREGORI, Maria Stella. Seguros de saúde. São Paulo: RT, 2007, p. 161.

4 “A cirurgia plástica, para retirada do excesso de tecido epitelial, posterior ao procedimento bariátrico, constitui etapa do tratamento da obesidade mórbida e tem caráter reparador.”

5 “Não pode ser considerada simplesmente estética a cirurgia plástica complementar de tratamento de obesidade mórbida, havendo indicação médica.”

6 “Havendo expressa indicação médica, é abusiva a negativa de cobertura de custeio de tratamento sob o argumento da sua natureza experimental ou por não estar previsto no rol de procedimentos da ANS.”

7 “É abusiva a negativa de cobertura da cirurgia plástica reparadora complementar de gastroplastia”

8 REsp 1757938/DF, 3ª Turma, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 05/02/2019, DJe 12/02/2019

Tiago Barbosa Reis
Graduando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB)

Mariana Ferreira Vogado
Graduanda em Direito no Centro Universitário de Brasília (CEUB)

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