Migalhas de Peso

O direito contratual, a boa-fé objetiva, o comportamento contraditório e a exigência de voluntariedade

O que hoje é causa de atrito se tornará trapiche de concordância, um oceano de diálogo e busca de resolução amistosa e rápida de controvérsias, premiando a prática, a celeridade, a boa-fé e, sim, a visão econômica do Direito. A arbitragem nasceu para ser solução de problemas, não estopim de tantos outros. Então que assim seja.

11/11/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

“Embora seja possível, em casos específicos, o reconhecimento da validade de contratos verbais, a premissa não vigora em relação à cláusula compromissória, tendo em vista que tal compromisso é autônomo em relação ao contrato subjacente, conforme previsão constante do artigo 8º da lei 9.307/96. Inexistente, portanto, a possibilidade de afastar-se a atuação jurisdicional sem que previamente as partes tenham optado, formalmente, expressamente e solenemente, pelo juízo arbitral”. [Fundamento do acórdão do TJDF expressamente citado e referendado no REsp 1881149-DF (2019/0345908-4)]

No dia 1 de junho de 2021, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça negou provimento ao Recurso Especial 1881149-DF (2019/0345908-4).

A decisão tratou do princípio da boa-fé objetiva e do comportamento contraditório nas relações contratuais.

A ementa do acórdão, relatado pela ilustre Ministra Nancy Andrighi – de quem sou confesso admirador –, diz: “A forma do negócio jurídico é o modo pelo qual a vontade é exteriorizada. No ordenamento jurídico pátrio, vigora o princípio da liberdade da forma (art. 107 do CC/02). Isto é, salvo quando a lei requerer expressamente forma especial, a declaração de vontade pode operar de forma expressa, tácita ou mesmo pelo silêncio (art. 111 do CC/02).”

E ainda: “A manifestação de vontade tácita configura-se pela presença do denominado comportamento concludente. Ou seja, quando as circunstâncias evidenciam a intenção da parte em anuir com o negócio. A análise da sua existência dá-se por meio da aplicação da boa-fé objetiva na vertente hermenêutica”.

O voto que gerou o acórdão é magnífico. Não exageraria de modo algum se afirmasse, aqui, que seu conteúdo é solo fértil para a elaboração de artigos e ensaios sobre a boa-fé objetiva, o comportamento contraditório (e a vedação a ele), a mitigação do rigor legis, a validade do negócio jurídico, a regularidade das formas etc.

Para alguém que não é formalista, causa alegria uma afirmação como esta: “Assim, a alegação de nulidade por vício formal configura-se comportamento contraditório com a conduta praticada anteriormente. Por essa razão, a boa-fé tem força para impedir a invocação de nulidade do contrato de franquia por inobservância da forma prevista no art. 6º da lei 8.955/94.”

Valorizo demais o princípio da boa-fé objetiva, de que trata o art. 422 do Código Civil [“Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”]. No voto, a abordagem dele é feita sob dois aspectos: hermenêutico e limitador do exercício de direito subjetivo.

Para conceituar e aplicar a boa-fé, a Douta Ministra amparou-se em forte doutrina: “a expressão boa-fé objetiva (boa-fé normativa) designa não uma crença subjetiva, nem um estado de fato, mas aponta, concomitantemente a: (i) um instituto ou modelo jurídico (estrutura normativa alcançada pela agregação de duas ou mais normas; (ii) um standard ou modelo comportamental pelo qual os participantes do tráfico obrigacional devem ajustar o seu mútuo comportamento standard direcionador de condutas, a ser seguido pelos que pactuam atos jurídicos, em especial os contratantes; e (iii) um princípio jurídico (norma de dever que aponta, imediatamente, a um estado ideal de coisas)” (MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado: critérios para sua aplicação. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 281-282).”

A boa-fé tem definições religiosas, morais e jurídicas. Pode ser subjetiva e objetiva. Neste momento, interessa a abordagem que se ocupa do standard. Muito rico nesse sentido o estudo de Eduardo Tomasevicius Filho que, citando Vouin, Volansky, Jaluzot e Farnsworth, afirma: “Devido à carga emocional do conceito de boa-fé, o standard ligado a esta consiste na ação honesta e leal. Focaliza-se o meio para alcançar o resultado, isto é, se a pessoa agiu de forma adequada, de acordo com os usos e costumes, e as regras da experiência, sintetizadas nas ideias de lealdade e honestidade. Quem pauta sua conduta pelo standard de boa-fé, certamente estará agindo de acordo com o que exige o princípio da boa-fé.” (O princípio da boa-fé no direito civil, São Paulo: Almedina, 2020, p. 90).

E o autor ainda ressalta os diferentes graus do exercício da boa-fé, diferenciando a good faith e a utmost good faith (bona fides e uberrima fides): “Sendo esta um modelo de conduta, existem graus de boa-fé. É possível agir de acordo com esta mediante a abstenção de agir mal, ou agir com todos os esforços para cumprir com sua obrigação. (...) Tendo em vista que para se atingir determinado grau de boa-fé se faz necessário maior ou menor esforço, esta incorpora o dever de diligência, ou, em linguagem moderna, impõe intensidades para o cumprimento dos deveres de acordo com o caso.” (Op. Cit. p. 90-91).

Diante dessas afirmações, pode-se dizer que a boa-fé é um princípio para a conduta dos contratantes que se liga à eficiência. Assim, fica introjetada na Lex Artis, no due of diligence, nos covenants, no dever geral de cautela, entre outros institutos que informam os deveres contratuais.

Natural então que a decisão tenha vinculado o princípio da boa-fé à vedação ao comportamento contraditório. Quem coloca em prática os termos contratuais, quem não lhes opõe resistência, não pode alegar nulidade por vício formal ou qualquer outra causa. Do contrário, agirá com manifesta incoerência em relação a seus próprios atos, o que não é aceitável.

Quanto a isso a ementa do acórdão é bastante dura: “A proibição à contrariedade desleal no exercício de direitos manifesta-se nas figuras da vedação ao comportamento contraditório (nemo potest venire contra factum proprium) e de que a ninguém é dado beneficiar-se da própria torpeza (nemo auditur propriam turpitudinem allegans). A conservação do negócio jurídico, nessa hipótese, significa dar primazia à confiança provocada na outra parte da relação contratual.”.

E, robustecidos pela doutrina, os fundamentos atingem a manifestação de vontade tácita: “(...) dá-se por meio de um comportamento concludente, assim configurado quando incompatível com a não aceitação” (MOTA PINTO, Paulo. Op. cit., p. 546). Nas palavras de Miranda, configura-se “por atos ou omissões que hajam de interpretar, conforme as circunstâncias, como manifestação de vontade do ofertante ou do aceitante” (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo XXXVIII. Atualizado por Claudia Lima Marques e Bruno Miragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 88).

Paulo Henrique Cremoneze
Advogado com atuação em Direito do Seguro e Direito dos Transportes. Sócio do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas - Advogados Associados. Mestre em Direito Internacional Privado. Especialista em Direito do Seguro.

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