Migalhas de Peso

Da onerosidade excessiva

Este artigo tem como objetivo precípuo a análise dos efeitos que a pandemia do coronavírus provocou no Brasil no âmbito das relações jurídicas privadas, sobretudo nas execuções de forma geral. Algumas mudanças têm sido notadas nesse cenário.

8/11/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A pandemia que assola o mundo desde o ano de 2020 causada pela rápida proliferação do vírus denominado SARS-CoV-2, popularmente conhecido apenas como coronavírus, promoveu mudanças drásticas na sociedade como se conhece há anos.

Isso porque, não obstante a todo o progresso conquistado até então, a população mundial se deparou com situação trágica, considerando-se o número de infectados e óbitos que se tem notícia, estando o Brasil entre os quatro países do mundo com maior número de casos e mortes, tragicamente.

No âmbito jurídico, tela principal da discussão que se aborda, as implicações são conturbadas. Como se pretende evidenciar no decorrer deste trabalho, nota-se que o Judiciário, desde os primórdios da pandemia, tem sido provocado quanto a tomada de maior número de decisões e, não raro, inovadoras e surpreendentes, sobretudo na esfera do direito privado, tecendo entendimentos capazes de revolucionar as relações privadas destoando da maneira que se tem conhecimento até então.

No contexto de imprevisibilidade discutido, há que se ressaltar, nesse sentido, a chamada teoria da onerosidade excessiva, que se depreende a partir do artigo 478, do Código Civil. Caio Mário da Silva Pereira assim dispõe quanto ao tema:

Admitindo-se que os contratantes, ao celebrarem a avença, tiveram em vista o ambiente econômico contemporâneo, e previram razoavelmente para o futuro, o contrato tem de ser cumprido, ainda que não proporcione às partes o benefício esperado. Mas, se tiver ocorrido modificação profunda nas condições objetivas coetâneas da execução, em relação às envolventes da celebração, imprevistas e imprevisíveis em tal momento, e geradoras de onerosidade excessiva para um dos contratantes, ao mesmo passo que para o outro proporciona lucro desarrazoado, cabe ao prejudicado insurgir-se e recusar a prestação.

Não raro, a teoria é invocada para que haja revisão contratual quando uma das partes alega que a avença carrega um desequilíbrio obrigacional, tornando o contrato oneroso em demasia. Em tempos de pandemia, a premissa é ainda mais aplicada, posto que, tal como trazido oportunamente, as transações comerciais sofreram alterações, bem como há de se considerar alta nas taxas de desemprego, ocasionando alegações de inviabilidade contratual. Tendo como requisito primordial a ocorrência de um evento que se reputa imprevisível tão relevante a ponto de impactar as relações jurídicas privadas, a teoria da onerosidade excessiva guarda alta relevância para manutenção da existência contratual.

Dessa feita, seu cenário pode existir em situações excepcionais que ocasionam referido desequilíbrio contratual, conforme Caio Mario da Silva Pereira:

No sentido puramente técnico, portanto, tem-se que pandemias, guerras, grandes e globais depressões econômicas — e os consectários decorrentes desses eventos — devem ser entendidas como eventos imprevisíveis, que impactam nas negociações privadas, elevando os custos envolvidos em todo e qualquer contrato, desequilibrando as prestações obrigacionais inicialmente entabuladas entre as partes e, assim, inviabilizando — ou ao menos sobrecarregando — a manutenção das avenças firmadas, na forma inicialmente imaginada.

Todavia, como bem ressalva Orlando Gomes, o mero agravamento da situação econômica, culminando em maior onerosidade ao contratante, não enseja suficientemente a aplicação da teoria da onerosidade excessiva. Assim, tal como ensina a doutrina, a lei exige que haja uma dificuldade em demasia a ponto de que recaia sobre a parte dificuldade tamanha a ponto de ter que se sacrificar economicamente para viabilizar o cumprimento adequado do contrato.

Nessa toada que, em sede de Recurso Inominado dos autos 1007317-47.2020.8.26.0320, a Turma Recursal de Limeira do TJ-SP entendeu que a teoria em tela restou incontestavelmente comprovada, uma vez que a atividade econômica exercida pela parte autora sofreu claro revés com a situação pandêmica, assegurando a necessidade de revisão do contrato objeto da lide.

Assim, em uma clara tentativa de se manter a relação entabulada pelas partes, o Judiciário tem compreendido cada vez mais claramente quanto à necessidade de revisão das cláusulas avençadas, privilegiando-se o reequilíbrio contratual, afastando a onerosidade excessiva, tal como suscitado.

O Enunciado 176 do CJF/STJ da II Jornada de Direito Civil recomenda nesse mesmo sentido, entendendo pela primazia da conservação dos negócios jurídicos em homenagem às disposições do Código Civil, priorizando, sempre que possível, a revisão contratual a fim de se evitar a sua resolução.

De outro modo, encontramos decisões em que o pleito foi julgado favorável aos réus uma vez que o autor não comprovou perda de poder aquisitivo em decorrência da COVID-19, ou seja, a teoria da onerosidade excessiva restou rechaçada. Como é o caso da Apelação Cível 1017466-41.2020.8.26.0405 que negou provimento ao recurso da parte autora vez mantendo-se a sentença atacada. Conforme podemos observar abaixo:

RECURSO DE APELAÇÃO INTERPOSTO CONTRA R. SENTENÇA PELA QUAL FOI JULGADA IMPROCEDENTE AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER - ALEGAÇÃO DE INCORREÇÃO, COM PEDIDO DE REFORMA ACERTO DA R. SENTENÇA - PEDIDO DIRECIONADO A SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DAS PARCELAS DO CONTRATO DE FINANCIAMENTO CELEBRADO ENTRE AS PARTES LITIGANTES PEDIDO DE APLICAÇÃO DA TEORIA DA IMPREVISÃO, O QUE SE TEM DIANTE DA PANDEMIA QUE ASSOLA A HUMANIDADE AUSÊNCIA DE ELEMENTOS QUE PERMITAM CONCLUIR PELA EFETIVA IMPOSSIBILIDADE DE ARCAR A DEMANDANTE COM A OBRIGAÇÃO CONTRATUALMENTE ASSUMIDA REAPRECIAÇÃO MINUCIOSA DA R. DECISÃO QUE IMPLICARÁ EM DESNECESSÁRIA REPETIÇÃO DOS ADEQUADOS FUNDAMENTOS DO PENSAMENTO ADOTADO PELO JUÍZO SIMPLES RATIFICAÇÃO DOS TERMOS DA R. DECISÃO DE 1° GRAU, QUE SE MOSTRA SUFICIENTEMENTE MOTIVADA RECURSO NÃO PROVIDO.

Verifica-se, portanto, um movimento nas relações jurídicas, sobretudo nas de ordem privada, que promovem relevantes discussões e embates ao longo das demandas provenientes do Judiciário que tem sido cada dia mais solicitado a fim de dirimir questionamentos dessa monta.

Das execuções

Delineado o contexto em que se insere o mundo jurídico no cenário pandêmico e como o direito por ele foi duramente afetado, ensejando novos caminhos para resolução das lides, é preciso adentrar ao ponto crucial em tela: A EXECUÇÃO.

Não basta, no entanto, compreender sua definição, posto que esse está intimamente ligado à sua finalidade promover a satisfação de um direito concreto extra ou judicial, em síntese. É nesse sentido que dispõe o eminente professor Cândido Rangel Dinamarco:

Executar é dar efetividade e execução é efetivação. A execução forçada, a ser realizada por obra dos juízes e com vista a produzir a satisfação de um direito, tem lugar quando esse resultado prático não é realizado espontaneamente por aquele que em primeiro lugar deveria fazê-lo, ou seja, pelo obrigado.

Dessa feita, considerando as execuções civis, primeiro se questiona quanto àquelas de caráter alimentar, como a prisão por dívida do alimentante que não honra o pagamento das pensões ao alimentando.

É certo que, quando da cobrança inicial, optando o exequente por ajuizar a demanda pelo rito da prisão, deve o executado, nos termos do artigo 528, do Código de Processo Civil, pagar em três dias o débito ou apresentar justificativa de não o ter feito, sob pena de prisão em regime fechado, consoante o § 4º.

Nesse contexto que a discussão no que concerne à pandemia surge. Isso porque, em 10 de junho de 2020, foi promulgada a lei 14.010, contendo disposições quanto às relações jurídicas privadas no período da pandemia. Em seu artigo 15, há clara disposição para que o executado cumpra a ordem de prisão na modalidade exclusivamente domiciliar, até 30 de outubro de 2020.

Foi nesse exato sentindo que o Superior Tribunal de Justiça, no Habeas Corpus 2020/0045937-9, exarou decisão determinando, em consonância com a lei retromencionada, que o devedor de alimentos cumprisse a prisão em regime domiciliar, conforme se destaca a seguir:

HABEAS CORPUS. FAMÍLIA. PRISÃO CIVIL. OBRIGAÇÃO ALIMENTAR EM FAVOR DE EX-CÔNJUGE. INADIMPLEMENTO DE OBRIGAÇÃO ATUAL (SÚMULA 390/STJ). SITUAÇÃO FINANCEIRA DO DEVEDOR. INCURSÃO PROBATÓRIA INVIÁVEL EM SEDE DE RITO SUMÁRIO. PACIENTE IDOSO E CONVALESCENTE DE DOENÇA GRAVE. SITUAÇÃO OBJETIVA. PANDEMIA DO COVID-19. RISCO DE CONTÁGIO. CABIMENTO DE PRISÃO DOMICILIAR. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA. 1. No caso em exame, a execução de alimentos refere-se a débito atual, não estando demonstrada pelas provas pré-constituídas a efetiva ausência de rendimentos. A verificação da redução da capacidade econômica do alimentante e a revisão das justificativas apresentadas para o inadimplemento da obrigação demandam dilação probatória, inviável em sede de Habeas Corpus. 2. Diante do iminente risco de contágio pelo Covid-19, bem como em razão dos esforços expendidos pelas autoridades públicas em reduzir o avanço da pandemia, é recomendável o cumprimento da prisão civil por dívida alimentar em regime diverso do fechado em estabelecimento estatal. 3. Ordem de habeas corpus parcialmente concedida para que o paciente, devedor de alimentos, possa cumprir a prisão civil em regime domiciliar.

(HC 563.444/SP, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 05/05/2020, DJe 08/05/2020) (grifo nosso)

O CNJ, por sua vez, novamente não se silenciou, proferido a Recomendação 62, em 17 de março de 2020, que em seu artigo 6º recomenda a inserção da pessoa presa por dívida alimentar em regime domiciliar.

Não obstante ao intento protetivo das determinações mencionadas, há de se ressaltar que a flexibilização para o regime domiciliar pode disseminar uma série de condutas de descumprimento da obrigação, o que remete à ponderação principal deste trabalho. Isto é, o Judiciário se deparou com a inusitada situação hesitante entre garantir maior efetividade ao pagamento do débito exequendo e a de proteção individual ante ao cenário de disseminação do vírus.

Outra decisão do STJ que convém destacar diz respeito ao entendimento da Terceira Turma que, não obstante negar o regime domiciliar, determinou a suspensão da prisão do devedor de alimentos durante a pandemia.

No caso paradigma, em segredo de justiça, ponderou o Ministro Villas Boas que, ante a saúde do executado a ser posta em risco e a dignidade do alimentando, seria necessária uma saída que não desrespeitasse o procedimento legal, tampouco não colocasse em risco o direito do exequente em ver satisfeita a obrigação. Assim:

Destacou, entretanto, que a concessão de prisão domiciliar aos alimentantes inadimplentes relativizaria o disposto no artigo 528, parágrafos 4º e 7º, do Código de Processo Civil de 2015, que autoriza a prisão civil em regime fechado quando devidas três prestações anteriores ao ajuizamento da execução e as que vencerem no curso do processo. O magistrado ressaltou que, de fato, é necessário evitar a propagação do novo coronavírus, porém afirmou que "assegurar aos presos por dívidas alimentares o direito à prisão domiciliar é medida que não cumpre o mandamento legal e que fere, por vias transversas, a própria dignidade do alimentando".

Assim, muito embora em momento anterior o próprio STJ tenha determinado a prisão domiciliar como meio menos prejudicial à satisfação da execução, bem como tenha reconhecido a necessidade de aplicação da Recomendação do CNJ, entendeu, por bem, em outro instante, que a suspensão da medida respeitaria ainda mais o intento legal.

Importante ressaltar que o direito ao alimento, nos ensinamentos de Ingo Wolfang Sarlet, “integra o conjunto de prestações indispensáveis ao mínimo existencial, já que destinado essencialmente (mas não exclusivamente) à satisfação das necessidades básicas do destinatário para uma vida com dignidade.”

Esse entendimento, portanto, corrobora a magnitude de decisões proferidas na matéria familiar, que destaca o direito à prestação de alimentos e, dessa forma, seus meios de coerção para cumprimento, como uma questão imersa no cenário da proteção à dignidade da pessoa humana que, embora sua discussão aprofundada não seja pertinente neste trabalho, é certo que exerce papel de fundamento basilar no ordenamento jurídico brasileiro.

Cabe destacar que a penhora conta com previsão no Código de Processo Civil a partir do artigo 831 e seguintes, destacando-se como meio efetivo de satisfazer a obrigação discutida.

Nessa toada que Araken de Assis entende que a penhora se destina a três finalidades: “A penhora desempenha três funções dentro da execução: a) individualização e apreensão do bem; b) o depósito e a conservação do bem; e) a atribuição do direito de preferência ao credor penhorante.”

Importante compreender esse entendimento, posto que a penhora não se destina a algum tipo de repreensão ao devedor que não cumpriu com a obrigação de maneira voluntária, mas existe toda uma cadeia de procedimentos relevantes a que deve se sujeitar o executado com ordem lógica e obrigatória, como destaca o doutrinador.

Dessa feita, obedecendo a essa dinâmica, destaca Fredie Didier Jr. alguns efeitos da penhora, a saber:

A penhora tem por efeito a perda da posse direta do bem pelo executado - embora não fique privado da posse indireta. E isso pode ocorrer de duas formas. A primeira delas dá-se com a entrega do bem a um depositário judicial (auxiliar da justiça), para que o guarde e conserve. O executado não perde o domínio, nem a posse indireta sobre ele, mas será privado da sua posse direta.

Tendo isso posto, verifica-se a relevância de se suspender os atos constritivos relativos à penhora dos bens, tendo em vista que o procedimento atende a um fim material e processual, vislumbrando satisfação de uma obrigação. Assim, claramente, o Judiciário, como sustentado na decisão supramencionada, deparou-se com situação excepcional ao comumente encontrado, sendo instado a tomar medidas que não implicasse em obstrução desmedida a ponto de prejudicar a atuação de um ente tão imprescindível à sociedade, como o caso da Santa Casa, sobretudo no âmbito da saúde e atendimento hospitalar.

Pensando ainda nas relações contratuais privadas no âmbito das execuções, os contratos de alienação fiduciária também sofreram reinterpretações quando da exigência de seu cumprimento. Para elucidar esse novo entendimento, destaca-se a ementa dos autos do Agravo de Instrumento 2182802-34.2020.8.26.0000:

AGRAVO DE INSTRUMENTO - ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA - LIMINAR DE BUSCA E APREENSÃO CONCEDIDA - SUSPENSÃO DA MEDIDA EM RAZÃO DA PANDEMIA DO CORONAVÍRUS (COVID-19) - CUMPRIMENTO A SER REALIZADO, OPORTUNAMENTE, APÓS O RETORNO INTEGRAL DO TRABALHO PRESENCIAL NO ÂMBITO DESTE E. TRIBUNAL - AUSÊNCIA DE URGÊNCIA A IMPOR A EXECUÇÃO IMEDIATA DA TUTELA - DECISÃO MANTIDA - RECURSO IMPROVIDO. No contexto excepcional de uma pandemia sem precedentes no mundo moderno, e sopesando os valores envolvidos, não há razão para determinar o cumprimento imediato de liminar de busca e apreensão de veículo, mesmo porque não configurada a urgência na efetivação da medida.  

(TJSP;  Agravo de Instrumento 2182802-34.2020.8.26.0000; Relator (a): Renato Sartorelli; Órgão Julgador: 26ª Câmara de Direito Privado; Foro de Bauru - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 09/09/2020; Data de Registro: 09/09/2020).

Como se depreende do acórdão acima, o Desembargador entendeu que, ante o cenário excepcional vivenciado atualmente, o pleito de busca e apreensão de veículo gravado com alienação fiduciária não deveria ser atendido. Isso porque, além da pandemia restar prejudicial a todos os indivíduos, não restou configurada a urgência do pedido. Interessante ressaltar, ainda, trecho oportuno do voto em que destaca expressamente a necessidade de tanto credor quanto devedor cooperarem com a atividade processual, ciente cada um de seus deveres e obrigações, devendo aguardar momento mais seguro e apropriado para execução da demanda.

No mesmo sentido dos casos enfatizados anteriormente, novamente o Tribunal de Justiça foi convocado a se posicionar expressamente perante a uma situação excepcional em que, não obstante ao direito do credor bancário, o cenário pandêmico que tumultua os dias atuais foi relevante ao desfecho decisório.

No que tange à propriedade da busca e apreensão, essa conta com previsão expressa no artigo 536, §1º, do Código de Processo Civil. Nos dizeres de Didier, ao homenagear Luiz Guilherme Marinoni, ressalta que as possibilidades descritas no artigo em comento permitem a “concretização do direito fundamental à tutela executiva”, devendo o magistrado sempre avaliar qual é a medida mais eficaz e razoável ao que se pretende ante ao direito já reconhecido.

Disso se depreende a relevância da decisão que determina as providências do rol exemplificativo do artigo 536, uma vez que a lei permite uma série de possibilidades de ordens restritivas, viabilizando, inclusive, a convocação de força policial.

A ponderação da busca e apreensão, por exemplo, ante às impossibilidades causadas pela disseminação do vírus, requer imenso cuidado, como se viu, sob pena de se alargar as injustiças sociais e ainda contribuir para que os prejuízos causados pela doença sejam ainda mais sufocantes.

Finalmente, para fins de análise última neste trabalho, mas sem a pretensão de exaurir a discussão, salienta-se o Agravo de Petição dos autos de 0010467-98.2019.5.03.0184, cuja ementa se aproveita a seguir:

AGRAVO DE PETIÇÃO. EXECUÇÃO DE ACORDO HOMOLOGADO JUDICIALMENTE. SUSPENSÃO PROVISÓRIA DAS OBRIGAÇÕES DECORRENTES DO ACORDO. MODIFICAÇÃO DO ESTADO DE FATO. PANDEMIA MUNDIAL CAUSADA PELO CORONAVÍRUS. ART. 505, I, DO CPC. POSSIBILIDADE. Em que pese o acordo homologado em juízo dispor de efeito de sentença irrecorrível, conforme disposto nos arts. 831, Parágrafo único, e 855-D da CLT, a modificação substancial da realidade fática causada pela pandemia do coronavírus, aliada à demonstração inequívoca da dificuldade financeira da executada nos últimos meses, autoriza a suspensão provisória do acordo firmado pelas partes. Inteligência do art. 505, I, do CPC.

(TRT-3 – TO: 0010467-98.2019.5.03.0184 MG, Relator: Taísa Maria M. de Lima, Data de Julgamento: 03/07/2020, Décima Turma, Data de Publicação: 06/07/2020. DEJT/TRT 3/Cad. Jud. Página 1707)

A pertinência da decisão acima diz respeito ao fato de a suspensão ser proveniente de um acordo devidamente homologado em matéria trabalhista cujo crédito tem natureza alimentar. O que se verifica, portanto, uma vez mais, é a flexibilização de dispositivos legais que impedem determinada disposição a fim de garantir um direito reconhecido pelo Judiciário.

Dessa feita, o Judiciário se viu obrigado a sopesar que, ante as dificuldades financeiras enfrentadas pela executada, essa não estaria apta a cumprir o acordo entabulado pelas partes, tendo em vista as adversidades causadas pela Covid-19.

Contudo, importante ressaltar que alguns doutrinadores se manifestam veemente contra tal ponderação, com fundamento no receio de que o estado de calamidade vivenciado seja escopo para posturas oportunistas para aqueles que agem de má fé:

[...] Mesmo que a Covid-19 possa ser classificada como um evento de força maior, há uma questão de precisar por quanto tempo, afinal, contratantes ‘oportunistas’ podem tentar usar a crise como uma chance de se exonerar de suas obrigações contratuais. Em cada circunstância, portanto, deve restar evidenciado se a força maior foi a causa exclusiva do descumprimento obrigacional, para que se defira eficácia à cláusula de força maior.

Nesse mesmo sentido se opõem Adriano Marcos Soriano Lopes e Solainy Beltrão dos Santos, ao defender que, em já tendo sido homologado o acordo trabalhista pelo juízo responsável, não há que se falar em revisão ou suspensão. Em caso de descumprimento do acordo ou incidindo em mora o devedor, pode-se rediscutir as penalidades impostas no pacto, respeitando-se, portanto, a boa-fé contratual.

Depreende-se, a partir de decisórios como o retro transcrito, que, em sendo reconhecida a possibilidade de suspensão do acordo estabelecido pelas partes, o credor fica obstado de executar o crédito exequendo, posto estar determinada que a obrigação não pode ser exigida enquanto perdurar a situação fática que a ensejou – no caso em tela, a pandemia atrelada às dificuldades de ordem financeira alegada pela parte devedora.

Isso implica dizer que, à vista do ora delineado, o TRT-3 entendeu ser primordial a manutenção da saúde financeira da empresa em detrimento do ora entabulado pelas partes, reconhecendo a inviabilidade de executar o acordo perante o juízo, ao invés, por exemplo, de minorar eventual multa cominatória, tal como recomendado pelos estudiosos trabalhistas.

Destacou-se, dessa forma, pontos cruciais da discussão a serem abordadas neste trabalho, tais como, por exemplo, a maneira que os Tribunais vêm analisando as execuções sob a ótica da pandemia, com o fito de, sem pretensões definitivas de se findar as ideias aqui suscitadas, contribuir com o debate das controvérsias existentes no direito, bem como com aquelas que ainda estão por vir, surgindo em decorrência do cenário pandêmico.

Letícia Pérsico Diniz
Advogada do escritório Parada Advogados.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Coisa julgada, obiter dictum e boa-fé: Um diálogo indispensável

23/12/2024

Macunaíma, ministro do Brasil

23/12/2024

Inteligência artificial e direitos autorais: O que diz o PL 2.338/23 aprovado pelo Senado?

23/12/2024

(Não) incidência de PIS/Cofins sobre reembolso de despesas

23/12/2024

A ameaça da indisponibilidade retroativa

23/12/2024