Algumas obras literárias se tornam eternas e por mais que tenham sido lidas e relidas, elas sempre merecem outra visita que, a cada vez, enriquecem mais ainda o leitor. Eu faço isso com várias obras clássicas e uma das minhas preferidas é a Eneida de Virgílio1. Esse poeta latino foi dos poucos autores que mereceu grande reconhecimento ainda em vida. E foi também honrado por Dante Alighieri que o escolheu para o seu guia ao mundo de dois dos estados do espírito (purgatório e inferno, não tendo entrado no paraíso, dado que não era cristão) na não menos eterna Divina Comédia. A Eneida também é ancestral legítima dos Lusíadas de Camões.
Na Eneida Virgílio narra a epopeia de Eneias e de seus companheiros, sobreviventes da guerra de Troia, em expedição marítima que tinha como finalidade última a fundação de Roma, tal qual contavam as profecias. Uma tradução da Eneida para o português, feita por Leonel da Costa relativa a uma obra de Vergílio Maranhão faz um resumo da trama daquele poema2:
As armas e o Varão insigne canto,
Que sendo fugitivo, pelo fado,
Primeiro das regiões da antiga Troia
Chegou à Itália e praias de Lavino;
Ele nas terras foi mui perseguido
E por força dos Deuses no mar alto,
Por amor do furor lembrado sempre
Da fera Juno: também muitas cousas
Sofreu na guerra, até que edificasse
A Cidade e metesse em Lácio os Deuses,
Donde procede a geração Latina,
Donde os Padres Albanos e altos muros
Da famosa, soberba e altiva Roma.
Neste nosso texto deixamos um pouco de lado o papel dos deuses na vida dos heróis da Eneida, concentrando-nos nos fatos, tendo o autor atribuído a Juno um amor extremado por Cartago.
Depois de uma viagem atribulada, Eneias aporta em Cartago com o restante de sua frota, onde é recebido de forma magnânima por sua belíssima rainha Dido, perdidamente apaixonada pelo troiano, tendo se tornado amantes.
O poema de Virgílio coloca a lenda da Eneida em cerca de 700 a.C, um pouco anteriormente à fundação de Roma por Rômulo, assassino do seu irmão Remo (aqueles dois que teriam sido amamentados por uma loba). Portanto o nome de Roma derivaria do nome do seu fundador. Naquela época (cerca de 800 a.C) Cartago já era uma cidade muito importante e rica, fundada por fenícios oriundos de Tiro, que veio a ser a grande inimiga de Roma, destruída pelos romanos nas Guerras Púnicas (264 a 146 a.C)3. Púnicas porque os romanos chamavam os cartagineses como punici, de Poenici, ou seja, a Fenícia.
Eneias na sua primeira visita viu Cartago em sua maior glória, onde eram construídas grandes obras, inclusive um magnífico templo dedicado a Juno, o que o deixou perplexo. Sob Dido, as cabanas originais daquele lugar foram substituídas por edifícios suntuosos. Foi naquele momento que lhe apareceu a rainha em deslumbrante beleza, seguida por um grande séquito. As palavras iniciais dos troianos foram de paz, as quais Dido, depois de ouvi-las e baixando os seus olhos – talvez em atitude de submissão inconsciente -, declarando que já ouvira falar dos feitos de Eneias, de seus outros heróis, ofereceu abrigo e até mesmo uma aliança por meio da qual os dois povos seriam tratados como irmãos. Por obra da divindade que o protegia Eneias foi mostrado a Dido em luminosa beleza. Em agradecimento às palavras da rainha, Eneias ofereceu-lhe ricos presentes, salvos das ruínas de Troia.
Virgílio construiu a personagem de Dido sob ares algumas vezes negativos, já que o intuito declarado do seu poema era o de exaltar a história da fundação de Roma, não havendo, portanto, lugar para uma união de Eneias com aquela pungente rainha. Primeiramente enlevado com uma visão da sua união com Dido, do que resultaria um povo poderoso, sem rivais à sua altura, Eneias via-se edificando cidadelas e edifícios, portando uma espada de puro jaspe e tendo sobre os seus ombros um manto resplandecente de púrpura originada de Tiro.
Mas em dado momento, depois de doces meses passados em Cartago, Eneias é demovido daqueles sonhos, sabendo pelas profecias que o seu destino era a Itália, para ser o pai da grande Roma. Incapaz de revelar abertamente a sua decisão de partir, ele tramou secretamente com os seus companheiros a sua fuga, mandando que sua frota fosse aparelhada, enquanto Dido ignorava os planos do seu amante, não esperando jamais o fim do seu grande amor. Mas a rainha logo descobriu os planos de Eneias, tendo sido alcançada por grande desespero.
Tendo perdido o seu equilíbrio emocional, Dido correu por toda a cidade, arrebatada por intenso furor. Busca Eneias e o interpela acremente:
“Esperaste, pois, pérfido, poder dissimular tão grande crime e abandonar minha terra sem dizer palavra: Nem nosso amor, nem esta mão que outrora te foi dada, nem Dido prestes a morrer com cruel trespasse te puderam reter? (...) Porventura foges de mim? Por estas lágrimas que derramo pela tua mão que aperto (pois na minha desgraça não há nada mais que me reste), por nossa união, por nosso himeneu começado, se eu algo de bom de ti mereci, se alguma coisa te foi doce, tem piedade de uma casa destruída e se em ti não houver lugar para minhas preces, suplico, renuncia a esse projeto funesto”.
A custo Eneias, lutando contra os seus sentimentos, falou do destino ao qual não podia escapar:
“Os benefícios sem conta com os quais me cumulaste, tua boca os pode enumerar sem temor: jamais, rainha, eu os negarei e não deixarei de me lembrar de Elisa enquanto me lembrar de mim mesmo, enquanto um sopro de vida animar estes membros que vês. Em tal conjuntura eu tenho senão pouca coisa a dizer. Nem eu esperei, não o suponhas, te esconder uma fuga clandestina; nem jamais propus acender as tochas nupciais, nem vim aqui para concluir tal aliança. Se os destinos me deixassem conduzir minha vida segundo meus os meus auspícios, e regular os meus cuidados segundo a minha livre vontade, ocupar-me-ia antes de tudo da cidade de Troia e dos doces restos do meu; (...). Mas agora é na grande Itália que Apolo de Grínia, é na Itália que os oráculos da Lícia me ordenaram que me estabelecesse; eis aí meu amor, eis aí minha Pátria”.
Em sua fala Dido já havia anunciado a maneira pela qual daria cabo à sua vida, tendo para tanto se jogado contra uma espada no leito que dividira com Eneias, tendo expressado as suas últimas palavras:
“Doces despojos, enquanto o permitiam os destinos e os deuses, recebei esta vida e libertai-me destes cuidados. Vivi e terminei a missão que a Fortuna me tinha dado, e agora a minha sobra irá grande para debaixo da terra. Fundei ilustre cidade; vi as minhas muralhas; vinguei meu esposo, castiguei um irmão inimigo. Feliz fora se nunca os navios troianos tivessem tocado os nossos litorais”.
Disse, e tendo se lançado sobre o leito, beijando-o:
“Morreremos sem vingança, mas morramos”. (...) Assim me agrada ir para junto das sombras. O cruel dárdano, do alto mar, acolha com os olhos esta chama e leve consigo os agouros da minha morte”.
Eneias partiu para o seu destino, enquanto jazia em seu leito o corpo de Dido. Ele poderia ter dito We will be back, o que aconteceria quando seus descendentes romanos viessem atacar Cartago e destruí-la.
Virgílio terminou esse episódio da Eneida, observando que Juno, compadecida da prolongada dor e da penosa morte de Dido, enviou Íris do alto do Olimpo para libertar aquela alma que ainda lutava com os laços do seu corpo, pois havia sucumbido a uma morte não prescrita pelo destino, nem merecida, infeliz, antes do tempo e presa a um súbito (e justificado) furor. Assim, Íris cortou os louros cabelos da bela rainha para oferecê-los em penhor a Afrodite, a divindade responsável pela perpetuação da vida, do prazer e da alegria, que haviam sido cortados dramaticamente da existência de Dido.
Às vezes eu me imagino em visita às parcas ruínas de Cartago e me parece que vejo Dido no seu esplendor, percorrendo feliz as obras maravilhosas de sua cidade, antes da chegada do sobrevivente troiano e dos companheiros que estavam com ele em sua frota. Ela havia enviuvado em seu passado e enfrentado vitoriosamente uma luta pelo poder em sua própria casa. E todo um futuro risonho até então imaginado foi enriquecido na percepção de Dido de uma frutuosa aliança com os troianos, que seria não somente política, mas sacramentada pelo amor que Eneias lhe despertou e que ela esperava fosse genuinamente correspondido.
Em minha imaginação, encontrando-me em um lugar bem alto que dominaria os restos de Cartago, eu vejo chegar ao seu litoral o que havia restado da frota troiana, receosos os seus marinheiros de uma acolhida funesta que poderia levá-los todos à morte, enfraquecidos como se encontravam pela ingente labuta encetada contra terríveis tempestades. Mas pouco tempo depois eu vejo Eneias e seus companheiros fazendo parte amigável da vida da cidade e dos seus festejos, situação nascida do amor imediato de que Dido se tomou pelo rei troiano quando, vendo-o e o ouvindo pela primeira vez, diante dele baixou os seus olhos como se dissesse que seria sua dócil vassala se o refugiado da guerra que ali o havia trazido assim o desejasse.
Percorrendo o que resta daquela antiga então magnífica cidade tenho visões dos cânticos que ali se ouviam, das risadas dos seus habitantes e do amor professado pelos nossos dois heróis. O seu himeneu estava em curso, com os seus ritos próprios.
Imagina-se, pelas próprias palavras de Eneias, que durante certo tempo ele acalentou a ideia de interromper sua jornada e radicar-se em Cartago mediante o seu casamento e aliança com Dido. Mas não demorou muito para que a sua vocação de ter a Itália como destino fosse despertada na sua mente e tomasse todo o lugar que a então feliz rainha ocupava nos seus dias em Cartago. em sua mente e em seu coração. Na lenda Eneias foi para tanto instigado pelos deuses que o haviam designado para tal tarefa, com uma força tamanha à qual não podia resistir. Percebo então Eneias preparando-se para fugir escondido, com receio da reação de Dido, tanto no seu coração, quanto nas atitudes de violência que poderia tomar contra ele e os seus companheiros.
E me sinto triste com a descoberta feita por Dido e com a sua reação tão extremada que a levou a buscar pela espada a sua própria morte.
Vejo em seguida, desgostoso, a frota troiana zarpar em direção à Itália para que Eneias pudesse cumprir o seu destino. Muito tempo depois cartagineses e os romanos se enfrentariam em batalhas terríveis nas quais os primeiros não saíram vencedores, tendo a sua cidade e a sua cultura tendo desaparecido quase completamente da história.
Esse foi o fim da parte inicial do poema de Virgílio.
Mas, pergunta-me o leitor impaciente, o que tudo isso tem a ver com os troianos modernos?
Muita coisa, conforme uma aproximação imperfeita que procurarei fazer em seguida.
Cartago e Dido representam a nação brasileira que, nos seus primórdios, receberam os navegadores portugueses. Tal e qual no canto de Virgílio, estas terras não eram o destino da esquadra de Cabral, mas sim as Índias, que corresponderiam à Itália buscada por Eneias. Ainda que deslumbrados pela riqueza da Ilha da Vera Cruz ou da terra de Santa Cruz, jamais nasceu ou se desenvolveu genuíno amor dos ibéricos pela nossa Cartago. Antes ela foi tomada como mero fornecedor das riquezas aqui existentes, em um processo do seu esvaziamento, que foi do pau-brasil até o ouro e os diamantes e que hoje continua por meio de uma pauta de exportações de produtos da natureza, não transformadas individualmente. A exigência execrável do quinto causou a revolta que levou à morte inglória de Tiradentes. Não fosse Napoleão Bonaparte nosso destino teria sido o mesmo de tantas colônias estrangeiras que se estabeleceram na África e na Ásia, puras e simples fornecedoras das modernas commodities.
E nossa independência? Ora, ela foi feita para preservar os interesses da coroa portuguesa, antes que a fizesse algum aventureiro. O espírito da coleta e do transporte dos nossos bens para alhures firmou-se com as capitanias hereditárias e postergou-se por tempo duradouro. Independência jamais houve verdadeiramente, tendo os conquistadores iniciais sido substituídos por outros que, não menos vorazes, têm durante décadas a fio despojado a nossa riqueza em seu próprio proveito, sendo essa uma natureza endêmica que, para fazer coro de exceção à regra, encontra alguns atores a serviço do bem público
Nossa Dido brasileira não se suicidou, mas tem sido levada progressivamente à morte pela devastação da terra e do quinto que ainda se paga a tantos del Reys, quantos são os detentores do poder sobre as riquezas, encastelados nos seus palácios, protegidos pelas muralhas dos privilégios que causam a sua impunidade. Tanto quanto Roma fez com Cartago na destruição provocada pelas Guerras Púnicas, têm os nossos políticos, modernos troianos saqueadores, estrangulado a Dido local em processo do qual somente restarão cinzas.
Do alto dos picos mais elevados desta terra eu vejo o desmatamento da Amazônia; a desolação provocada – ainda e sempre – pela mineração desenfreada; a queima dos cerrados e da mata atlântica; o crescer incontrolável da miséria; o incremento da violência praticada quase impunemente pelo crime organizado; o olhar perdido de quem adotou a rua como a sua morada, lutando a cada dia por espaço sob um viaduto para abrigar-se da chuva e do frio.
Na lenda, morta a sua rainha, Cartago ainda cresceu até o enfrentamento com Roma sob os generais Amílcar e Aníbal, e, com a sua derrota, ser quase apagada da lembrança. E, nos lembremos mais uma vez, quem levou Cartago à derrocada, foram os romanos originados dos troianos, diretamente descendentes de Eneias e dos seus companheiros, segundo a pena lendário do grande poeta da Eneida.
Do lado de cá, nossa Cartago definha sempre, na figura de uma gangorra que algumas vezes parece levá-la enganosamente ao píncaro da glória quando, na verdade, o plano inclinado do apetite do conquistador voraz a leva inelutavelmente para um fim ingrato.
Não se trata de um problema de estrutura, mas de projeto. O DNA do moderno troiano local é imutável. Seu corpo é disforme, com crânio avantajado, mas oco, mostrando-se faia a cavidade do coração e avultando o estômago insaciável como o maior e mais exigente dos seus órgãos.
A Cartago pátria está perdida. Quem viver, verá.
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1 Depois de redigida em prosa, veio a ser finalizada em versos hexâmetros (uma forma de métrica poética literária grega, um pouco confusa e trabalhosa que não mereceu acatamento nas línguas neolatinas, as quais adotaram o verso decassílabo heroico, como aconteceu com os Lusíadas de Camões.
2 Encontrado no verbete “Eneida”, da Wikipédia.
3 Há muitos problemas cronológicos no texto, decorrentes da costura que Virgílio fez, tanto na lenda, como na história, a fim de que pudesse harmonizar os fatos de sua trama, segundo a sua concepção.