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A relevância da questão de direito federal no STJ - Será um filtro individual ou integrará o microssistema de demandas repetitivas?

Tudo indica que a relevância da questão infraconstitucional do Superior Tribunal de Justiça siga o mesmo caminho, até porque, como filtro meramente individual (caso a caso), o instrumento pode não ajudar tanto a Corte a racionalizar os seus julgamentos.

5/11/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

I – Considerações iniciais

O Senado Federal aprovou, no dia 3/11, a Proposta de Emenda Constitucional 10/17, que cria um filtro para a admissão de recursos especiais a serem julgados pelo Superior Tribunal de Justiça. O Tribunal avaliará se os recursos têm relevância jurídica capaz de justificar sua apreciação, podendo haver a recusa pela manifestação de dois terços dos integrantes do colegiado competente para o julgamento.

A intenção é a de reduzir o volume de processos em trâmite perante o Superior Tribunal de Justiça, racionalizando a prestação jurisdicional.

Sem adentrar o profundo debate de se o novo filtro pode prejudicar a realização do papel constitucional da Corte, vale levantar o seguinte ponto: o STJ aproveitará a experiência do STF com a repercussão geral, que hoje não é mais um simples filtro recursal individual, mas integra o microssistema de demandas repetitivas?

Para chegar à resposta, trata-se antes da evolução dos filtros no Brasil e compara-se a relevância da questão infraconstitucional com a repercussão geral.

II – A evolução dos filtros recursais no Brasil (Repercussão geral e arguição de relevância) Em 2004, foi instituído, pela Emenda Constitucional 45, o requisito da repercussão geral para o Supremo Tribunal Federal, regulamentado por leis posteriores e atualmente pelo Código de Processo Civil de 2015.

Ao longo dos anos (e a legislação acompanhou a tendência), a forma de utilização do requisito veio sendo alterada – de um filtro individual para um conteúdo da forma repetitiva, de utilização mais objetiva e geral. Vale a análise, inicialmente, da origem da repercussão e de eventual inspiração na antiga arguição de relevância.

Dispõe o § 3º do art. 102 da Constituição Federal:

§ 3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros.

Trata-se de um requisito prévio de admissibilidade instituído a partir da Emenda Constitucional 45/04 que inseriu o referido parágrafo – a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso.

Já tivemos instrumento semelhante na Constituição anterior.

A Emenda Constitucional 1/69, tratou do recurso extraordinário no artigo 119, III:

“Compete ao Supremo Tribunal Federal:

(...)

III — julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância por outros tribunais, quando a decisão recorrida:

a) contrariar dispositivos desta Constituição ou negar vigência de tratado ou lei federal;

b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal;

c) julgar válida lei ou ato do governo local contestado em face da Constituição ou de lei federal; ou

d) der à lei federal interpretação divergente da que lhe tenha dado outro Tribunal ou o próprio Supremo Tribunal Federal.

§ 1º. As causas a que se refere o item III, alíneas a e d deste artigo, serão indicadas pelo Supremo Tribunal Federal no Regimento Interno, que atenderá à sua natureza, espécie ou valor pecuniário.”

A grande novidade da Emenda com relação às Constituições anteriores foi a inclusão do § 1º, que atribuiu competência ao Supremo Tribunal Federal para regular o cabimento do recurso extraordinário nas hipóteses de violação à Constituição, lei ou tratado, e de divergência jurisprudencial.

Era hipótese de exercício de função normativa pelo STF por delegação direta da Constituição Federal. Observa-se, da leitura do referido parágrafo, já uma preocupação em limitar o cabimento do recurso extraordinário1, dando ao intérprete máximo da Constituição, a quem incumbe o seu julgamento e que bem conhece o recurso, a possibilidade de “indicar” quais as causas seriam por ele apreciadas. Mas essa possibilidade de regulamentação estava restrita às alíneas “a” e “d”.

Nas hipóteses de inconstitucionalidade de tratado ou lei federal (alínea “b”) e discussão sobre a constitucionalidade de lei ou ato de governo local, em face da Constituição ou de lei federal (alínea “c”), o recurso extraordinário seria sempre cabível. A preocupação do legislador foi, também, a de não esvaziar a função do recurso em casos nos quais estivesse em jogo a compatibilidade de normas federais com a Constituição e de normas locais com a Constituição e com a legislação federal.

O artigo 308, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, que entrou em vigor em 15 de outubro de 1970, elencou hipóteses em que era incabível recurso extraordinário:

“Salvo nos casos de ofensa à Constituição ou discrepância manifesta da jurisprudência predominante no Supremo Tribunal Federal, não caberá o recurso extraordinário, a que alude o seu art. 119, parágrafo único, das decisões proferidas:

I — nos processos por crime ou contravenção a que sejam cominadas penas de multa, prisão simples ou detenção, isoladas, alternadas ou acumuladas, bem como as medidas de segurança com êles relacionadas;

                      II — nos litígios decorrentes:

a)       de acidente do trabalho;

b)      das relações de trabalho mencionadas no art. 110 da Constituição.

                     III — nos mandados de segurança, quando não julgarem o mérito;

IV — nas causas cujo benefício patrimonial, determinado segundo a lei, estimado pelo autor no pedido, ou fixado pelo Juiz em caso de impugnação, não exceda, em valor, de sessenta (60) vêzes o maior salário-mínimo vigente no País, na data do seu ajuizamento, quando uniformes os pronunciamentos das instâncias ordinárias; e de trinta (30), quando entre elas tenha havido divergência, ou se trate de ação sujeita a instância única.”

O Regimento Interno, ao regulamentar o § 1º, do artigo 119, da Constituição da República, resguardou e ressalvou das restrições as hipóteses de ofensa à Constituição ou discrepância da decisão recorrida com a jurisprudência predominante no Supremo Tribunal Federal. Isso demonstra clara preocupação em impor limites sem retirar finalidades primordiais do recurso extraordinário, além das consignadas nas alíneas “b” e “c”, de guarda da Lei Maior, como a de uniformizar a interpretação das normas legais.

A Emenda Regimental 3, de 12 de junho de 1975, alterou a redação do art. 308: 

 “Salvo nos casos de ofensa à Constituição ou relevância da questão federal, não caberá o recurso extraordinário, a que alude o seu artigo 119, parágrafo único, das decisões proferidas:

 I — Nos processos por crime de contravenção a que sejam cominadas penas de multa, prisão simples ou detenção, isoladas, alternadas ou acumuladas, bem como as medidas de segurança com eles relacionadas;

 II — nos habeas-corpus, quando não trancarem a ação penal, não lhe impedirem a instauração ou a renovação, nem declararem a extinção da punibilidade;

 III — nos mandados de segurança, quando não julgarem o mérito;

                       IV — nos litígios decorrentes:

a) de acidente de trabalho;

b) das relações de trabalho mencionadas no artigo 110 da Constituição;

c) da previdência social;

d) da relação estatutária de serviço público, quando não for discutido o direito à constituição ou subsistência da própria relação jurídica fundamental;

 V — nas ações possessórias, nas de consignação em pagamento, nas relativas à locação, nos procedimentos sumaríssimos e nos processos cautelares;

                      VI — nas execuções por título judicial;

 VII — sobre extinção do processo, sem julgamento do mérito, quando não obstarem a que o autor intente de novo a ação;

 VIII — nas causas cujo valor, declarado na petição inicial, ainda que para efeitos fiscais, ou determinado pelo juiz, se aquele for inexato ou desobediente aos critérios legais, não exceda de 100 vezes o maior salário mínimo vigente no País, na data do seu ajuizamento, quando uniformes as decisões das instâncias ordinárias; e de 50, quando entre elas tenha havido divergência, ou se trate de ação sujeita a instância única.”

O mesmo Regimento Interno, com a redação dada pela Emenda Regimental 2, de 4 de dezembro de 1985, passou a prever, no artigo 325:

“Nas hipóteses das alíneas ‘a’ e ‘d’ do inciso III do artigo 119 da Constituição Federal, cabe recurso extraordinário:

                      I — nos casos de ofensa à Constituição;

II — nos casos de divergência com a Súmula do Supremo Tribunal Federal;

                    III — nos processos por crime a que seja cominada pena de reclusão;

IV — nas revisões criminais dos processos de que trata o inciso anterior;

                     V — nas ações relativas à nacionalidade e aos direitos políticos;

VI — nos mandados de segurança julgados originalmente por Tribunal Federal ou Estado, em matéria de mérito;

                    VII — nas ações populares;

VIII — nas ações relativas ao exercício de mandato eletivo federal, estadual ou municipal, bem como às garantias da magistratura;

IX — nas ações relativas ao estado das pessoas, em matéria de mérito;

X — nas ações rescisórias, quando julgadas procedentes em questão de direito material;

XI — em todos os demais feitos, quando reconhecida a relevância da questão federal.”

Mais uma vez, restrições foram impostas ao cabimento do recurso extraordinário que, à primeira vista, esvaziariam o seu conteúdo, mas que, ao contrário e em tese, aumentaram a sua importância, de fiel fiscal da legislação federal e da Constituição da República.

A maior inovação, entretanto, foi trazida em 1977, com a alteração da redação do § 1º do artigo 119, pela Emenda Constitucional 7:

“§ 1º. As causas a que se refere o item III, alíneas a e d deste artigo, serão indicadas pelo Supremo Tribunal Federal no Regimento Interno, que atenderá à sua natureza, espécie, valor pecuniário ou relevância da questão federal.”

O recurso extraordinário, nesses casos, observaria mais restrições impostas pelo Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, tendo em vista a natureza, a espécie, o valor pecuniário e agora, também, a relevância da questão federal.

Para aferir se a questão era ou não relevante, à época, criou-se a chamada “argüição de relevância da questão federal”, suprimida pela atual Constituição.

Essa argüição deveria ser feita em capítulo destacado da petição do recurso extraordinário e o seu exame era anterior ao do recurso. Funcionava como um pré-requisito de admissibilidade.

A questão federal era tida como relevante, nos termos do artigo 327, do RISTF2, quando, pelos reflexos na ordem jurídica, e considerados os aspectos morais, econômicos, políticos ou sociais da causa, exigisse a apreciação do recurso extraordinário. Era examinada na sessão do Conselho, no Supremo Tribunal Federal, previamente ao recurso propriamente dito3.

Muitas críticas foram feitas à argüição de relevância, que poderia levar à discricionaridade do Supremo Tribunal Federal na apreciação do recurso extraordinário. E, de fato, dependendo da regulamentação dada pela Corte, havia risco de redução considerável das hipóteses de cabimento do recurso e esvaziamento da sua tradicional função relacionada à manutenção do federalismo. Mas um maior risco poderia advir do excesso de processos levados à apreciação da Suprema Corte.

Abolido pela Constituição de 1988, instrumento semelhante à arguição, com a Emenda Constitucional 45, reapareceu com o nome de “repercussão geral”.

Na verdade, não se tratou da volta da “arguição”, porque há diferenças entre os dois instrumentos, mas de uma provável solução ao grande número de processos em tramitação perante o Supremo Tribunal Federal, que partiu dos mesmos princípios da “arguição”.

À luz da Constituição anterior, como anotado, considerando os reflexos na ordem jurídica, os aspectos morais, econômicos, políticos ou sociais da causa, o Supremo Tribunal Federal indicaria, em sessão do Conselho, e examinaria, previamente, se a causa deveria ou não ser apreciada no recurso extraordinário.

Isso porque a Emenda Constitucional 1, de 1969, já autorizava que as causas que dessem ensejo ao recurso extraordinário por contrariedade à legislação e por divergência jurisprudencial fossem indicadas no Regimento Interno, atendendo à natureza, espécie e valor pecuniário. Com a Emenda 7, de 1977, já referida, foi inserido o cabimento também quando houvesse relevância da questão federal.

Fica claro que o legislador constituinte da época, como o atual, que elaborou e aprovou a Emenda Constitucional 45, preocupou-se com o grande número de processos que chega ao Supremo Tribunal Federal, que pode inviabilizar o seu papel de guardião da Constituição Federal e de dar unidade à Federação, na medida em que impossível que a Corte Suprema fique à disposição para reexaminar todas as questões jurídicas do país.

É, portanto, a possibilidade de “filtragem” de processos sem maior relevância, que não põem em xeque o princípio federativo e a guarda da Constituição, a força motora que levou à criação dos dois instrumentos – a antiga “arguição de relevância” e a atual “repercussão geral”.

Há, de fato, semelhanças técnicas, como a demonstração prévia ao preenchimento dos requisitos, da importância da questão que justificaria a apreciação pelo Supremo Tribunal Federal.

Osmar Mendes Paixão Côrtes
Advogado do escritório Paixão Côrtes e Advogados Associados. Pós-doutor em Direito pela UERJ. Doutor em Direito pela PUC/SP. Mestre em Direito e Estado pela Unb. Diretor do IBDP. Professor do mestrado/doutorado do IDP.

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